“O poder da recapitulação,” disse don Juan, “é que ela agita todo o lixo de nossas vidas e o faz emergir.”
"Sem
que soubessem, o mar escuro da consciência tomava a consciência em
forma de suas experiências de vida, mas não tocava em sua força vital no
caso daqueles feiticeiros que recapitularam suas vidas do modo mais
completo possível. Os feiticeiros descobriram uma verdade gigantesca com
relação às forças do universo: o mar escuro da consciência quer apenas a
nossa experiência de vida, não a nossa força vital."
“Os
feiticeiros acreditam,” continuou don Juan, “que ao recapitular nossas
vidas, tudo o que foi decantado para o fundo, como disse para você, vem à
superfície. Nós percebemos nossas contradições, nossas repetições, mas
algo em nós aciona uma tremenda resistência em recapitular. Os
feiticeiros dizem que a estrada fica livre apenas depois de esforços
tremendos, depois de uma gigantesca convulsão, depois do aparecimento na
tela de nossa memória de um evento que faz tremer nossas bases com
terrível claridade de detalhes. É o evento que nos arrasta ao momento
real em que nós o vivemos. Os feiticeiros chamam esse evento de o condutor, porque a partir daí cada evento que tocamos será revivido, não meramente relembrado.
Carlos Castaneda, O Lado Ativo do Infinito.
Este
tema da recapitulação vale a pena ser comentado, é um dos pilares do
processo apontado pelo Xamanismo Guerreiro e por outros caminhos também.
É fato que todos recapitulamos ao morrer.
O
mar escuro de consciência, a fonte que nos doou a consciência ao final
da existência toma de volta para si tal consciência, que se dilui no
vasto mar, nele diluindo o teor de nossas experiências, metabolizadas
pelo processo de estarmos vivos e percebermos.
Ao
final da existência o ponto de aglutinação, a percepção, tudo que
somos, pois o resto é emprestado, passa por todas as experiências de
vida que tivemos, não é um recordar mental, é um viver de novo mesmo,
algumas pessoas que quase morreram e voltaram falam desse "passar da
vida".
Por isso os videntes
toltecas desenvolveram a técnica de viver neste mundo em consciência
intensificada e ir a muitos mundos, não humanos principalmente, se
lançar as vastidões do infinito e retornar a esta terra, este tempo onde
temos nossas vidas.
Imaginem onde um(a) xamã pleno como os que ensinaram o nagual de 3 partes não iam?
E
voltavam, viviam ali, na casa do México por exemplo onde faziam seus
piqueniques, onde D. Juan Matus cozinhava rabadas apimentadas para
deleite de todos.
Esse ir a extremos da segunda atenção e voltar tem um porquê.
Nossos
ancestrais espirituais foram, e foram e foram, alguns tão indo ainda,
mas isto se revelou uma armadilha. Eles pensavam que o nagual, a segunda
atenção fosse algo como hoje se pensa em plano espiritual, algo que vai
subindo, ficando mais "puro" , mais "pleno".
Os
(as) novos(as) videntes resolveram essa armadilha, perceberam que a
segunda atenção é só a contraparte da primeira, vasta, muito mais vasta,
mas apenas uma contraparte, ir -se por ela é apenas adiar um fim, não
vencê-lo.
Descobriram outra possibilidade.
O vasto mar da consciência quer de volta apenas a consciência, que é sua de fato, mas nada quer com a força da vida que temos.
Esta
descoberta mudou tudo. A força da vida não precisa se dissipar, apenas a
consciência. E treinando guerreiramente os (as) nuevos videntes fizeram
algo impensado, além de toda possibilidade de compreensão, mas possível
de realização.
O ente perceptivo ao morrer abre mão da consciência. Ao passar por todas as experiências de vida o ponto de aglutinação libera uma tremenda energia
pois, ao contrário dos caminhos antigos, os (as) nuevos videntes não
foram progressivamente a outras realidades, ascendendo uma fibra de cada
vez.
Foram aleatoriamente a
muitas realidades, imaginem a cena de uma bexiga transparente, cheia de
fibras óticas. Um ponto de luz sai de um feixe aceso e vai acendendo os
outros, dos mais distantes aos mais próximos.
Isso
libera um tipo de energia estupendo, essa energia, se for usada com
intento permite a quem isso faz dar um salto em direção a outro estado,
abandonamos a primeira e a segunda atenção, mas absorvemos uma "terceira
atenção", estado que só cito prá dizer que existe e já é muito.
Este caminho faz com que os (as) xamãs guerreiros (as) tenham práticas que lhe permitam chegar a este objetivo.
O ente perceptivo que somos pode se "individualizar".
Podemos
ser nós mesmos, podemos ser mais do que "fizeram de nós". Para os(as)
xamãs guerreiros(as), muitas linhagens, taoistas, hinduístas, sufis,
budistas, o ser humano existe para cumprir um papel dentro de um amplo
esquema cósmico.
Não fomos "criados a imagem e semelhança de deus para reinar sobre a criação".
