sábado, 30 de dezembro de 2023

Obviedades pouco óbvias

O segredo de um xamã e de um mago não é ter poder para atingir certos objetivos concretos.

O segredo consiste simplesmente em acumular, manter e recanalizar este poder.

Há em cada um de nós poder suficiente para produzirmos estados xamanísticos de consciência. Basta redistribuir tal poder.

Tal poder é nosso brilho da consciência. É a nossa semente. Nosso sêmen. Nossa essência.

Pode-se traduzir poder por estado interior. Poder é a capacidade de acessar certos estados interiores que nos levam a acumular mais poder, poder sobre nós mesmos.

É o poder que permite a manifestação externa, seja de um aliado ou de uma situação.

Isto parece tão óbvio que chega a ser uma tautologia, mas é como algo que está tão próximo de nossa visão que não percebemos.

Um xamã, um mago visa a conquista de si mesmo, do estado interior correto para a manifestação adequada.

A primeira das posições a ser conquistada em si é a implacabilidade, saber que um é igual a tudo.

Tal conquista reflete-se no brilho do olhar, os olhos do intento, reflexo do brilho da consciência no corpo do xamã.

Ao invocar ou evocar certas forças buscamos o estado interior adequado para a manifestação pretendida, ou seja, a posição do ponto de aglutinação para a manifestação concreta adequada.

A magia do xamã é tornar-se um poder em sintonia com outros poderes. Podemos chamar isso de ALINHAMENTO. Ou de ressonância.

A falha do aprendiz ou do iniciante é não ter a PACIÊNCIA (inclusive consigo mesmo) e a persistência para fixar o estado interior adequado. Ao ver que a manifestação não ocorre de pronto o aprendiz entra, as vezes, num estado de frustração que sabota sua intenção.

A conquista de si mesmo, o domínio de certos estados interiores, a fixação deliberada do ponto de aglutinação, é um processo que pede disciplina, controle, paciência e senso de oportunidade.

Sejam pacientes consigo mesmos, tenham bom-humor, a vitória é certa para quem não desiste: intento inflexível.

Lembremos que para um xamã-guerreiro a vitória ou a derrota é menos importante que dar o melhor de si mesmo.

A energia equilibrada produz uma efervescência tranqüila, alegre, como uma vibração em nosso corpo, ao longo de seu centro, que dá inteligência para resolver problemas e em si mesma um prazer que por sua natureza é desconhecido da maioria. Nessa energia prazerosa e tranqüila ouvimos a voz de ver, nosso mestre interior, o próprio sussurro do espírito em nós mesmos.

Observação:

A importância das palavras e do silêncio é algo que precisamos compreender dentro do ensinamento do xamanismo guerreiro.

Seu uso adequado segue a dualidade entre tensão e integridade, relaxamento e tensão, que existe na Tensegridade. O silêncio e a palavra são as forças duais da arte da espreita, a arte do relacionamento, que permite que possamos extrair energia e poder em nossas interações cotidianas pelo conhecimento de nós mesmos.

Formular o nosso intento a partir do silêncio interior torna o nosso comando o comando que emana da própria Águia ou Espírito.

Sabemos que as palavras são o instrumento de poder do espreitador, o nagual expressa isso em O Poder do Silêncio, conforme:

"Primeiro o nagual Elias explicou a Don Juan que o som e o significado das palavras eram de suprema importância para os espreitadores. As palavras eram usadas por eles como cha­ves para abrir tudo que estivesse fechado. Os espreitadores, por­tanto, tinham de afirmar seu objetivo antes de tentar alcançar. Mas não podiam revelar seu alvo verdadeiro no início, de modo que deviam verbalizar as palavras com cuidado para esconder a intenção principal".

Até aqui as palavras do nagual Carlos Castaneda. É bom dizer que quando cito o nagual o faço dentro do espírito de respeito e admiração pelo mesmo e não por algum tipo de vaidade intelectual ou ostentação teórica.

