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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O Universo como projeção, a hipótese da simulação e o 4° portão do sonhar


O universo é, na realidade, uma forma mental projetada pela mente de Deus¹.

Eis uma ideia presente em diferentes tradições espirituais.

Por exemplo, a tradição hermética, segundo o que nos ensina o Caibalion, através do primeiro princípio, o do mentalismo:

"O TODO é MENTE; o Universo é Mental. Este Princípio contém a verdade que Tudo é Mente. Explica que O TODO é ESPÍRITO, é INCOGNOSCÍVEL e INDEFINÍVEL em si mesmo, mas pode ser considerado como uma MENTE VIVENTE INFINITA e UNIVERSAL. Ensina também que todo o mundo fenomenal ou universo é simplesmente uma Criação Mental do TODO, sujeita às Leis das Coisas criadas, e que o universo, como um todo, em suas partes ou unidades, tem sua existência na mente do TODO, em cuja Mente vivemos, movemos e temos a nossa existência".

O sonho é uma projeção mental na tela da consciência. Dar-se conta do sonho é dar-se conta da projeção.

Ir além da projeção é dar-se conta do sonhador.

Mas se não nos damos conta de nós mesmos e da projeção então estamos adormecidos, somos o sonhado.

O que significa que estamos no sonho de alguém, mesmo que esse alguém seja incompreensível. 

Quem sou eu? Eu mesmo não me compreendo.

Ou somos o sonho de alguém que criou esse sonho e do qual somos o sonhado. 

Temos então a ideia de Matrix: um sonho programado que chamamos de realidade, mas que deveríamos chamar de sonho, se cremos na afirmação de que o Universo é uma forma mental projetada pela mente do Criador ou do Sonhador. 

O filme Matrix, de 1999, colocou assim a questão:

- Você já teve um sonho, Neo, que parecesse realidade? E se você fosse incapaz de acordar desse sonho? Como saberia a diferença entre o mundo dos sonhos e o mundo real?

Ora, se vivemos no sonho de alguém não temos autonomia própria, alimentaríamos apenas o sonho de alguém a ponto de tornar tal sonho uma "realidade". 

O termo realidade é muito exigente. Está no centro da discussão ontológica. O que é real? Para nós que estamos identificados com o sonho chamado realidade e nunca nos questionamos a respeito da natureza da realidade a questão parece não fazer sentido, mas para alguns o que não faz sentido é a chamada "realidade", daí surge a busca.

Ter autonomia própria é ter a capacidade de sonhar, de operar como sonhador, de termos sonhos próprios, nos quais agimos de forma consciente, e nos darmos conta de que temos que ir além do sonho do Criador. 

Isso significa que temos que nos tornarmos criadores, sonhadores, seres com autonomia existencial. 

Pois de outro modo sonhamos o sonho de outrem. No sonho da religião somos pecadores, no sonho do sistema econômico, consumidores. No sonho da política, meros eleitores, delegando poder a representantes que não nos representam. No sonho do Criador deste universo somos criaturas-ferramentas.

Podemos "hackear" o próprio Universo a partir de nossa mente?

Tal é possível, mas precisamos compreender a natureza desta realidade.

A natureza desse sonho no qual estamos inseridos muitas vezes tem características não de um sonho, mas de um pesadelo, em particular, devido ao aspecto predador do Universo, no qual um ser devora o outro para sobreviver, eis o sonho do Criador no qual estamos imersos. Isso é distópico, indigno, mas por causa da religião não questionamos isso ou assumimos a negação própria dos ateus que deixa ao acaso a própria criação.

E isso fala a respeito da própria natureza desse Criador, pois o Universo sonhado por Ele espelha a sua própria mente, que por sua vez influencia a mente de todos os que estão aqui mergulhados. Aqui temos uma visão gnóstica da criação e do criador, uma visão que revela a imperfeição da obra e de seu artista. Aqui o Criador é visto como o primeiro arconte, ele em si mesmo uma criação indevida, chamado de Yaldabaoth no evangelho apócrifo de João². Ora, tal evangelho foi por isso mesmo considerado apócrifo, pois revela a natureza problemática do criador, da criação e da doença adquirida por quem está inserido nessa criação. A equação do pecado original se inverte e revela que o pecado original não deriva do humano, mas está no primeiro arconte, o demiurgo-criador.

Daí nasce o Xamanismo Guerreiro e várias outras tradições, da necessidade imperiosa de superarmos o sonho do Criador para deixarmos de sermos parte do sonho-pesadelo de alguém para sonharmos um outro sonho, um sonho de liberdade total para além da tirania universal.

Por isso no Xamanismo Guerreiro tal entidade é simplesmente chamada de tirano³. Também é chamada de Águia, "o poder que governa o destino de todos os seres vivos". Águia é uma metáfora e como tal associa-se a ideia do predador supremo, de quem está topo da cadeia alimentar, pois a "Águia" se alimenta, devora, implacavelmente a consciência de todos os seres vivos. "A consciência é o seu alimento". Aí vemos que a essência deste criação é a predação. Há quem faça da predação um valor supremo, há outros que fazem da liberdade o valor máximo. Podemos aqui até questionar sobre o título do sexto livro do nagual Carlos Castaneda, afinal por que razão a "Águia" iria nos oferecer algum presente? Talvez buscasse apenas um petisco consciencial mais elaborado...

Por isso o termo deus não é absolutamente adequado dessa perspectiva, a perspectiva do XG. Para o XG o termo deus e seus significados subjacentes bem estabelecidos em nossa cultura são como uma cola, que fixa o ponto de aglutinação na posição usual, a posição da ovelha, a posição do pecador, a posição do crente, na posição em que tais palavras poderão soar como uma blasfêmia, como uma heresia ou algo satânico.

Sobre isso, com fina ironia, discorreu Nietzche em seu aforismo 129 do livro Além do Bem e do Mal, fazendo indireta alusão à primeira história da mitologia judaico-cristã, o mito da queda:

"O diabo tem as mais amplas perspectivas sobre Deus, por isso é que se mantém tão afastado dele. O diabo, ou seja, o mais velho amigo do conhecimento".

Qual o sonho que queremos sonhar para nós e que vai além das expectativas programadas pelo sonho corrente chamado de realidade?

Se o Universo é uma projeção mental podemos também dizer que vivemos numa simulação, o que aponta para a hipótese de simulação trabalhada por alguns cientistas.

No Arte do Sonhar, do nagual Carlos Castaneda, nós vemos a demonstração, via mestria do intento, do chamado desafiador da morte ao criar sonhos, realidades, universos nos quais os seres ali criados poderiam mesmo ter pensamentos. 

Se alguém a partir do humano é capaz de criar outros mundos e outros seres imagine o poder de quem estando além do humano criou universos. Estamos submetidos a esse poder e ao mesmo tempo somos partes desse poder, assim temos uma chance de redenção, mas ela não se dá por um salvador, por uma religião e sim pela compreensão profunda da natureza desta realidade.

Eis o quarto portão do sonhar, no qual sonhamos o sonho de alguém, conforme o Arte do Sonhar (a longa citação faz-se necessária para aclarar o ponto em questão: estar no sonho de alguém):

- Você não é a única pessoa a ter dor de barriga por causa do medo - falou. - Quando encontrei o desafiador da morte eu molhei as calças. Pode acreditar. Esperei em silêncio durante um momento longo e insuportável. - Está preparado? - ele perguntou.

Falei que sim, e ele acrescentou, levantando-se: - Vamos então descobrir como você vai se portar na linha de tiro.

Foi na frente em direção à igreja. E por mais que eu tente, tudo que lembro hoje em dia daquela caminhada é que ele teve de me arrastar por todo o caminho. Mas não me lembro de chegar à igreja ou de entrar nela. A próxima coisa que soube é que estava ajoelhado num banco de madeira, longo e desgastado, junto da mulher que eu vira antes. Ela sorria para mim. Olhei desesperado ao redor, tentando localizar Dom Juan, mas ele não estava à vista. Eu teria voado como um morcego fugindo do inferno se a mulher não me impedisse, agarrando meu braço.

- Por que você deveria estar com tanto medo da pobrezinha de mim? - ela me perguntou em inglês.

Fiquei grudado no lugar onde me ajoelhara. O que me envolveu total e imediatamente foi sua voz. Não consigo descrever o que, no som rouco de sua voz, tocava minhas lembranças mais recônditas. Era como se eu sempre conhecesse aquela voz. Fiquei ali, imóvel, hipnotizado pelo som. Ela me perguntou outra coisa em inglês, mas não consegui entender. Ela sorriu, compreensiva.

- Tudo bem - sussurrou em espanhol. Estava ajoelhada ao meu lado. - Eu compreendo o verdadeiro medo. Vivo com ele. Eu ia falar quando ouvi a voz do emissário em meu ouvido: - É a voz de Hermelinda, sua ama-de-leite. A única coisa que eu sabia sobre Hermelinda era a história que me contaram, que ela fora acidentalmente morta por um caminhão desgovernado. Era uma coisa chocante, para mim, a voz da mulher remexer lembranças tão profundas e antigas. Por um momento experimentei uma ansiedade agonizante.

- Eu sou a sua ama-de-leite! - a mulher exclamou em tom suave. - Que extraordinário! Quer o meu peito? - O riso sacudiu-lhe o corpo. Fiz um esforço supremo para permanecer calmo, mas sabia que estava rapidamente perdendo terreno e que a qualquer momento iria abandonar os sentidos. - Não ligue para minha brincadeira - disse ela em voz baixa. - A verdade é que eu gosto muito de você. Você está borbulhando de energia. E nós vamos nos dar muito bem. Dois homens mais velhos se ajoelharam na nossa frente. Um deles virou-se curiosamente para nos olhar. Ela não prestou atenção e continuou sussurrando em meu ouvido. - Deixe-me segurar sua mão - pediu. Mas seu pedido parecia uma ordem. Entreguei minha mão, incapaz de negar. - Obrigada. Obrigada pela confiança e por acreditar em mim - ela sussurrou. O som de sua voz estava me deixando louco. Sua rouquidão era tão exótica, tão absolutamente feminina! Em nenhuma situação eu a tomaria pela voz de um homem buscando soar feminino. Era uma voz rouca, mas não gutural ou áspera. Era mais como o som de pés descalços andando suavemente sobre cascalho. Fiz um esforço tremendo para romper um lençol invisível de energia que parecia ter-me envolvido. Achei que conseguira.