Tais
histórias atestam a necessidade humana de fugir da constatação do nada
que somos. Somos como enzimas, cumprimos um papel na existência e
voltamos pro "caldão" de onde viemos.
Isso se tudo for seguir o caminho "natural".
Mas
é neste nada que os (as) xamãs guerreiros encontraram poder para ir
além, pois se tão infímos somos podemos mesmo escapar deste intento
primeiro da realidade e astutamente nos esgueirarmos pelos mundos,
alcançando um estado que metaforicamente chamamos de "liberdade total".
Para
realizar este desafio supremo precisamos de muita energia, antes de
mais nada. E esta energia tão necessária, durante a vida, foi sendo
perdida pelos atos, nas pessoas e vivências que tivemos.
Deixamos
pedaços nossos em pessoas, situações, em cenas, lugares e estes pedaços
de energia que ficaram nos fazem falta, pois só com toda nossa
TOTALIDADE podemos desafiar os designios primeiros da FONTE, da ÁGUIA e
"como um jato, passar além de seu bico, livres, rumo a LIBERDADE.
Esse sonho já foi sonhado antes, isso o torna realizável.
Recapitular
é um exercício para recuperar esta energia, estes pedaços de nós que
fomos sem saber, deixando pela estrada de nossa vida.
Os budistas de várias linhagem o realizam, taoístas, sufis, muitas tradições trabalham com esse recapitular da vida.
Por quê?
Para quê?
Como? O que é recapitular?
É
antes de mais nada lembrar, lembrar de um evento que aconteceu, começa
assim, então não para aí, se nos colocamos na atitude coerente desse
momento, se estamos focados nesse momento com o devido "intento" algo em
nós é afetado e nosso ponto de aglutinação, isto é, nossa percepção, é
deslocada para o "momentum" energético onde aquele fato recapitulado
aconteceu.
Todos os fatos da
vida devem ser recapitulados, por isso se diz que a recapitulação dura a
vida inteira, temos sempre camadas mais profundas para recapitular.
Recapitulando
descobri que vivemos em várias dimensões ao mesmo tempo, temos
múltiplas vidas e mesmo nessa vida aqui e agora nós só lembramos de uma
camada superficial do mundo, recapitular nos dá energia, nos devolve a
energia.
Nossas
possibilidades existenciais são incríveis, posso citar apenas o exemplo
de uma mulher do grupo de D. Juan MAtus que sonhando trazia para este
mundo Esperanza, uma curandeira, e o Zelador, intelectual simpático que cuidava de uma das casas do grupo.
Esses
mistérios são pertubadores, fascinantes, somos magia num grau impensado
e ficamos aqui nestas percepções tolas e limitadas de mundo,
acreditando mesmo que é a bolsa de valores, a seleção brasileira, a alta
do dolar que importa.
Presos
a uma mídia que serve ao conquistador e por isso oblitera nossa
percepção, ficamos sendo alimentados com lixo cultural e embotados em
nossa realidade existencial.
Noticia
é a tragédia, a violência, meios sutis de aumentar o medo, pois sabem
que se te mantiverem com medo do que está a tua volta tu não questionará
o sistema que lhe escraviza.
E
cada dia surge um novo processo contra o bode expiatório da vez para
que não vejamos nosso país sendo entregue aos sempre vorazes
mercantilistas, a companhia das indias ocidentais do momento.
Vivemos
neste contexto histórico e deixamos nossa energia neste mundo, ele é
mantido também com nossa energia, cada vez que assistimos um programa de
tv, cada vez que lemos jornais, que comentamos sobre esses assuntos.
Não são apenas nossos impostos, cobrados em cada bala, em cada cafezinho
que tomamos, que sustentam esse sistema. Nós o sustentamos com a força
de nossa intenção e nossa energia, toda nossa vida desde que nascemos,
tem sido sustentar esta realidade, que nos anula, mas nos mantém como
galinhas em granja, alimentados se botamos nossos ovos, para logo nos
abater.
Recapitular,
portanto, é também uma atitude da Tribo do Arco Íris em sua luta
pacífica e silenciosa pela retomada dos direitos de nossos ancestrais,
de outra abordagem da realidade.
Quando
tiramos a energia dos eventos passados e deixamos apenas a que ele
tinha estamos também tirando a energia desses eventos que ficou
impregnada em nós.
Só assim
podemos mudar nossa percepção da realidade, do contrário será apenas uma
mudança intelectual. Porque em cada interação que temos deixamos
energia nossa e levamos a energia do lugar, das pessoas, de tudo que ali
ocorreu. E sabemos que percebemos uma vastidão da qual só registramos a
mínima parte.
Quando
recapitulamos vamos tirando a energia que ficou e devolvendo a que ficou
impregnada em nós, isto é, vamos resgatando nossa energia singular.
Isso amplia nosso poder pessoal.
Vai
além, revendo os eventos de nossa vida aprendemos a reconhecer "o que
fizeram de nós" e podemos ir além desse estado e sermos "eu mesmo" , ser
singular, único, que só existirá nesta efêmera mas bela existência por
umcurto tempo.