As palavras daquele texto me foram vertidas dentro de um determinado estado interior, um alinhamento do meu poder com outro poder. Por mim mesmo ou em meu estado usual de consciência não as teria conseguido formular. E, contudo, aquele poder não era diferente daquilo mesmo que SOU. Refiro-me aqui a totalidade do ser, aspectos da consciência que qualquer um de nós pode acessar. Por exemplo, alguém que fosse adepto do espiritismo acreditaria estar mediunizando uma entidade, psicografando um texto. Não se trata disso. Como pessoas e poderes individuais estamos conectados a poderes muito mais vastos que nós mesmos, mas não temos consciência disso e não acreditamos que isso seja possível. Mas é.


sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Asherah: A Deusa Proibida e o Culto da Cannabis


Sempre me perguntei por que as mulheres foram silenciadas e o princípio feminino foi deixado para trás... não seria assim mais fácil controlar a humanidade e limitá-la a um contexto existencial medíocre, de cega obediência, já que a mulher possui uma conexão natural e maior com a própria existência e seus mistérios? Ora, num grupo nagual o número de mulheres e o dobro do número de homens justamente por isso, o próprio nagual vem aos pares: macho e fêmea.

Por outro lado, como a energia feminina é a Shakti por excelência, o poder supremo que se manifesta em nossos corpos como a força mágica do Fohat, a nossa serpente divina Kundalini, todo esse poder pode ser perturbador para os desavisados, pois para lidar com o poder é preciso poder, o que envolve sobriedade e impecabilidade... e quem não consegue lidar com o poder de forma disciplinada pode incorrer no erro de buscar a repressão baseado num princípio castrador, masculino e limitante, assentado em culpa e medo, daí as religiões atuais assentadas em tal fundamento...



ASHERAH: THE FORBIDDEN GODDESS
Ana Luisa Alves Cordeiro

Graduanda do Bacharelado em Teologia pela Universidade Católica de Goiás. Assessora do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI). Correio eletrônico: analuisatri@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo tem por objetivo realizar uma reconstrução da imagem da Deusa Asherah no Antigo Israel, como possibilidade de representação feminina no sagrado. Após a contextualização do processo de elaboração do monoteísmo em Israel, voltamos a um processo anterior, o politeísmo, onde vislumbramos a presença das Deusas e Deuses no contexto cananeu, em especial Asherah, para posteriormente identificarmos a relação conflituosa que se estabelece entre os escritos bíblicos e Asherah.

Palavras-chave: Deusa Asherah, Deus Yahweh, politeísmo, monoteísmo, Antigo Israel.

Para a maioria das pessoas que lêem a Bíblia, a idéia de um único Deus de Israel, Yahweh, parece ser clara. No entanto, descobertas arqueológicas das últimas décadas vem demonstrando que nem sempre foi assim. Nem sempre Yahweh esteve solitário. Antes da ascensão do monoteísmo em Israel, o Deus Yahweh fazia parte de um contexto politeísta onde havia um panteão de Deuses e Deusas, sendo que provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah.

Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de mulheres e homens no antigo Israel é um esforço de, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e vitais deste povo. Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos diante de textos sagrados marcados pelo sistema patriarcal, onde há o domínio do pai e quiriarcal, onde há o domínio do senhor (Gossmann, 1997: 371-374). Sistemas que projetaram historicamente um Deus masculino, legitimando práticas e funções masculinas, com isso silenciando mulheres, suas representações sagradas, tudo aquilo que pudesse lhes garantir espaço e voz. Por isso, faz-se necessário a nossa reflexão voltar a um ponto anterior ao monoteísmo patriarcal, até religiões nas quais uma Deusa era a imagem divina dominante ou então era emparelhada com a imagem masculina de uma forma que tornava a ambas modos equivalentes de aprender o divino (Ruether, 1993: 46).

Carol Christ (2005: 17) ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa tem importantes conseqüências psicológicas e políticas”, como caminho de desconstrução do pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer (1995: 40), o culto à Deusa era exercido tanto por homens como por mulheres, mas veio sobretudo ao encontro das necessidades das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito religioso.