Levantei-me, pronto para ir embora; e teria ido, se a mulher também não houvesse levantado e sussurrado em meu ouvido: - Não fuja. Tenho muita coisa para lhe contar. Sentei-me automaticamente, preso pela curiosidade. Estranhamente, minha ansiedade se fora de súbito e meu medo também. Cheguei a ter presença bastante para perguntar: - Você é realmente uma mulher? Ela riu baixinho, como uma garotinha. Em seguida falou uma frase tortuosa: - Se você ousa pensar que eu me transformaria num homem terrível e lhe causaria mal, está gravemente enganado - falou acentuando ainda mais aquela voz estranha e hipnotizante. -Você é meu benfeitor, e eu sou sua serva, como fui de todos os naguais que o precederam. Reunindo toda a força que pude, abri-lhe minha mente. - Você é bem-vinda à minha energia - falei. - É minha doação para você, mas não quero que me dê qualquer dom de poder. E realmente estou falando sério. - Não posso tomar sua energia de graça - ela sussurrou. - Eu pago pelo que recebo, este é o acordo. É idiotice dar sua energia de graça. - Eu fui um idiota toda a minha vida. Pode acreditar. Certamente posso me dar ao luxo de lhe fazer uma doação. Não tenho problema com isso. Você precisa da energia, tome-a. Mas eu não preciso ser atrelado com coisas desnecessárias. Não tenho nada, e adoro isso. - Talvez - ela disse pensativa. Agressivamente perguntei se ela estava querendo dizer que talvez tomaria minha energia ou que não acreditava que eu não tinha nada e adorava isso. Ela riu deliciada, e disse que poderia tomar minha energia, já que eu estava oferecendo-a tão generosamente. Mas que tinha de fazer um pagamento. Tinha de me dar uma coisa de valor semelhante.

Enquanto a ouvia falar, percebi que era um espanhol com um sotaque estrangeiro muito extravagante. Ela consistentemente acrescentava fonemas extras à sílaba do meio de cada palavra. Nunca na vida eu ouvira alguém falar assim. - Seu sotaque é extraordinário - falei. - De onde é? - De quase a eternidade - ela disse e suspirou. Havíamos começado a fazer contato. Entendi por que suspirou. Ela era a coisa mais próxima da permanência, enquanto eu era temporário. Essa era a minha vantagem. O desafiador da morte tinha se metido num canto apertado, e eu estava livre. Examinei-a atentamente. Ela parecia estar entre trinta e cinco e quarenta anos de idade. Era uma mulher morena, completamente índia; quase robusta, mas não gorda nem mesmo pesada. Eu podia ver que a pele de seus braços e de suas mãos era lisa; os músculos firmes e jovens. Avaliei que tivesse um metro e sessenta e sete, um metro e setenta, de altura. Usava um vestido comprido, um xale preto e guaraches. Em sua posição ajoelhada eu podia ver os calcanhares lisos e parte das pernas fortes. A cintura era fina. Tinha seios grandes que não podia ou não queria esconder sob o xale. O cabelo era negríssimo e preso numa trança longa. Não era bonita, tampouco sem graça. Suas feições não eram nem um pouco notáveis. Eu sentia que ela não atrairia a atenção de ninguém, exceto pelos olhos, que mantinha baixos, ocultos sob os cílios. Seus olhos eram magníficos, claros, pacíficos. Afora os de Dom Juan, eu nunca vira olhos mais brilhantes, mais vivos. Seus olhos me deixaram completamente à vontade. Olhos como aqueles não podiam ser malévolos. Tive uma onda de confiança e otimismo, e o sentimento de que a conhecera por toda a vida. Mas também estava muito cônscio de outra coisa: minha instabilidade emocional. Ela sempre me assolara no mundo de Dom Juan, forçando-me a agir como um ioiô. Tinha momentos de total confiança e discernimento seguidos por dúvidas e desconfianças abjetas. Esse caso não iria ser diferente. Minha mente suspeitosa veio de súbito com o aviso de que eu estava caindo no feitiço da mulher.

- Você aprendeu espanhol tarde na vida, não foi? - falei só para sair de meus pensamentos e evitar que ela os lesse. - Somente ontem - ela respondeu e soltou um riso cristalino. Seus dentes pequenos, estranhamente brancos, brilhavam como uma fieira de pérolas. As pessoas se viraram para nos olhar. Baixei a cabeça como se estivesse rezando profundamente. A mulher chegou mais perto de mim.

- Existe algum lugar onde possamos conversar? - perguntei. - Estamos conversando aqui - ela disse. - Conversei aqui com todos os naguais de sua linha. Se você sussurrar ninguém vai saber que estamos conversando. Eu estava morrendo de vontade de perguntar sobre sua idade. Mas uma lembrança ajuizada veio me salvar. Lembrei-me de um amigo que, durante anos, vinha colocando todo tipo de armadilha para que eu confessasse minha idade. Eu detestava seus interesses mesquinhos, e agora estava quase entrando no mesmo comportamento. Abandonei-o instantaneamente. Quis falar com ela sobre isso, só para manter a conversa. Ela parecia saber o que se passava em meu pensamento. Balançou meu braço num gesto amigável, como se dissesse que tínhamos compartilhado um pensamento.

- Em vez de me dar um dom, você pode me contar uma coisa que me ajude em meu caminho? - perguntei. Ela balançou a cabeça negativamente. - Não. Nós somos extremamente diferentes. Mais diferentes do que eu acreditava ser possível. Levantou-se e deslizou de lado para fora do banco. Ajoelhou-se destramente ao passar diante do altar principal. Persignou-se e fez um sinal para que eu a acompanhasse até um grande altar lateral, à nossa esquerda. Ajoelhamo-nos diante de um crucifixo de tamanho real. Antes de eu ter tempo de dizer qualquer coisa, ela falou: - Eu vivo há muito, muito tempo. O motivo de ter essa vida tão longa é que controlo os deslocamentos e os movimentos de meu ponto de aglutinação. Além disso não fico aqui em seu mundo por muito tempo. Preciso economizar a energia que consigo com os naguais de sua linha.

- Como é existir em outros mundos? - perguntei. - É como em seu sonhar, só que tenho mais mobilidade. E posso ficar por mais tempo onde quiser. Do mesmo modo que você poderia ficar o quanto quisesse em qualquer um de seus sonhos. - Quando você está neste mundo, fica presa somente a esta área?- Não. Eu vou aonde quero. - E sempre vai como uma mulher? - Eu já fui mulher por mais tempo do que homem. Definitivamente, eu gosto muito mais. Acho que quase me esqueci de como é ser homem. Sou completamente mulher! Pegou minha mão e me fez tocar entre suas pernas. Meu coração batia na garganta. Era realmente uma mulher. - Eu simplesmente não posso pegar sua energia - disse ela mudando de assunto. - Precisamos fazer outro tipo de acordo.

Nesse momento outra onda de raciocínio mundano me assolou. Quis perguntar onde ela vivia quando estava neste mundo. Não precisei verbalizar a pergunta para obter resposta. - Você é muito, muito mais jovem do que eu - falou. - E já tem dificuldade para contar às pessoas onde vive. E mesmo que as levasse à casa que você possui ou pela qual paga aluguel, isso não é onde você vive. - Há tantas coisas que eu queria lhe perguntar, mas só consigo ter pensamentos estúpidos - falei. Eu não apenas tinha pensamentos estúpidos, mas me encontrava num estado de tamanha sugestionabilidade que nem bem ela terminou de dizer que eu sabia o que ela sabia, e senti que sabia tudo, e que não precisava fazer mais nenhuma pergunta. Rindo, falei a ela de minha credulidade.

- Você não é crédulo - ela me assegurou com autoridade. - Você sabe tudo porque agora está totalmente na segunda atenção. Olhe ao redor! Por um instante não pude focalizar a vista. Era exatamente como se estivesse com água nos olhos. Quando organizei a visão, percebi que havia ocorrido algo portentoso. A igreja era diferente, mais escura, mais soturna e, de algum modo, mais dura. Levantei-me e dei dois passos em direção à nave. O que me atraiu os olhos foram os bancos; não eram feitos de tábuas, mas de troncos finos e retorcidos. Eram bancos feitos a mão, colocados dentro de um magnífico edifício de pedras.

Também a luz da igreja era diferente. Era amarelada, e seu brilho fraco lançava as sombras mais negras que eu já vira. Vinha das velas dos muitos altares da igreja. Tive uma noção de como a luz das velas se adequava bem às paredes maciças de pedra e aos ornamentos de uma igreja colonial. A mulher me encarava, e o brilho de seus olhos era ainda mais notável. Eu soube então que estava sonhando, e que ela dirigia o sonho. Mas não tive medo dela nem do sonho. Afastei-me do altar lateral e olhei de novo para a nave da igreja. Havia pessoas ajoelhadas em oração. Muitas pessoas; estranhamente pequenas, morenas, duras. Pude ver suas cabeças baixas ocupando todo o espaço, desde o altar principal. As de perto me olhavam, obviamente, com ar desaprovador. Eu estava boquiaberto com elas e com todo o resto. Mas não conseguia ouvir qualquer ruído. As pessoas se movimentavam, mas não havia nenhum som.

- Não consigo ouvir nada - falei para a mulher; e minha voz soou, ecoando como se a igreja fosse uma concha vazia. Praticamente todas as cabeças viraram em minha direção. A mulher me puxou de volta para a escuridão do altar lateral. - Você ouvirá, se não escutar com os ouvidos - disse ela. - Ouça com sua atenção sonhadora. Parecia que eu só precisava de sua insinuação. Fui subitamente envolto pelo zumbido de uma multidão rezando. Num instante me senti arrebatado. Descobri que aquele era o som mais exótico que eu já ouvira. Quis falar sobre isso com a mulher, mas ela não estava ao meu lado. Procurei-a. Ela praticamente chegara à porta. Virou-se sinalizando para que eu a seguisse. Alcancei-a no átrio. As luzes da rua haviam desaparecido. A única iluminação era a luz da lua. A fachada da igreja também era diferente; inacabada. Blocos quadrados de pedra calcária estavam espalhados. Não havia casas ou prédios em volta da igreja. À luz da lua a cena era fantasmagórica. 