E, se vamos
existir por tão curto tempo, com a morte sempre há um braço de distância
à esquerda, como não viver intensamente cada momento, presente,
pleno(a), como seguir dividido(a), fragmentado(a)?
Temos
em nós tudo que precisamos para essa fantástica jornada que é viver.
Por falta de saber perdemos nossa energia, perdemos nossa força da vida e
deixamos pedaços de nós com pessoas, eventos, lugares.
A recapitulação é mais que lembrar, começa assim, mas não é uma revisão psicanálitica.
Pela magia da respiração damos uma dimensão extra a esse exercicio.
A prática usual recomenda escrever uma lista com as pessoas que conhecemos, todas.
Depois dessa fase o ideal é sentar-se em um lugar calmo, com o mínimo de interferências externas.
Reduzir
as influências externas é muito importante para uma real recapitulação,
recebemos muitas "impressões" das coisas a nossa volta.
Florinda Matus fez sua recapitulação em um caixote construido ao seu redor.
Certa vez morei, em Sampa, numa casa que tinha uma escada e em baixo dela fizeram um armário.
O
armário não tinha prateleiras. Durante anos usei aquele armário para
recapitular. Eu trabalhava a noite e durante o dia ficava só em casa, as
pessoas que moravam comigo trabalhavam de dia, assim tinha silêncio
durante a tarde e recolhimento.
Comento
isso porque me parece que essas condições são muito importantes, a
qualidade da recapitulação sofre influências desses dados. Taisha
recapitulou numa caverna. Este dado de estar num ambiente mais restrito
focaliza energias da pele que em outras estâncias estariam sendo
"tocadas" por vibrações sutis, que podemos não perceber conscientemente
mas estão de fato em ação.
Além
de um lugar adequado a recapitulação pode ser fortalecida por passes
mágicos para a recapitulação que quem faz Tensegridade pode partilhar
com quem não faz.
No Shün
que é a Arte do Movimento que prático antes de fazer a "limpeza do
poço", como seria a traduçao do nome que damos a essa prática, existem
movimentos que são feitos.
Vou sintetizá-los para ajudar quem não tem acesso a grupos dessas práticas como:
Primeiro espreguiçar bem, muito, mexer boca, olhos, puxar o corpo todo pelos dedos, sentir os dedos dos pés e mãos.
Depois,
"acordar o corpo" que é com os joelhos meio flexionados, braços a
frente com as mãos em garras, pés alinhados com ombros e tensionar o
corpo inteiro, tensionar mesmo, ir expirando, contraindo o abdomem e
tensionando até ficaralguns instantes sem ar e todo tenso, então se
soltar, dar uns pulos es acudir braços, mãos e pernas como se estivesse
saindo de uma piscina e tirando a água do corpo.
Então sentar numa cadeira ou chão e o corpo tá pronto prá recapitular.
Costas
eretas, pode se encostar numa parede ou apoio para as costas, olhando
para frente, solta todo o ar, até sentir-se vazio. Então vira a cabeça
toda prá esquerda, queixo no ombro esquerdo. Faz uma respiração vazia,
isto é, vira a cabeça até o ombro direito mas sem respirar, vazio.
Depois inspira indo prá esquerda e expira indo prá direita.
Intente que a inspiração absorve toda tua energia que está na cena e a expiração devolve toda energia da cena que ficou em ti.
Então
vá deixando a lembrança fluir, sinta-se na cena, mas não julge, apenas
observe. Julgar, lamentar-se são formas de prender-se, de anular o valor
da prática.
O importante é
ir a cena e observar com foco o ocorrido, deixa que o aprendizado venha,
não crie interpretações mentais do tipo: "agora vou agir assim ou
assado", "a partir de hoje vou ser assim" estas propostas são respostas
da mente desequilibrada que temos em nós, é "o que fizeram de nós" não
querendo perder o controle e jogando como sempre aprendeu: "agora serei a
criança boazinha e farei tudo direito para agradar a todos e ao papai
do céu!"
O trabalho aqui é observar com neutralidade e recuperar a energia perdida, deixando ali a que ficou impregnada em nós.
Podemos
usar a recapitulação como o tremendo instrumental que é para nos livrar
de tudo que não somos, que apenas impuseram a nós.
Há várias dicas, fazer uma lista com todos os eventos da vida, tem muita informação sobre técnicas por aí, basta pesquisar.
Uma
prática muito válida é lembrar do dia todo ao deitar-se para dormir. Eu
prático ir lembrando do momento que sentei para relembrar, já indo
dormir, voltando cena a cena até chegar na hora de manhã que abri os
olhos.
Esta prática diária
tem várias resultantes, dá prá gente antes de mais nada um
dimensionamento de como tem horas durante o dia que estamos "no piloto
automático" ausentes de nós mesmos.
São instrumentais de guerra, a guerra contra os limites em nossa busca de liberdade.
Um(a) xamã guerreiro(a) da liberdade total luta este tipo de batalha, estes são nossos treinos de combate.
Nuvem que passa