Através de uma “hermenêutica feminista de suspeita”, método proposto por Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992: 89), queremos “re-imaginar” Asherah a partir de uma análise exegética crítica ao patriarcado/quiriarcado presente nos textos bíblicos, reconstruindo a memória da Deusa a partir dos dados arqueológicos e identificando na literatura bíblica a relação conflituosa que se estabelece com ela.

As Origens do Monoteísmo no Antigo Israel

Antes de qualquer reflexão em torno da Deusa Asherah, é necessário primeiramente fazermos uma breve alusão sobre o que foi a constituição do monoteísmo no Antigo Israel, para então entendermos como este monoteísmo afetou a cultura politeísta da época, mais especificamente o culto e a imagem da Deusa Asherah.

Há uma grande problemática em torno do início do monoteísmo, são vários os apontamentos e as pesquisas. Frank Crüsemann (2001: 780) aponta a época do profeta Elias (cf. 1Rs 18,19-40) como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo onde Yahweh incorpora as características de Baal. Os escritos bíblicos do Primeiro Testamento teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo, “a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai (Ex 20,2)” (Crüsemann, 2001: 781).

Haroldo Reimer (2006: 115) aponta, sobretudo o século V a.E.C como o momento histórico marcante, em que Yahweh vai se constituindo como Deus único de Israel, desencadeando um “processo de diabolização de outras divindades”.

Num primeiro momento, a divindade Yahweh teria sido um elemento religioso que veio de fora do contexto cananeu. Nesta época, possivelmente era o Deus El que ocupava a cabeça do panteão divino. Yahweh passa a integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de outras divindades.

No entanto, os conflitos religiosos começam a acontecer, sobretudo no Reino do Norte, no período que vai dos séculos IX a VIII a.E.C, com o Deus Baal, ocorrendo a transferência dos atributos da fertilidade de Baal para Yahweh, o que Crüsemann também aponta. Já no Reino do Sul, do final do século VIII até o final do século VII a.E.C, a fé monoteísta javista é afirmada em um contexto nacionalista, na medida em que se pode retrojetar a idéia de nação para aqueles tempos. A diversidade religiosa passa a ser objeto de ações perseguidoras oficiais, buscando-se sempre a cumplicidade dos homens de Israel que devem denunciar quem se desvia do credo oficial afirmado desde Jerusalém (Reimer, 2006: 117).

Neste sentido, a afirmação da exclusividade de Yahweh acarreta um processo de “diabolização” da própria Deusa Asherah, onde textos bíblicos serão instrumentos de justificação deste processo monoteísta.

Frente a essa exclusividade de Yahweh, será impossível a sobrevivência de qualquer outra divindade, além de que a ênfase em Yahweh será critério de afirmação do sacerdócio masculino perpetuando uma sociedade patriarcal (Reimer, 2006: 117).

Neste contexto, a existência de outras divindades masculinas e femininas foi sempre uma ameaça ao monoteísmo estabelecido, sendo que as reformas religiosas em Judá, de Josafá (870-848 a.E.C), de Ezequias (716-687 a.E.C), de Josias (640-609 a.E.C) e as legislações do Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e do Código Deuteronômico (Dt 12-26) agiram como instrumentos que visavam assegurar a fé monoteísta (Reimer, 2003: 968).

O desenvolvimento do Monoteísmo e suas fases

O pesquisador Haroldo Reimer (2003) aponta cinco fases do desenvolvimento do monoteísmo no Antigo Israel.

A primeira fase seria marcada pelo sincretismo entre El e Yahweh, no qual El é uma divindade cananéia cujas características são a de criador da terra e pai dos deuses.

A segunda fase, por volta do século IX a.E.C, seria marcada pelos conflitos com o Deus Baal.

Baal era filho de El, cuja característica principal era a fertilidade.