- Aonde vamos? - perguntei.- A lugar nenhum. Simplesmente viemos aqui para ter mais espaço, mais privacidade. Aqui podemos falar até cansar. Pediu que eu sentasse num pedaço de pedra calcária meio cinzelada. - A segunda atenção tem tesouros infinitos para ser descobertos - começou. - O posicionamento inicial em que o sonhador coloca seu corpo é de importância vital. E exatamente nisso está o segredo dos feiticeiros antigos, que já eram antigos na minha época. Pense nisso. Ela sentou-se tão perto que senti o calor de seu corpo. Colocou um braço ao redor de meu ombro e me apertou contra o peito. Seu corpo tinha uma fragrância extremamente peculiar; lembrava-me árvores ou artemísia. Não que ela estivesse usando perfume; todo o corpo parecia exalar aquele odor característico de florestas de pinheiros. Além disso o calor de seu corpo não era como o meu ou como o de qualquer outra pessoa que eu conhecesse. Era um calor suave, mentolado, até mesmo equilibrado. O pensamento que me veio foi que seu calor

pressionaria continuamente, mas sem pressa. Então ela começou a sussurrar em meu ouvido esquerdo. Disse que os dons que proporcionara aos naguais de minha linhagem tinham a ver com o que os feiticeiros antigos chamavam de posições gêmeas. Isto é, a posição inicial em que o sonhador coloca o corpo para começar a sonhar é espelhada pela posição em que ele coloca o corpo energético, nos sonhos, para fixar seu ponto de aglutinação em qualquer local de sua escolha. As duas posições formam uma unidade, disse ela, e os feiticeiros antigos levaram milhares de anos para descobrir o relacionamento perfeito entre duas posições quaisquer. Comentou, com um risinho, que os feiticeiros de hoje em dia nunca terão tempo nem disposição para fazer todo esse trabalho, e que os homens e as mulheres de minha linha eram felizardos por terem-na para dar esses dons. Seu riso teve um som notável, cristalino.

Eu não entendera direito sua explicação sobre as posições gêmeas. Falei, cheio de audácia, que não queria praticar esse tipo de coisa, mas apenas saber delas como possibilidades intelectuais. - O que, exatamente, você quer saber? - ela perguntou em voz suave. - Explique o que quer dizer com posições gêmeas, ou com a posição inicial em que o sonhador coloca seu corpo para começar a sonhar.

- Como você se deita para começar seu sonhar? - De qualquer jeito. Não tenho um padrão. Dom Juan nunca enfatizou esse ponto. Ela mudou de posição. Sentou-se à minha direita e sussurrou em meu outro ouvido que, de acordo com o que ela sabia, a posição em que colocamos o corpo é de importância fundamental. Propôs um meio muito fácil de testar isso realizando um exercício extremamente delicado, porém simples. - Comece o seu sonhar deitando sobre o lado direito, com os joelhos um pouco dobrados. A disciplina é manter essa posição e cair no sono estando nela. No sonhar, então, o exercício é sonhar que está deitado exatamente na mesma posição e cair no sono de novo. - O que isso faz? - perguntei. - Faz o ponto de aglutinação ficar fixo, e estou querendo dizer realmente fixo, em qualquer posicionamento em que ele estiver no instante em que você cair no sono pela segunda vez. - Quais são os resultados desse exercício? - A percepção total. Tenho certeza de que seus professores já lhe disseram que meus presentes são dons de percepção total, não disseram? - Disseram. Mas acho que, para mim, não está claro o que seja a percepção total. Ela me ignorou e prosseguiu, dizendo que as quatro variações do exercício eram: cair no sono deitado sobre o lado direito, sobre o esquerdo, as costas e o estômago. E, no sonhar, o exercício era sonhar que estava caindo no sono uma segunda vez na mesma posição em que o sonhar começara. Prometeu resultados extraordinários que, segundo ela, não se poderia prever. 

Mudou abruptamente de assunto e me perguntou: - Qual é o dom que você deseja? - Nada de dom para mim. Já falei. - Eu insisto. Eu preciso oferecer um dom e você precisa aceitar. Esse é o nosso acordo.

- Nosso acordo é eu lhe dar energia. Então pegue. Isso é por minha conta. Meu presente para você. A mulher pareceu aturdida. E persisti dizendo que não tinha problema que ela tomasse minha energia. Até mesmo disse que gostava imensamente dela. Naturalmente estava falando a sério. Havia nela alguma coisa extremamente triste e, ao mesmo tempo, muito atraente. - Vamos voltar para a igreja - ela murmurou.

- Se quer de fato me dar um presente - falei - me leve para um passeio nesta cidade, à luz da lua. Ela balançou a cabeça afirmativamente. - Desde que você não diga nem uma palavra. - Por que não? - perguntei, mas já sabia a resposta. - Porque estamos sonhando. Isso fará você entrar mais fundo em meu sonho. Explicou que, enquanto ficássemos na igreja, eu teria energia suficiente para pensar e conversar, mas que além das fronteiras da igreja era outra situação. - Por que isso? - perguntei ousado. Num tom extremamente sério, que não somente aumentou sua estranheza mas me aterrorizou, a mulher disse:

- Porque não existe lá fora. Isto é um sonho. Você está no quarto portão do sonhar, sonhando meu sonho. Falou que sua arte era ser capaz de projetar seu intento, e que tudo que eu via ao redor era seu intento. Disse num sussurro que a igreja e a cidade eram resultados de seu intento; elas não existiam, mas existiam. Acrescentou, olhando em meus olhos, que esse é um dos mistérios de Intentar na segunda atenção as posições gêmeas do sonhar. Pode ser feito, mas não pode ser explicado ou compreendido. Contou então que veio de uma linha de feiticeiros que sabiam como se movimentar na segunda atenção projetando seu intento. Os feiticeiros de sua linha praticavam a arte de projetar seus pensamentos no sonhar, com o objetivo de realizar a reprodução fiel de qualquer objeto, estrutura, paisagem ou cenário de sua escolha. Disse que os feiticeiros de sua linha costumavam começar olhando para um objeto simples, memorizando cada detalhe. Em seguida fechavam os olhos, visualizavam o objeto e corrigiam sua visualização comparando com o objeto real, até que podiam vê-lo em sua totalidade, com os olhos fechados. A etapa seguinte em seu esquema de desenvolvimento era sonhar com o objeto e criar no sonho, do ponto de vista de sua percepção, uma materialização total do objeto. Esse ato, segundo a mulher, era chamado de primeiro passo para a percepção total. A partir de um objeto simples, aqueles feiticeiros passavam a usar itens cada vez mais complexos. Seu objetivo final era todos juntos visualizarem um mundo inteiro; em seguida sonhar esse mundo e, assim, recriar um lugar totalmente verídico onde poderiam existir.

- Quando alguns feiticeiros de minha linha conseguia fazer isso – prosseguiu a mulher – ele podia colocar qualquer pessoa em seu intento, em seu sonho. É isso que estou fazendo agora com você, e o que fiz com todos os naguais de sua linha. Ela deu um risinho. - É melhor acreditar. Populações inteiras desapareceram, sonhando assim (os primeiros maias, os Anazasis). É por isso que eu disse que esta igreja e esta cidade são um dos mistérios de intentar na segunda atenção. - Disse que populações inteiras desapareceram assim. Como é possível? - Eles visualizavam e em seguida recriavam nos sonhos o mesmo cenário - ela respondeu. - Você nunca visualizou nada, de modo que para você é muito perigoso entrar em meu sonho. Avisou que é perigoso atravessar o quarto portão e viajar para lugares que só existem no intento de outra pessoa, já que cada item de um sonho desses é um item absolutamente pessoal.

- Ainda quer ir? - perguntou. Falei que sim. E ela me contou mais sobre as posições gêmeas. A essência de sua explicação foi a seguinte: se eu estivesse, por exemplo, sonhando com minha cidade natal e se meu sonho tivesse começado quando eu estava deitado sobre o lado direito, eu poderia facilmente ficar na cidade do sonho, se deitasse do lado direito, naquele sonho, e sonhasse que havia caído no sono. O segundo sonho não seria necessariamente com minha cidade natal, mas seria o sonho mais concreto que se possa imaginar. Ela acreditava que, em meus treinamentos de sonhar, eu devia ter tido incontáveis sonhos de grande concretude, mas assegurou-me que todos eles eram forçosamente falsos. Porque o único meio de ter controle absoluto sobre os sonhos era usando a técnica das posições gêmeas. - E não me pergunte por quê - acrescentou. - Simplesmente é assim. Como tudo. Fez com que eu me levantasse, e de novo me alertou para não falar nem me afastar dela. Tomou gentilmente minha mão, como se eu fosse uma criança, e foi na direção de um agrupamento de silhuetas escuras de casas. Estávamos numa rua calçada com pedras. Pedras de rio que haviam sido socadas no chão. A pressão desigual criara superfícies desiguais. Parecia que quem fizera o calçamento havia seguido os contornos do solo sem se preocupar em nivelá-lo. As casas eram grandes, caiadas de branco. Construções de um andar empoeiradas e cobertas de telhas. Havia pessoas andando em silêncio. Sombras escuras dentro das casas davam a sensação de vizinhos curiosos porém assustados fofocando por trás das portas. Eu podia ver também as montanhas baixas atrás da cidade. Contrariamente ao que acontecera o tempo todo em meu sonhar, meus processos mentais não estavam alterados. Os pensamentos não eram empurrados pela força dos eventos do sonho. E os cálculos mentais diziam que eu me encontrava na versão de sonho da mesma cidade onde Dom Juan vivia, mas numa época diferente. 

Minha curiosidade estava no auge. Eu me encontrava de fato com o desafiador da morte, dentro de seu sonho. Quis observar tudo, ficar super-alerta. Queria testar tudo vendo energia Fiquei embaraçado, mas a mulher apertou minha mão como um sinal de que concordava Ainda me sentindo absurdamente tímido, verbalizei em voz alta meu intento de ver. Em meus exercícios de sonhar eu vinha usando sempre a frase: "Quero ver energia" Algumas vezes eu precisava repetir e repetir até obter resultado. Dessa vez, na cidade de sonho da mulher, assim que comecei a repetir do modo usual ela começou a rir. Seu riso era como o de Dom Juan: um riso profundo e abandonado, de sacudir a barriga. - O que é tão engraçado? - perguntei meio contagiado por sua alegria. - Juan Matus não gosta dos feiticeiros antigos em geral, e de mim em particular - ela disse entre jorros de riso. – Tudo que precisamos fazer, para ver nos sonhos, é apontar o dedo mindinho para o item que desejamos ver. Fazer você gritar assim em meu sonho é o modo dele me mandar sua mensagem. É preciso admitir que ele é realmente esperto. - Parou por um instante e em seguida disse em tom de revelação:- Claro que gritar feito um idiota também funciona.

O senso de humor dos feiticeiros me espantava além da conta Ela parecia incapaz de continuar conversando, de tanto que ria. Senti-me estúpido. Quando ela se acalmou e ficou de novo perfeitamente controlada, disse educadamente que eu poderia apontar para qualquer coisa que quisesse em seu sonho, inclusive para ela mesma. Apontei com o dedo mínimo da mão esquerda para uma casa. Não havia energia nela. Era como qualquer outro item de um sonho comum. Apontei para tudo ao redor, com o mesmo resultado. - Aponte para mim - ela insistiu. - Você deve confirmar que este é o método que os sonhadores usam para ver.

Ela estava absolutamente certa. Aquele era o método. No instante em que apontei o dedo mínimo ela virou uma bolha de energia. Uma bolha de energia muito peculiar, devo dizer. Sua forma energética era exatamente como Dom Juan descrevera: parecia uma enorme concha do mar, enrolada para dentro ao longo de uma fenda que corria por toda a sua extensão. - Sou o único ser gerador de energia neste sonho - falou. - Então, a coisa certa para você fazer é simplesmente observar tudo. Naquele momento fui golpeado, pela primeira vez, pela imensidão da piada de Dom Juan. Ele me fizera aprender a gritar no sonho de modo que eu pudesse gritar na privacidade do sonho do desafiador da morte. Achei esse toque tão engraçado que o riso saiu de mim em ondas sufocantes. - Vamos continuar o passeio - a mulher disse em voz baixa quando meu riso se esgotou.

Só havia duas ruas, que se cruzavam. Cada uma tinha três quarteirões de casas. Andamos toda a extensão das duas ruas, não uma, mas quatro vezes. Olhei para tudo, e com minha atenção sonhadora prestei atenção a todo tipo de ruído. Havia muito pouco, apenas cães latindo a distância, ou pessoas falando em sussurros enquanto passávamos. Os cães latindo me provocaram uma saudade estranha e profunda. Precisei parar de andar. Busquei alívio encostando o ombro numa parede. O contato foi chocante. Não porque a parede fosse incomum, mas porque aquilo em que eu me encostava era uma parede sólida, como qualquer outra parede que eu já tocara. Senti-a com a mão que estava livre. Corri os dedos pela superfície áspera. Era mesmo uma parede.Sua realidade atordoante pôs um fim imediato em minha saudade e renovou o interesse em observar tudo. Eu estava procurando, especificamente, características que podiam estar relacionadas com a cidade de meus dias. Entretanto, não importando o quão atentamente eu  observasse, não obtinha qualquer sucesso. Havia uma plaza naquela cidade, mas ficava na frente da igreja, diante do átrio. À luz da lua, as montanhas ao redor da cidade eram claramente visíveis e quase reconhecíveis. Tentei me orientar, observando a lua e as estrelas, como se estivesse na realidade consensual da vida cotidiana. Era uma lua minguante, talvez um dia depois da cheia. Estava bem alta acima do horizonte. Pude ver Órion à direita da lua; suas duas estrelas principais, Betelgeuse e Rigel, formavam uma horizontal com a lua. Avaliei que fosse início de dezembro. Meu tempo era maio. Em maio, naquela época, Órion não estava à vista. Olhei para a lua o quanto pude. Nada mudou. Até onde eu poderia dizer, era a lua mesmo. A disparidade de tempo me deixou muito agitado. Enquanto examinava o horizonte sul, pensei que podia distinguir o mesmo pico em forma de sino que era visível do quintal de Dom Juan. Tentei em seguida descobrir onde sua casa poderia ter estado. Por um instante pensei ter descoberto. Instantaneamente fui possuído por uma tremenda ansiedade. Soube que precisava voltar à igreja porque, se não o fizesse, cairia morto ali. Virei-me e fui na direção da igreja. A mulher rapidamente me agarrou a mão e foi atrás. Enquanto nos aproximávamos quase correndo, percebi que a cidade naquele sonho estava atrás da igreja. Se eu tivesse levado isso em consideração, talvez pudesse me orientar. Do jeito que a coisa ia, eu não tinha mais atenção sonhadora. Concentrei-a toda nos detalhes arquitetônicos e ornamentais da parte de trás da igreja. Eu nunca vira aquela parte do prédio no mundo da vida cotidiana, e achei que, se pudesse gravar suas características na memória, talvez pudesse comparar mais tarde com os detalhes da igreja real. Esse foi o plano que imaginei no calor do momento. Mas alguma coisa dentro de mim zombou de meus esforços de confirmação. 

Durante todo o meu aprendizado eu me atormentara com a necessidade de objetividade que me forçara a conferir e reconferir tudo que havia no mundo de Dom Juan. Entretanto não era a confirmação que estava em jogo, mas a necessidade de usar esse impulso de objetividade como uma bengala que me protegesse nos momentos de distúrbio cognitivo mais intenso; depois, quando chegava a hora de checar o que eu verificara, eu nunca o fazia. Dentro da igreja a mulher e eu nos ajoelhamos no pequeno altar da esquerda, onde havíamos estado, e no instante seguinte acordei na igreja iluminada de minha época. A mulher persignou-se e se levantou. Fiz o mesmo automaticamente. Ela pegou meu braço e começou a andar em direção à porta. - Espere, espere! - falei, surpreso de ainda poder falar. Não conseguia pensar claramente, mas queria fazer uma pergunta difícil. O que eu queria saber é como alguém poderia ter energia para visualizar cada detalhe de uma cidade inteira. Sorrindo, a mulher respondeu minha pergunta não verbalizada: disse que era muito boa em visualizar, porque depois de toda uma vida fazendo isso, ela tivera o tempo de muitas, muitas vidas para aperfeiçoá-lo. Acrescentou que a cidade que eu visitara e a igreja onde havíamos conversado eram exemplos de suas visualizações recentes. A igreja era a mesma onde Sebastian fora sacristão. Ela se propusera a tarefa de memorizar cada detalhe de cada canto daquela igreja e da cidade devido à necessidade de sobreviver. Terminou a fala com uma observação perturbadora. 

- Como você sabe um bocado sobre essa cidade, mesmo nunca tendo tentado visualizá-la, está me ajudando a intentá-la. Aposto que você não acreditará se eu disser que esta cidade para a qual está olhando não existe realmente fora de seu intento e do meu. Encarou-me e riu de meu sentimento de horror, já que eu acabara de perceber totalmente o que ela dizia.

- Ainda estamos sonhando? - perguntei atônito. - Estamos - falou. - Mas este sonhar é mais real do que o outro, porque você está me ajudando. Não é possível explicar isso, além de dizer que está acontecendo. Como tudo o mais. - Ela apontou ao redor. - Não é possível dizer como isso acontece, mas acontece. Lembre-se sempre do que eu disse: este é o mistério de intentar na segunda atenção. Puxou-me suavemente para perto. - Vamos passear até a plaza deste sonho. Mas talvez eu deva me arrumar um pouquinho, para você ficar mais à vontade. Olhei sem compreender enquanto ela, com enorme destreza, mudava de aparência. Fez isso com manobras muito simples, comuns. Tirou a saia comprida, revelando a saia de comprimento médio que estava usando por baixo. Em seguida enrolou a trança comprida num coque; trocou os guaraches por sapatos com três centímetros de salto, que tirou de uma pequena bolsa de pano. Virou pelo avesso o xale reversível e ficou com uma estola bege. Parecia uma típica mulher mexicana de classe média, vindo da cidade grande, talvez numa visita àquele lugarejo. Pegou meu braço com uma segurança feminina e guiou-me em direção à plaza. 

- O que aconteceu com sua língua? - falou em inglês. O gato comeu? Eu estava totalmente absorto com a possibilidade impensável de que ainda continuava num sonho; e o que é mais, estava começando a acreditar que, se fosse verdade, eu corria o risco de nunca acordar. Num tom indiferente, que não consegui reconhecer como meu, falei:- Até agora eu não tinha me conscientizado de que você havia falado antes em inglês. Onde aprendeu? - No mundo. Eu falo muitas línguas. - Parou e me examinou. - Tive tempo suficiente para aprender. Como vamos passar muito tempo juntos, algum dia vou ensinar minha língua a você - ela riu, sem dúvida de meu ar desesperado. Parei de andar. - Vamos passar muito tempo juntos? - perguntei traindo meus sentimentos. - Claro - ela respondeu num tom alegre. - Você vai, e devo dizer que muito generosamente, me dar sua energia de graça. Você mesmo disse isso, não foi? Eu estava pasmo. - Qual é o problema? - a mulher perguntou, voltando para o espanhol. - Não diga que se arrependeu da decisão. Nós somos feiticeiros. É tarde demais para mudar de ideia. Não está com medo, está? Eu estava mais do que aterrorizado, mas se me pedissem para descrever na hora o que me aterrorizava, eu não saberia. Certamente não estava com medo de me encontrar em outro sonho com o desafiador da morte, ou de perder a mente ou mesmo a vida. Estaria com medo do mal? - perguntei-me. Mas o pensamento do mal não suportaria um exame. Em resultado de todos aqueles anos no caminho dos feiticeiros, eu sabia sem sombra de dúvida que no universo só existe energia; o mal é simplesmente uma concatenação da mente humana, esmagada pela fixação do ponto de aglutinação em seu posicionamento habitual. Em termos lógicos não havia nada de que eu pudesse ter medo. Sabia disso, mas também sabia que minha fraqueza real era não ter fluidez para fixar meu ponto de aglutinação instantaneamente em qualquer posicionamento novo para o qual ele fosse deslocado. O contato com o desafiador da morte estava deslocando meu ponto de aglutinação numa taxa tremenda, e eu não tinha a capacidade para me adaptar ao empuxo. O resultado era uma vaga pseudosensação de medo de que eu não pudesse acordar. 