A terceira fase estaria na ênfase da adoração exclusiva a Yahweh. O profeta Oséias, no século VIII a.E.C, equipara a idolatria à adoração de outras divindades. Neste período acontece a reforma de Ezequias (2Rs 18,4), que mostra a remoção dos lugares altos e a destruição da serpente de bronze, Neustã, reforma legitimada legalmente através do Código da Aliança (Ex 20,22-23,29).

A quarta fase remete à época de dominação assíria, com a reforma de Josias (2Rs 22-23), justificada legalmente pelo Código Deuteronômico, englobando uma série de medidas visando a exclusividade de Yahweh e sua centralidade em Jerusalém, do templo de Jerusalém teriam sido retirados utensílios feitos para Baal, Aserá e o Exército do céu; sacerdotes dos 'altos' foram depostos, a estaca sagrada (hebraico: asherah) foi destruída, cabanas onde as mulheres teciam véus para Aserá foram demolidas etc. Também os santuários do interior foram desautorizados e desmantelados. Houve, assim, claramente, uma concentração do culto a Yahveh em Jerusalém, com a conseqüente exigência da adoração exclusiva dessa divindade (Reimer, 2003: 982).

Cada vez mais, as reformas religiosas vêm carregadas de intolerância religiosa proibindo qualquer tipo de imagens de divindades, mesmo que de Yahweh. Esta fase teria repercutido imensamente no culto à Deusa Asherah, consorte de Yahweh.

A quinta fase seria marcada pelo monoteísmo absoluto e estaria relacionada com o período do exílio. Esta realidade estaria clara em Is 45,5 “Eu sou Yahweh e fora de mim não existe outro Deus”. Gn 1 seria a afirmação do poder criacional de Yahweh diante do domínio babilônico ancorado na fidelidade à divindade Marduc. No entanto, o pós-exílio, época do domínio Persa e do retorno das elites sacerdotais exiladas na Babilônia, seria o momento de maior afirmação do monoteísmo absoluto em Yahweh, bem como, da supressão de qualquer referência a outras divindades, sobretudo femininas. Toda a literatura bíblica produzida e finalizada neste período terá essa tendência exclusivista em Yahweh.

Enfim, o monoteísmo em Israel traz em si um longo processo de elaboração e afirmação, que se absolutiza sobretudo em torno dos séculos VI e V a.E.C.

A presença da Deusa em Israel (Do Bronze ao Ferro)

Conforme a pesquisadora Monika Ottermann (2004), que traça o panorama da presença da Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio, datando a Idade do Bronze Médio (1800-1500 a.E.C), a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”, destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”.

Na Idade do Bronze Tardio (1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus atributos, em especial a árvore. Aparece, na passagem do BM para o BT uma mudança decisiva no campo das figuras de material mais precioso: as Deusas Nuas foram substituídas em grande parte por deuses guerreiros como Baal e Reshef (...) o encontro dos sexos fica claramente relegado ao segundo plano e é substituído por representações de legitimação, luta, dominação e lealdade político-imperial (Ottermann, 2004: 5).

A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres.

Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah.

Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas.

Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel.

Mas é sobretudo na época pós-exílica que as vertentes políticas e religiosas dominantes vão excluir e proibir a presença de uma divindade feminina dentro do javismo (Ottermann, 2005:.52).

Evidências arqueológicas da Deusa Asherah

As primeiras evidências de Asherah aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531 a.E.C) e nas cartas de El Armana (século XIV a.E.C) (Neuenfeldt, 1999:.5).

Para o pesquisador Ruth Hestrin (1991: 52-53), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra (Costa Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é chamada de Atirat, consorte de El, principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.E.C, sendo mencionada também como ‘Elat, forma feminina de El. Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor, do sexo e da fertilidade.

Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ ‘Elat. A figura humana estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico.

Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish, datado aproximadamente no 13º século a.E.C, provavelmente ano 1220.

O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah. Uma inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida por Frank M. Cross, como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora "Elat”.

Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no II milênio a.E.C, equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da árvore, representação de 'Elat/ Asherah. Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à Deusa (Hestrin, 1991: 54).