- Não há problema - falei. - Vamos continuar nosso passeio no sonho. Ela grudou o braço ao meu e chegamos em silêncio ao parque. Não era em absoluto um silêncio forçado. Mas minha mente corria em círculos. Que estranho, pensei; há pouquíssimo tempo eu tinha andado com Dom Juan do parque até a igreja, no meio do medo normal mais aterrorizante. Agora estava voltando da igreja ao parque com o objeto de meu medo, e estava mais aterrorizado do que nunca, mas de um modo diferente, mais maduro, mais mortal. Para aliviar minhas preocupações, comecei a olhar ao redor. Se isso era um sonho, como eu acreditava, havia um meio de provar ou negá-lo. Apontei o dedo para as casas, para a igreja, para o calçamento da rua. Apontei para pessoas, a quem eu parecia assustar consideravelmente. Senti sua massa. Eram tão reais quanto qualquer coisa que considero real, só que não geravam energia. Nada naquela cidade gerava energia. Tudo parecia verdadeiro e normal, e mesmo assim era um sonho. Virei-me para a mulher, que estava agarrada ao meu braço, e questionei-a a respeito. - Nós estamos sonhando - ela disse em sua voz rouca, e deu um risinho. - Como as pessoas ao nosso redor podem ser tão reais, tão tridimensionais? - É o mistério de intentar na segunda atenção! - ela exclamou reverente. - Essas pessoas aí são tão reais que têm até pensamentos.

Notas

¹ A Cabala Mística, de Dion Fortune, 14, página 14.

² E a Sofia da Epinoia, sendo um aeon, concebeu um pensamento dela mesma pela concepção do Espírito invisível e pela previsão. Ela queria produzir reinos por conta própria sem o consentimento do Espírito (ele não havia aprovado), sem o cônjuge dela, e sem a apreciação dele. E, embora a pessoa da masculinidade dela não tinha aprovado, e ela não tinha obtido a autorização, e ela havia pensado sem o consentimento do Espírito, mesmo assim ela prosseguiu. E devido ao poder invencível que existe nela, o pensamento dela não permaneceu inativo, e algo que era imperfeito e diferente de sua aparência saiu dela, porque ela havia criado aquilo sem seu cônjuge. E era diferente da aparência da mãe, pois tinha uma outra forma.

E quando ela viu as consequências do seu desejo, aquilo se transformou numa serpente com cabeça de leão. E os olhos dele eram como chamas com clarão. Ela o lançou para fora dela, para fora daquele lugar, para que nenhum dos imortais o visse, porque ela o havia criado em ignorância. E ela o rodeou com uma nuvem luminosa, e ela colocou um trono no meio da nuvem para que ninguém visse exceto pelo Espírito sagrado, que é chamado a mãe dos vivos. E ela o nomeou Yaldabaoth.

Este é o primeiro arconte que tomou um grande poder da mãe dele. 

E ele se separou dela, e se dirigiu para longe do lugar em que ele tinha nascido. Ele ficou forte, e criou para si outros aeons com uma chama de fogo luminoso que ainda existe hoje. E ele se juntou com a arrogância que existe nele, e gerou autoridades para si - Evangelhos Apócrifos de João - versão longa.

³ "Os novos videntes, de acordo com sua prática, acharam oportuno encabeçar sua classificação com a fonte primária de energia, o único e absoluto governante do universo, e chamaram-no simplesmente de tirano" - O Fogo Interior, de Carlos Castaneda, E. Record, 3ª edição, página 28.

⁴ "O poder que governa o destino de todos os seres vivos é chamado a Águia, não por ser uma águia ou ter qualquer relação com ela, mas por aparecer ao observador como uma incomensurável águia negra, na sua postura ereta, com o corpo voltado para o infinito".

"Quando o observador olha a negrura de águia, quatro labaredas de luz revelam como a Águia é. A primeira labareda, como um relâmpago, ajuda o observador a perceber os contornos do seu corpo; vê partes brancas semelhantes às suas penas e garras. A segunda revela as asas adejantes ao vento em sua negrura. Com a terceira labareda o observador nota o olho penetrante, impiedoso. E com a quarta e última labareda vê o que a Águia está fazendo".

"A Águia está devorando a consciência de todas as criaturas que, vivas até pouco antes ou já mortas, flutuaram para o seu bico, como um enxame incessante de vagalumes indo ao encontro de seu dono, de razão de terem tido vida. A Águia desemaranha essas chamas mínimas, coloca-as no chão, como um curtidor esticando um couro, e então as consome; pois a consciência é o seu alimento".

"A Águia, aquele poder que governa os destinos de todas as coisas vivas, reflete equanimemente e subitamente sobre todas essas coisas vivas. Não há nenhum modo, portanto, do homem suplicar à Águia, pedir favores, esperar sua misericórdia. A parte humana da Águia é insignificante demais para mexer com o seu todo" - O Presente da Águia, 10ª edição, página 142, Ed. Record.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A Paixão do Guerreiro




Adiante,
quem quer que esteja
tocando as portas da alma.
Adiante,
que quero que veja como estou chorando de amarga dor.
É tão difícil sentir tanta amargura
que não me importa terminar na loucura.
Se já morreu meu velho amor, agora te digo:
se já não tenho valor,
se já não tenho valor,
de nada sirvo.
Adiante,
quem quer que esteja tocando as portas da alma.
Adiante,
que quero que veja como estou sofrendo,
como estou morrendo pelo meu velho amor.

Esta canção está dedicada a algo abstrato, o velho amor que o bruxo sente por navegar:

A paixão do guerreiro.

Todos sabemos que isso é o único que temos.
Faz muitíssimos anos que o homem interrompeu sua viagem ao infinito que é o único que queremos.
Estamos envoltos nesta vida que nos rouba tudo o que podemos ser.
Temos que lutar para apagar o eu pessoal.

Conferência de Taisha Abelar - México 1996

A paixão é um dos fundamentos do caminho do guerreiro.

Sem paixão não somos nada. 

Não é uma das premissas principais, mas é um centro que pode unificar os diferentes postulados do caminho do guerreiro. 

O caminho do guerreiro é um postulado filosófico. 

A força coesiva desses princípios é a paixão.

Dom Juan falou de outra força coesiva, a força vibratória que mantem as coisas juntas. Dizia que os seres humanos estão formados por muitos conjuntos de energia que a força vibratória mantem junta, já que sem ela tudo se desintegra. Esta força mantem tudo unido, não apenas o que tem vida, mas também as rochas, as galáxias, etc... Os bruxos chamaram a esta força de "força aglutinante vibratória". Os bruxos demoraram a compreender esta força e quiseram controlá-la, porém não puderam, apenas puderam usá-la como modelo para explicar o caminho do guerreiro, porém agregaram um elemento que fez possível a coesão do conceito: A PAIXÃO.

A paixão pode destruir aos bruxos. Os bruxos podem passar através de tudo, exceto por esse centro que é a paixão, quando a encontram se desmantelam, chegando a desmembrar-se. A paixão pode cortar qualquer coisa. A paixão não tem que ser sagrada para destruir. Quando o bruxo fala de paixão não é de algo sagrado e sim de um sentimento engendrado com um propósito, é uma fixação contínua.

Não é a ira, a cólera ou a vingança, que são explosões momentâneas de emoções no ser humano que duram apenas um instante. A verdadeira paixão não pode vir seguida de remorsos e nunca pede desculpas. É bom que estas explosões de paixão não sejam tão comuns, já que se vão seguidas de importância pessoal tornam-se destruidoras

Todos os recursos dos bruxos estão voltados para que a paixão não se misture com a importância pessoal. 

Os bruxos querem usar a paixão para romper com o habitual. O máximo esforço está em permitir que a força da paixão permita ao bruxo viajar, viajar com uma força que não tem definição. A paixão é uma amálgama, uma mescla de sentimentos: curiosidade, alegria por conhecer...

O velho nagual estabelecia qualquer tarefa para que seus discípulos alcançassem a paixão. O romance com o conhecimento é uma forma de acercar-se da paixão.

Transa aborrecida

Para noventa e nove por cento das pessoas é muito difícil sentir paixão. Se não fomos concebidos com paixão como vamos chegar a senti-la? 

A condição prévia para a paixão é não ter ego, para isso, o primeiro passo é cuidar de algo ou de alguém.

No caso de Castaneda, Dom Juan o encarregou de cuidar de uma criança de 5 semanas de vida até os cinco anos. Então a família real do menino foi à sua procura e o levou. Castaneda lutou para ter o menino com ele, encontrava-se desolado, e perdeu a batalha legal pela posse do menino. O velho nagual disse que era inútil lutar contra possibilidades avassaladoras. Disse que Carlos havia conseguido sua tarefa por que o menino havia forjado nele o fogo da paixão. Este fogo estaria presente para sempre, já que é perene, nunca se extingue.

Taisha foi incumbida de estabelecer amizade com objetos. 

Para fixar a paixão com objetos inanimados não há limites. Ela sentia paixão por seu pequeno quarto aonde ninguém podia entrar se ela não estava. Também com seu rádio e com sua televisão, que cuidava e conversava, não permitindo veicular programas desagradáveis ou ruins, via apenas programas agradáveis. A televisão só funcionava para ela, apenas quando pedia por favor é que a tv punha-se a funcionar para outra pessoa.

Em uma ocasião emprestou-a a uma amiga pedindo-lhe que funcionasse, porém a usou outra pessoa e ela não funcionou; esta pessoa, pensando que a tv encontrava-se escangalhada, jogou-a no lixo, onde Taisha a encontrou. Ela sentiu uma pena muito grande ao ver sua tv no lixo, a recolheu, a limpou , e sua tv voltou a funcionar. Mais adiante a tv foi roubada e Taisha foi lamentar-se com Dom Juan pela sua má sorte. Dom Juan lhe disse que ela apenas poderia fazer uma coisa por sua tv: dizer-lhe em voz alta que onde estivesse, funcionasse.

O propósito da linhagem de Dom Juan era reconstruir algo do nada.

Os bruxos, à princípio, eram apenas lixo humano, porém pelo intento e pela paixão vão reconstruindo a si mesmos. Dom Juan reconstruiu a seus discípulos guiado pela paixão do guerreiro e logo os deixou livres. Tal como Taisha fez com sua tv. Antes de deixá-los ir, lhes disse: Vão, recordem o que construíram e façam o melhor que puderem.