No entanto, foi no templo de Arad, no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou fortes evidências de Asherah. No santuário interno foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais, possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas (Discovery, 1993). Segundo Elaine Neuenfeldt (1999:.6), o templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º séculos a.E.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu (2Rs 18).

Em Khirbet el-Qom, ao oeste de Hebron, em 1967, outro arqueólogo encontrou um túmulo judaico da segunda metade do século VIII (Discovery, 1993), com uma inscrição na parede interior que Severino Croatto (2001:.36) traduz como:

1. Urijahu (...) sua inscrição.
2. Abençoado seja Urijahu por Javé (lyhwh)
3. sua luz por Asherah, a que mantém sua mão sobre ele
4. por sua rpy, que...

Segundo Hestrin, em 1975-1976, o arqueólogo israelita Ze’ev Meshel, em Kuntillet Adjrud, 50km ao sul de Qadesh-Barnea, na antiga estrada de Gaza a Elat, escavou uma pousada no deserto que continha várias inscrições. Controlado por Israel, este posto estatal encontrava-se em território de Judá, funcionando aproximadamente entre 800-775 a.E.C. No prédio principal, em sua entrada, duas jarras de armazenagem com desenhos e inscrições foram encontradas e identificadas como pithos A e pithos B. Na inscrição do pithos A se lê:
Diz... Diga a Jehallel... Josafa e...”:

Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah.

No pithos B se lê:

Diz Amarjahu: Diga ao meu Senhor: Estás bem?”.

Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.

Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor.

Neste pithos aparecem três figuras, duas masculinas retratos do Deus egípcio Bes e uma claramente feminina (seios em destaque) tocando uma lira.

Ruth Hestrin (1991: 55–56), aponta ainda que em outra pintura egípcia, do túmulo do Faraó Tuthmosis III, está retratada uma Deusa na forma humana no tronco de uma árvore, apresentando alimento para o rei através do seio que é sustentado pelo braço, ambos saindo da árvore.

Impressão em argila de um selo cilíndrico do III milênio a.C.,
que representa a deusa Inana/Ishtar,
alada e ornada com uma coroa, dominando um leão.

Em 1968, o arqueólogo americano Paul Lapp escavou um outro artefato muito famoso em Taanach, datando ao final do 10º século a.E.C (Hestrin, 1991: 57). Num dos quartos da instalação cúltica foram encontrados prensa de óleo, forma para fazer figuras de Asherah, sessenta pesos de tear e 140 ossos de articulações de ovelhas e cabras (Neuenfeldt, 1999: 7).

Um quadrado oco de terracota, aberto na base, composto de quatro níveis ou róis também foi encontrado. Conforme Ruth Hestrin (1991: 57-58), no rol inferior, uma mulher nua flanqueada por dois leões é mais uma representação de Asherah, Deusa-mãe, o que é similar á estela egípcia com Qudshu. No segundo rol temos uma abertura vazia no meio (provavelmente a entrada do templo) flanqueada por duas esfinges (corpo de leão, asas de pássaros e cabeça de mulher). O terceiro rol traz uma árvore sagrada da qual saem três pares de galhos, simbolizando a Deusa principal, Asherah, consorte de Baal e fonte da fertilidade, sendo flanqueada possivelmente por duas leoas. No rol superior temos um touro sem chifres, com um disco de sol em cima, o que simboliza o Deus supremo não só na Mesopotâmia e no panteão hitita, como também no panteão cananeu. O jovem touro representa Baal, principal Deus do panteão cananeu, que no II milênio substituiu El, cabeça do panteão.

Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários estudiosos esta descoberta sinalizou a existência do templo, para outros determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias, o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal e Asherah (Discovery, 1993).