Da paixão pelos objetos, Taisha passou a paixão pelos seres humanos e então entendeu por que a paixão pode destruir uma pessoa, por que pode converte-la em cinzas.

Dom Juan começou a falar da arte da espreita, para Taisha, explicando antes que a arte do sonhar está relacionada como uma configuração energética específica. A arte da espreita é a capacidade de fixar o ponto de aglutinação em uma nova posição dentro do ovo luminoso. Se o ponto de encaixe não está fixo, a percepção no sonhar não é coerente, podem haver flashes, porém não há coerência.

O treinamento do espreitador começa através da personificação de papéis. Dom Juan chamava isto de atuar no teatro do real. Não é o trabalho de um ator, e sim do bruxo que não tem para onde ir, já que qualquer lugar é sua casa. Personificar o papel até o limite produz paixão, porque a espreita fixa o ponto de encaixe em uma posição distinta, que é a da paixão, qualquer que seja esta posição onde o ponto de encaixe se fixe.

Taisha conta a estória da espreita de Ricky. Seu mal comportamento com o dono de uma casa em que vivia fez com que o mesmo adoecesse. O homem havia tratado-o sempre muito bem, apesar da impertinência e arrogância de Ricky, porém como o homem era amável e gentil, por natureza, o permitiu. Taisha estava tranquila porque pensava que esse senhor era do grupo de Dom Juan e ela era apenas um pequeno tirano. Quando o senhor adoeceu, ela se deu conta de que não era bem assim e de que, em realidade, existe gente boa, de fato. Ela não esteve atenta ao que se passava, não espreitou ao senhor, do contrário, haveria evitado a sua enfermidade.

Na paixão o tempo não conta, só existe o momento. Os bruxos se preparam para sentir paixão para a viagem definitiva.

A história de um guerreiro não é de autocompaixão. A autocompaixão nos debilita, nos adoece, nos dissipa. A história dos guerreiros são histórias de ação, de mudança e realização. A mudança não sucede, de repente, tem-se que lutar a cada momento.

A história de Ricky é um símbolo que se aplica. Sempre existe alguém que nos ajuda livremente, sem interesses, como o benfeitor de Ricky. No caminho do guerreiro tudo são símbolos que se aplicam a nós mesmos. Qualquer um pode vender as "ferramentas" do nagual, se não estamos vigilantes, assim como Taisha vendeu as ferramentas do seu benfeitor. Atuamos por interesse pessoal, conforto, descuido, covardia, desejo de ser amado, porém quando se vê o infinito frente à frente se entende que essas razões são inúteis.

Todos temos o infinito diante de nós, mas não o percebemos, necessitamos valentia, valor para seguir adiante. A canção recorda como somos inúteis. Se não temos paixão então para nada servimos.

Transcrito do seminário do México em 1996 - T.A.
EXTRAÍDO DE UMA CONFERÊNCIA DE FLORINDA DONNER- GRAU / MÉXICO 1996

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Sobre a vaidade



Diferente da noção de pecado da religião cristã o Xamanismo Guerreiro (X.G.) compreende a vaidade como um paradoxo, como um centro de onde surge tanto o positivo quanto o negativo quando se trata de alcançar o núcleo daquilo que nos define.

Talvez a grande diferença para o X.G. está no fato de seus praticantes operarem com uma vaidade que não necessita de aprovação do outro, de reconhecimento social ou de qualquer impulso exterior para tornar-se um elemento de realização pessoal.

Para o Xamanismo Guerreiro a vaidade não é pecado, é uma energia de ordem emocional que precisa ser direcionada não por normas morais e sociais, mas para o propósito abstrato de desenvolver todo o potencial humano.

Assim há para o XG uma vaidade que nos serve e há uma vaidade imprestável. Nossa tarefa é desnatar uma da outra. Mas ela não são duas vaidades, dois tipos de vaidade, há uma vaidade apenas que precisa ser direcionada não para atender aos ditames da ordem social mas para alcançar o intento da liberdade de ser.

"— A vaidade não é algo simples e ingênuo — explicou. — De um lado, é o núcleo de tudo que é bom em nós e, por outro, o núcleo de tudo que não presta. Livrar-se da vaidade que não presta requer prodígios de estratégia. Através dos tempos, os videntes renderam homenagens àqueles que conseguiram" - O Fogo Interior, de Carlos Castaneda (← download no hiperlink).

Essa vaidade que presta talvez surja de uma satisfação pessoal, de uma realização interior, de uma felicidade que brota do guerreiro ou da guerreira quando segue aquilo que o nagual Juan Matus chamou de "o caminho do coração" sem que haja a necessidade ou a carência de um carimbo sociocultural.

Sobre a vaidade imprestável

A maior dificuldade que enfrentamos ao informar as pessoas que elas estão sendo enganadas é a vaidade, pois ninguém quer acreditar que foi enganado por tanto tempo sem perceber que estava sendo.

A maior prova disto é quando a informação revelada se dá no âmbito das relações cotidianas, pois ninguém quer acreditar que o outro, que é como você, mais um na multidão, está de posse de um conhecimento desse nível, então você acaba por ser taxado de teórico da conspiração ou paranoico de plantão. Mesmo que as informações sejam passadas com clareza, lógica e evidências o aparente ceticismo está cimentado numa vaidade tão estruturada que é muito difícil a pessoa ceder diante de argumentos mesmo cabais.

Assim uma definição possível de vaidade é o culto do reflexo das próprias crenças.

Fanatismo, ceticismo, estupidez e paranoia são apenas variações conceituais da mesma vaidade.

O principal objeto de culto dessa vaidade chama-se TV, que se tornou uma projeção na mente da maioria das pessoas. Ainda há tempo, desligue-a. A gente se vê por aqui, ou por aí.

Contudo, a informação pura e simples, mesmo embasada em dados reais não é suficiente para amparar novas decisões, pois estas não são tomadas no nível puramente racional, precisam atingir camadas mais profundas da psique. Sabedores disso alguns, desde o início do século passado, amparado nas teorias de Freud, resolveram utilizar tal informação para simplesmente manipular as pessoas em seus pontos mais fracos: vaidade, luxúria e medo.

Assim uma mulher pode ter mais de 40 pares de sapato, um homem ter um potente Porsche para trafegar no trânsito de Sampa e um humilde trabalhador pode torcer por seu time de jogadores milionários simplesmente porque isso os faz se sentirem do jeito que a propaganda lhes sugeriu, mesmo que seja absolutamente desnecessário e até mesmo completamente absurdo.

O consumismo não é o consumo de coisas, mas sim de emoções.

Assim nós, as pessoas, nos tornamos produtos que consomem produtos para satisfazer desejos e emoções artificialmente induzidas. Por exemplo: a emoção propiciada pela certeza e pelo senso comum nos dá uma sensação de (pseudo)segurança e dizemos em alto e bom som: - Teoria da conspiração! E assim seguimos um comando sintático, um clichê produzido pelo sistema dominante. Consumimos a produção intelectual do sistema sem nos darmos conta. Nos acreditamos bem informados quando somos apenas bem domesticados.

Vaidade, vanitas, vanus, vazio, futilidade, ilusório são palavras interligados ao consumismo atual, onde consumimos a nós mesmos por nada, esquecendo do segundo princípio da espreita de si: eliminar tudo aquilo que é supérfluo em nossa vida, fazendo-a convergir assim para o propósito maior: a liberdade de perceber.

Como diz o diabo de Al Pacino no filme Advogado do Diabo: a vaidade é o meu pecado predileto.

A sorte é que alguns de nós estamos conscientes, em certo nível, de nossa própria vaidade. E podemos rir dela.

DR



sábado, 9 de dezembro de 2023

O bruxo, homem só e sem pátria


Entrevista com Carlos Castaneda publicada em 1976
Fonte: Revista Veja nº356 -1976


Após quinze anos de lições, o brasileiro, talvez peruano ou americano, aprendeu a não ter biografia nem raízes.

Desde que começou a relatar em livros seus encontros com Don Juan, que remontam a 1960, Carlos César Aranha Castaneda transformou-se na mais invisível e impalpável personalidade literária da atualidade. Fragmentos incompletos de sua biografia apareceram nas duas únicas publicações a que concedeu entrevista, as revistas Time e Psychology Today, não se deixou fotografar nos últimos dez anos e não se preocupou em esclarecer algumas dúvidas cruciais. Assim, ele teria nascido no interior de São Paulo, no dia de natal de 1935, segundo disse ao Time. Mas, de acordo com a revista, o nascimento de deu dez anos antes numa cidade do Peru.
 
Comunicado desta descoberta, Castaneda reagiu de maneira impecável para um aprendiz de feiticeiro que aspira apagar sua identidade pessoal: "Estas estatísticas não significam nada. Importante o que nós somos, não o que éramos". Assim, com essa nacionalidade incerta e com uma idade que caminharia para os 40 ou 50 anos, embora certamente aparentasse menos, os únicos sinas da existência terrestre de Castaneda eram um Volkswagen e duas casas de sua propriedade, na Califórnia. No começo do ano passado, o estudante brasileiro Luiz André Kossobudzki, então bolsista de educação na Universidade da Califórnia (UCLA), encontrou-o num jantar beneficiente ao lado de personalidades literárias "normais", como Irving Stone e Irving Wallace. Quinze meses depois, no fim de março último, recebeu de Castaneda os negativos das fotos que o autor tirara no México, e que VEJA publica junto com esta entrevista exclusiva, à qual o entrevistado impôs a condição de que deveria ser publicada no Brasil antes de qualquer outro país. Kossobudzki recorda os seus encontros:

"Eu, minha mulher e mais quatro casais de bolsistas estrangeiros éramos talvez os únicos convidados ao jantar que não tínhamos os nomes gravados em alguma placa de honra. 

Tentamos, sem conseguir, um lugar na mesa de Castaneda, mas depois do jantar ele mesmo veio até nós. Disse-lhe logo que não acreditava ser ele brasileiro. Começamos a falar em inglês, mas logo depois ele se dirigiu até nós com lusitana fluência (inclusive sotaque) e afirmou ter nascido no interior do estado de São Paulo, numa cidade do vale do Paraíba, e que passara parte de sua infância em Juqueri* .Combinamos então nos encontrar novamente para uma feijoada, mas Castaneda desapareceu por vários meses. Um telefonema do seu agente literário informou que ele ainda estava interessado em me ver. 

Finalmente, conversamos três vezes, uma na minha casa e outras duas no campus da UCLA, onde ele trabalha de catorze a dezoito horas diariamente, em suas pesquisas sobre ético-hermenêutica (estudos da interpretação perceptiva de diferentes grupos étnicos). Castaneda aparenta ter 35 anos, 1,70 metros de altura e uns 70 quilos. Fisicamente, passaria por caboclo mato-grossense ou mesmo nordestino".

*Não existe nenhum município paulista com esse nome. Juqueri, no entanto, é o nome de um estabelecimento para doentes mentais no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, que costuma ser confundido com o nome do hospital. Juquiri é o nome antigo do município de Mairiporã, também na Grande São Paulo.

Aprendendo a viver com a bruxaria
 
VEJA - Quando se lê sobre Don Juan, tem-se a impressão que ele é um homem pobre e com um vasto conhecimento da vida. O senhor poderia falar de sua surpresa ao encontrá-lo de terno em "Porta para o Infinito"?
 
CASTANEDA - Tremi de medo, pois estava acostumado a vê-lo somente em roupas de campo. Isto ocorreu na fase final dos ensinamentos e tinha uma razão de ser. Don Juan revelou-me que era proprietário de diversas ações na Bolsa de Valores, e tenho quase certeza que se ele fosse um homem tipicamente ocidental estaria vivendo em um apartamento de cobertura no centro de Nova York. Finalmente aprendi que as duas realidades poderiam ser divididas no que Don Juan denominava tonal (consciente) e nagual (que não se fala). Na realidade do consenso social, o bruxo, o homem de conhecimento, é um perfeito "tonal" - um homem do seu tempo, atual, que usa o mundo da melhor forma possível. Nós usamos história como uma forma de recapturar o mundo passado e planejar para o futuro. Para o bruxo, passado é passado e não existe história pessoal nem coletiva.

 VEJA - O principal de seu encontro com Don Juan está escrito no livro "The teachings of Don Juan"(na versão brasileira, a Erva do Diabo"), mas em lugar nenhum existe menção de exatamente onde estiveram. Seria possível uma descrição mais detalhada do local?
 
CASTANEDA - Na fronteira entre os Estados da Califórnia (Estados Unidos) e Sonora (México) existe uma cidade chamada Nogales. Partindo de Nogales, a rodovia principal passa pela cidade de Hermosillo, capital de Sonora, pela cidade de Guayamas e finalmente cruza a Estácion de Vicam. A oeste da Estação de Vicam, em direção ao Pacífico, encontra-se a cidade de Vicam, habitada em sua maioria por índios yaquis. Vicam é o local onde pela primeira vez encontrei Don Juan. Perto de lá obtive os ensinamentos.

 VEJA - Para não tirar a liberdade de Don Juan, até hoje o senhor não havia revelado este local. Como agora se sente livre em descrevê-lo com exatidão?
 
CASTANEDA - Porque agora ninguém conseguiria achar Don Juan; ele não está mais por lá, e Don Genaro também sumiu das montanhas do México Central (Sierra Madre Ocidental). Não existe jeito nenhum de encontrá-los. Don Juan me mostrou e ensinou tudo o que ele podia e por isso não há necessidade de que ele permaneça à minha disposição. Da mesma forma, você sabe que se quiser me encontrar é só ir até a UCLA, deixar um recado ou me procurar na biblioteca de pesquisas. Mas, se eu deixar de vir à UCLA, você não terá a mínima ideia de onde me encontrar. Como Don Juan, procuro viver como feiticeiro.

 VEJA - Muitas pessoas, eu inclusive, encontram dificuldades em aceitar factualmente as descrições dos ensinamentos de Don Juan. O senhor se preocupa com o fato de as pessoas reagirem dessa forma?
 
CASTANEDA - Não, porque não dou ênfase na importância de minha pessoa, este é um ponto crucial dos ensinamentos que recebi de Don Juan. Raramente converso com alguém, e quando converso é face a face. Nada de gravadores ou fotografias, que trariam peso sobre a minha pessoa. Além de ferir uma das premissas básicas de feitiçaria e bruxaria, eu estaria tolhendo minha própria liberdade. Quando enfatizo a minha pessoa, estou me tachando a mim mesmo, estou colocando nas minhas costas um peso que vai além das minhas possibilidades de carregá-lo. Colocar tal peso nas costas é dar uma enorme importância à minha própria pessoa. Durante os ensinamentos, Don Juan fazia esboços na areia do deserto com o dedão do pé e preenchia os círculos com verbosidade. Ele dizia que "cargase a uno mismo" conduz a pessoa a um senso "importância personal" que combinados não permitem "acciones" por parte da pessoa. Quanto mais peso as pessoas acumulam, mais importantes elas se sentem, e menos ações elas executam.

 VEJA - Por que então publicou seus livros?
 
CASTANEDA - Porque esta era a minha tarefa. O bruxo cumpre tarefas que são colocadas em lugar do peso sobre si mesmo e da importância pessoal. Meu trabalho não é feito de erudição, mas uma recoleção da vida que Don Juan colocou em seus ensinamentos. O bruxo cumpre as tarefas que lhe dão com satisfação. Ele as cumpre sem esperar por reconhecimento da sociedade ou coisa que o valha, o que seria o "carregar-se a si mesmo" exercitado pelo erudito, com o objetivo de obter importância pessoal, o que não é meu caso. Por exemplo, se esta entrevista for tomada como um ato de bruxaria, ela se torna uma tarefa a ser cumprida.
 
VEJA - Esta entrevista, seu trabalho, sua obra, e mesmo o fato de trocarmos idéias por várias horas, tem um efeito que me parece ir além do simples cumprimento de tarefas. Elas lhe trazem satisfação, caso contrário não as faria. Além do mais, o senhor espera que sua mensagem, os ensinamentos de Don Juan, tenham um impacto sobre público. Não seria este o caso de cumprir tarefas e esperar pelo reconhecimento da sociedade?
 
CASTANEDA - Eu cumpro minhas tarefas tão fluidamente que elas não me afetam em termos de auto-importância, mas sim em termos de como vivo minha vida. Conheço dúzias de "professores" que se colocam numa torre de marfim de conhecimento: eles sabem tudo, e comandam o espetáculo para as galerias; quanto mais aclamados, ou quanto mais reconhecimento eles recebem, mais auto-importantes se sentem, mas esta mesma auto-importância se torna peso, a cruz a ser carregada, e eles como pessoas não são nada. O trabalho as afeta em termos de auto-importância, mas não em termos de vida pessoal. A mim o trabalho afeta em termos de vida pessoal, mas não de auto-importância. Don Juan me alertou e aconselhou que nunca me tornasse um pavão, "pavo real", que é o resultado à ênfase da importância pessoal. Quanto menos a pessoa pensa e "pseudo-age" em termos de auto-importância ela se torna mais completa. E quanto mais auto-importante se sente, mais incompleta se torna. O ser incompleto nasce da incessante procura por reconhecimento social.
 
VEJA - Mas se a pessoa age, não estaria automaticamente à procura de auto-reconhecimento?
 
CASTANEDA - Não, se estiver agindo como um bruxo. O bruxo vive a vida por si e para si e não para as galerias. Ele não se deixa influenciar pelas reações de consenso social, pois não age em termos de auto-importância. Ele sabe "parar o mundo", ou melhor, ele tem a capacidade de "não fazer".

O "mundo parado", por um passe de mágica.
 
VEJA - E que significa "fazer, "não fazer" e "parar o mundo"?
 
CASTANEDA - O objetivo final do bruxo é se tornar um "homem de conhecimento, mas antes ele tem que aprender a viver como um guerreiro-pirata. Ele tem que ser um impecável caçador à procura de coragem e disciplina. O guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina. Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente olhar. Ele ensinou-me a interpretar o mundo não pelo que se apresenta na superfície, mas pela essência. Porém, antes poder enxergar e interpretar o mundo como um guerreiro-pirata, como um bruxo, tive que aprender como "não fazer", como "parar o mundo". Como você pode notar, é quase que uma taxinomia de tarefas. Para se ter o entendimento de "não fazer" é necessário explicar o significado de "fazer". "Fazer" é o consenso que torna o mundo existente. O mundo da nossa realidade é realidade porque estamos envolvidos no "fazer" dessa realidade. As pessoas nascem com uma auréola de força, poder, que se desenvolve e se entrelaça com o consenso dominante. As pessoas olham o mundo da forma como lhe foi ditada, com os olhos do consenso dominante. Por outro lado, "não fazer" é possível quando uma auréola extra de poder se desenvolve para formar a existência da realidade de um outro mundo. O guerreiro-pirata não escapa do "fazer" do mundo, mas luta dentro desta realidade, a realidade do consenso dominante, o que o auxilia na criação da auréola extra de poder. O ato de "não fazer" conduz ao "parar o mundo", que é o primeiro passo para "enxergar". O mundo da realidade ordinária, do dia-a-dia, nos parece do jeito que é por causa do consenso social. "Parar o mundo" significa interromper a corrente comum de interpretação do mundo, do consenso dominante, ou em outras palavras, parar o consenso é enxergar o mundo como bruxo, numa realidade não-ordinária. "Parar o mundo" é viver num espaço temporal mágico, enquanto que viver na realidade do consenso é viver num espaço temporal ordinário.
 
VEJA - Um bruxo é um pragmático, e o senhor mesmo se rotula assim. Qual seria a aplicação prática de "fazer", "não fazer" e "parar o mundo"?
 
CASTANEDA - Você fuma desbragadamente, como um desesperado. Eu fumava como você, e cheguei a fumar quatro maços de cigarros por dia, até que Don Juan sugeriu que eu usasse a minha compulsão para parar de fumar. Eu deveria ficar envolvido no "não fazer" de fumar. Para isso eu teria que observar o fazer de fumar. Comecei então a observar o "fazer" de levantar pela manhã e procurar imediatamente meus cigarros, o "fazer" de colocá-los no bolso, o "fazer" de apalpar o bolso da minha camisa com minha mão esquerda para ter certeza de que os cigarros lá estavam. O lugar do cigarro, o fumar de dois deles no caminho da universidade, e assim por diante, constituíam o meu "fazer" de fumar. Como eu, você pode observar o que constitui o seu "fazer" de fumar. Uma medida sistemática de fazer leva a pessoa a não executar os detalhes do ato de fumar. Para "parar o mundo" de fumar a pessoa tem que aprender a compulsivamente dizer não para o "fazer" de fumar.1 Este exemplo é grosseiramente uma aplicação dos ensinamentos, pois eu parei de fumar logo nos primeiros contatos com Don Juan, mas somente consegui "parar o mundo" da realidade ordinária depois de dez anos. A partir deste ponto Don Juan deixou de usar plantas alucinógenas como parte dos ensinamentos.