Todas essas descobertas são fortes evidências da existência da Deusa Asherah. Parece claro que por determinado tempo essa Deusa teve mais espaço e representatividade na vida do povo em Canaã/ Israel, até ser taxada como a causa de todos os males que o povo estava sofrendo nas mãos de seus dominadores, em especial na época da dominação Babilônica, com toda experiência de destruição e exílio, Aserá, na maioria do tempo venerada sob o corpo de uma árvore, era, inicialmente, a parceira de YHWH, mas com o crescente desenvolvimento do javismo como religião de um deus masculino, transcendente e único, ela foi taxada como sua maior rival e inimiga (Ottermann, 2005: 48).

A existência da Deusa Asherah remonta uma época de adoração a vários Deuses e Deusas, antes da ascensão do Javismo, o culto da Deusa Árvore Asherah realizava-se, principalmente, em torno de uma árvore natural ou estilizada, ou seja, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de uma outra divindade, inclusive YHWH. Porém, seu culto foi realizado, de preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém (Ottermann, 2005:.49).

É fato que a nova religião, centrada em Yahweh, vai se construindo e se impondo a partir da proibição a qualquer tipo de representação religiosa que não fosse Yahweh.

De politeísta Israel passa a se constituir monoteísta, pelo menos na religião oficial.

Provavelmente, adorações a Deuses e Deusas dentro das casas continuaram por longo tempo, como forma de resistência. A centralização no Deus único, Yahweh, que neste processo também se apropriou das funções de Asherah, custou caro aos outros Deuses e Deusas que compartilhavam da mesma cultura. Esta proibição atingiu a vida de homens e mulheres, que ali encontravam uma significação religiosa.

Seria ingênuo querer defender, neste contexto, uma sociedade no antigo Israel onde havia reciprocidade entre os sexos, pelo simples fato de existirem as Deusas. Pelo contrário, como reflete Simone de Beauvoir (2002:.91), o culto a Deusa se dá dentro de um contexto patriarcal, onde a perda de representação da Deusa atinge profundamente e principalmente ao universo religioso das mulheres, sendo que, o culto a Asherah vai sobrevivendo, até ser definitivamente extinguido e proibido, dos espaços, das mentes e dos corpos, de homens e mulheres que tinham em Asherah uma fonte de significação para a vida.

É nesse contexto patriarcal, que Yahweh se torna uma forte representação do masculino no sagrado, justificando a dominação masculina, tanto no âmbito social, econômico, político, como religioso. A religião oficial israelita absorve então uma identidade somente masculina, onde o feminino passa a ser relegado ao espaço particular das mulheres.

Por isso, é extremamente importante uma memória da Deusa, em especial Asherah, consorte de Yahweh, não só numa tentativa de reconstruir a história do antigo Israel, mas principalmente dar espaço e voz às divindades femininas, que são uma possibilidade de identificação sagrada das mulheres, em busca de relações mais recíprocas e humanizadas entre os gêneros.

Deusa Asherah: Uma imagem a partir dos Escritos Bíblicos

Conforme Ruth Hestrin (1991:.50), Asherah é mencionada cerca de 40 vezes na Bíblia Hebraica, de três formas diferentes, ora como uma imagem que representa a própria Deusa, ora como uma árvore ou como um tronco de árvore, que a simbolizam.

Asherah, a Deusa Cananéia, na mitologia ugarítica era conhecida como “Senhora do Mar, a esposa de El, chefe do panteão dos Deuses. No Primeiro Testamento ela aparece muitas vezes como esposa de Baal, sendo que na épica de Baal, Asherah cria os monstros que o devoram, se opondo à construção de um templo para Baal (Mackenzie, 1984:.82).

O culto a Asherah foi muito popular em Israel e Judá. O rei Asa (912-871 a.E.C), que ficou no poder durante 41 anos em Judá, empreendeu uma restauração no culto a Yahweh e “chegou a retirar de sua mãe a dignidade de Grande Dama, porque ela fizera um ídolo para Aserá; Asa quebrou o ídolo e queimou-o no vale do Cedron” (1Rs 15,13; cf. 2Cr 15,16). O ídolo remete na palavra hebraica mifleset, a algum objeto de culto, provavelmente de madeira. É interessante perceber que o culto se dá no palácio, em ambiente oficial (Croatto, 2001: 40-41). Já na passagem de 1Rs 16,33 “Acab erigiu também um poste sagrado...” demonstrando que Asherah também foi adorada em Israel.