Guias para se acabar com o bom senso
 
VEJA - O senhor não fuma, não bebe e evita até café. Como então vê o uso de drogas como parte dos ensinamentos de Don Juan?
 
CASTANEDA - Don Juan usou psicotrópicos e plantas alucinógenas como um auxílio aos ensinamentos. Uma vez atingido o objetivo, estes veículos se tornaram desnecessários. As drogas são maléficas para o corpo, e não tem nenhum defeito além de uma certa qualidade que o bruxo necessita.

 VEJA - De que modo as drogas serviam de instrumento auxiliar aos ensinamentos de Don Juan?
 
CASTANEDA - O mundo como nós o vemos é apenas uma descrição, e cada item da descrição é uma unidade, o que eu chamo de "gloss" (aparência externa") Uma árvore é um gloss, um quarto ou uma sala são glosses. Nós colocamos significado ao gloss-quarto como sendo a reunião de pequenos glosses - cama, cadeira, camiseira, armário. A realidade do consenso é formada por uma corrente infinita de glosses, os quais, por sua vez são formados e interligados por pequenos glosses. Esta corrente forma, na nossa realidade, um sentido comum, isto é, esta corrente de glosses tem que fluir em uma direção pré-concebida que nós chamamos consenso ou sentido comum. Para quebrar ou interromper a corrente, o bruxo usa drogas que criam um espaço vazio na corrente, implantando uma nova direção, a direção do sentido comum ou do bom senso da realidade não ordinária (realidade da bruxaria). Sentido comum e bom senso estão diretamente ligados ao nosso corpo. Com o uso de drogas, há uma interrupção no bom senso e abertura de uma nova direção, e essa nova direção só pode ser encontrada com um guia (bruxo), pois de outra forma o uso de tais drogas é sem valor. O homem geralmente tem a ideia de gozar a vida através dos vícios. Um viciado é uma criança profissional. Interromper a corrente de glosses, parar o mundo, com o uso de drogas só pelo prazer de interromper, só pode causar dano, além de ser uma brincadeira cujo preço é caro. Uma vez que o corpo aprendeu a interromper a corrente, não há mais necessidade de auxílio para tal interrupção. A pessoa interrompe pela própria vontade.

Uma estranha psicoterapia: sentir-se morto
 
VEJA - Acha que o processo de interrupção voluntária da corrente do "bom senso" seria eficaz se aplicado à psicoterapia?
 
CASTANEDA - O sucesso de Don Juan como psicoterapeuta é impressionante. Ele me fez cônscio de que eu era uma criança profissional, que eu estava colocando muito peso sobre mim mesmo, enfatizando minha importância de pessoal, e não transformando em ações minhas fantasias. Ele me ensinou a viver para o agora, a encarar a minha morte como um fato inevitável e existente em minha vida. O conceito de morte deve ser encarado como uma realidade. Don Juan me ensinou que, se eu me considerasse como morto, nenhuma das minhas ações teria importância pessoal, e com isso eu poderia mudar, ou mudanças poderiam ser feitas e tarefas serem cumpridas. O fato inevitável de morte é muito mórbido para o homem ocidental, e em conseqüência o Ocidente procura interação social com o objetivo de ajustamento ao "bom senso".
 
VEJA - Seria correto dizer que a pessoa, em nossa realidade rotulada de psicótica, para Don Juan seria apenas a pessoa que acidentalmente interrompeu a corrente do "bom senso" e não conseguiu refazer esta corrente?

CASTANEDA - Correto. O bruxo quebra a corrente do bom senso por vontade própria. não é uma coisa acidental. Nas primeiras experiências tenho quase certeza que sem um guia teria perdido o contato com a realidade do consenso; em outras palavras, eu não seria capaz de encontrar o caminho de volta a essa realidade. O guia orienta o aprendiz a sair da realidade do consenso e a entrar na estranha realidade da bruxaria, bem como sair daquela estranha realidade e voltar a realidade do consenso. Este exercício é repetido até que o aprendiz adquira o domínio da sua própria vontade. Para o psicótico, o exercício sobre a direção de um psicólogo clínico ou de um psiquiatra resume-se a retornar à realidade do consenso, e a permanecer conformado. O bruxo, além de guia, é o modelo de "homem do conhecimento". Para Don Juan, qualquer mudança somente é possível se a pessoa praticar seus próprios ensinamentos. Novamente a filosofia "eu faço o que eu digo" prevalece.

 
VEJA - "Porta para o Infinito" menciona o uso de sonhos como um exercício no domínio e controle da própria vontade. Seria este controle da mesma natureza do domínio da própria vontade ao que o senhor acaba de se referir?

CASTANEDA - Eu menciono neste livro os diversos exercícios para controle dos sonhos, ou seja, para que a pessoa possa colocar os sonhos a seu serviço e sonhar produtivamente. Este sonhos requerem o mesmo domínio da vontade que é necessário para sair e voltar à realidade ordinária. Sonhos para um bruxo não são simbólicos, mas frutos do controle que adquire através dos ensinamentos. Ele dorme sonhando sonhos produtivos, como que uma continuação do dia a dia, ao invés de sonhar sonhos ordinários comuns, e sem controle. Aos poucos, uma pessoa consegue se disciplinar, a ponto de, sonhando, ser capaz de ver a sua própria imagem dormindo a sonhar. O caso extremo deste controle pode ser exemplificado pelo que Don Genaro afirma ser capaz - materialização de uma duplicata da sua própria pessoa. Com o controle dos sonhos a pessoa pode aumentar a sua capacidade de ação. Todas essas realidades não exploráveis da realidade do consenso formam um todo - o "homem de conhecimento".

 
VEJA - O senhor acha que nós exploramos e usamos apenas parcialmente o nosso potencial por razões inerentes à nossa educação formal?
 
CASTANEDA - A educação formal e informal do homem ocidental não dá margem a nada estranho ou diferente do consenso social. O que é fora da norma do nosso bom senso é considerado anormalidade. Também falta ênfase na noção de responsabilidade para consigo mesmo: não falamos suficientemente da responsabilidade para as nossas crianças, e por esta razão poucos deixam de ser crianças, e vivem a vida como crianças-profissionais. Explicando melhor: a criança profissional é a pessoa que precisa de carinho e é recompensada por meio de atenção dispensada a sua pessoa. Ela é auto.importante, um eterno infant terrible. Queria deixar de uma vez por todas de ser criança, mas eu era muito querido por mim mesmo, e sempre tinha uma desculpa para que continuasse alimentando minha auto-importância. Não fazia nada, não produzia nada, ações eram abafadas pelos meus planos e decisões, e pelo meu senso de importância pessoal. Até que aprendi com Don Juan a deixar de ser criança profissional e me tornei guerreiro-pirata.. Ficar sentado, esperando que me dessem tudo ou sonhando acordado com a glória da minha auto-importância, não me trouxe nada. Eu tive que ir procurar coragem e disciplina.
 
De criança profissional a guerreiro-pirata
 
VEJA - O senhor vive como um bruxo, isto é, uma vida de anonimato, enquanto o seu trabalho é público e de muito sucesso. Qual é a satisfação pessoal que resulta deste aparente antagonismo entre autor e pessoa?
 
CASTANEDA - Minha satisfação vem de escrever impecavelmente e de apresentar minha pessoa à luz da verdade. Eu realmente não vejo antagonismo, pois minha vida pessoal é um reflexo da minha obra. Novamente afirmo que faço aquilo que digo, pratico aquilo que prego. E uma vez que sou honesto comigo mesmo, não me importa o que e como a galeria pensa ou reage. Desta forma, sou livre dos altos e baixos. Veja o exemplo de Timothy Leary, o guru do ácido lisérgico. Ele é um exemplo típico de excesso de auto-importância. Lá pelas tantas o peso se tornou demasiado e ele teve que pagar o preço extremo. Muitos são os escritores que pregam mas não seguem a própria pregação, muitas são as pessoas que promovem um corpo forte e uma mente sadia, mas acabam destruindo gradativamente o próprio corpo e mente. Don Juan era o modelo que fazia e praticava tudo aquilo que era colocado como tarefa para mim, durante todos os anos da aprendizagem.
 
VEJA - O senhor mencionou o modelo de Don Juan, mas foi também exposto a um outro modelo: o consenso social. Como alia esses modelos em sua vida?
 
CASTANEDA - O modelo de Don Juan me deu os parâmetros de uma realidade diferente da do consenso social. Outro modelo me conduzia ao eterno enfant terrible. Ao longo dos ensinamentos, abandonei este último. Um modelo me conduzia à criança profissional, e outro ao verdadeiro guerreiro-pirata. Quando a pessoa tira o senso de auto-importância do seu caminho e toma a consciência de que o homem que puxa a corda e trama os pauzinhos é tão humano quanto eu ou você, ela pode atingir aquilo que quiser. A pessoa pode ser ultra-inteligente e cheia de recursos, mas se somente espera que as coisas lhe venham às mãos, quando não é atendida pelo mundo cai num estado de ódio, remorso e medo. O guerreiro-pirata não tem medo, ele não espera que as coisas venham até ele. Ele age, cumpre suas tarefas, e ao mesmo tempo não se preocupa com as conseqüências.
 
Notas

1Em uma entrevista mais recente, concedida a Carmina Fort, Castaneda relata que Don Juan, para fazê-lo parar de fumar, certa vez levou ao deserto, avisando que iam passar lá vários dias. Castaneda fez um estoque de cigarros, com várias caixas embrulhadas. Enquanto dormiam, os cigarros sumiram. Castaneda, desesperado, procurava uma explicação. Don Juan disse que talvez tivesse sido os lobos. Rondaram as habitações próximas mas não acharam nada para Castaneda fumar. Esse acontecimento foi decisivo para ele largar o mau-hábito (nota do redator).

Bruxaria, Magia e Xamanismo - parte 2 - por Nuvem que Passa

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