Em 2Cr 14,1-2, onde o rei Asa é lembrado como o rei que fez o que é “bom e justo aos olhos de Yahweh, seu Deus”, exatamente porque “eliminou os altares do estrangeiro e os lugares altos, despedaçou as estelas, destruiu as aserás...” ordenando o povo a praticar a lei e os mandamentos de Yahweh (cf. Jz 3,7).

Refletindo sobre os textos bíblicos que mencionam a Deusa Asherah teremos como pano de fundo o contexto que Silvia Schroer tão bem elucida, os/as repatriados/as da Babilônia tinham integrado a questão da culpa de tal maneira que consideravam sobretudo o culto às deusas como motivo da ruína de Israel. Os expoentes deste grupo conseguiram banir de Judá quase completamente o culto às deusas dentro de um século e de apagar, o máximo possível, as memórias dele. Não é por acaso que o culto clandestino à deusa acontece no contexto de proibições misóginas e xenófobas de casamentos mistos. Todas as tentativas que seguem, de integrar a deusa pelo menos na linguagem teológica, são tentativas assentadas dentro do sistema monoteísta (Schroer, 1995:.40).

A partir desta perspectiva, de demonização da Deusa ou das Deusas, tentaremos constatar, nos escritos bíblicos, os impactos e as consequências que tal visão e atitude trouxe para a imagem da Deusa Asherah, que aos poucos passa a se tornar a Deusa proibida, a causa dos males e da ruína de Israel.

A marginalização do feminino, das mulheres é um processo que também se dá e se sustenta por meio de escritos bíblicos justificadores de uma sociedade patriarcal, atuando assim no que podemos chamar de “desempoderamento” das mulheres a partir do sagrado, o que trouxe e traz fortes impactos nas dimensões culturais, religiosas, sociais, econômicas e políticas.

A seguir, em dois momentos, analisaremos citações bíblicas sobre Asherah. Primeiramente as que mencionam Asherah como Deusa, depois as que aparecem com o nome “poste sagrado”, símbolo da Deusa.

A Deusa Asherah:

Há uma preocupação dos redatores bíblicos de excluir qualquer suspeita da Deusa Asherah ao lado de Yahweh, como sua consorte, de tal forma que os escritos bíblicos possivelmente foram redigidos com a intenção de apagar e demonizar a presença da Deusa.

As inúmeras citações sobre Asherah demonstram seu peso no contexto religioso, o que faz dela uma grande ameaça ao monoteísmo javista em ascensão.

Em 1Rs 18,19, “pois bem, manda que se reúna junto de mim no monte Carmelo, todo o Israel com os quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem à mesa de Jerusalém”, a referência a Asherah geralmente é considerada uma glosa. Quem incluiu esta referência tinha claro que Asherah era uma Deusa e a coloca em paralelo com Baal (Croatto, 2001:.41).

O rei Josafá (871-848 a.E.C), filho e sucessor do rei Asa, deu continuidade à política de seu pai, “Yahweh manteve o reino em suas mãos” (2Cr 17,5), pois “seu coração caminhou nas sendas de Yahweh e ele suprimiu de novo em Judá os lugares altos e as aserás” (2Cr 17,6). Em outra passagem, Josafá após combater contra Aram, apesar de ferido, volta com vida para Jerusalém sendo aclamado por Jeú, o vidente, deve-se levar auxílio ao ímpio? Amarias aqueles que odeiam Yahweh, para assim atrair sobre ti sua cólera? Todavia, foi encontrado em ti algo de bom, pois eliminaste da terra as aserás e aplicaste teu coração à procura de Deus (2Cr 19,3).

Ezequias (727-698 a.E.C), filho e sucessor de Acaz, é lembrado como o rei que “fez o que é agradável aos olhos de Yahweh”. Durante o seu reinado, após a celebração da Páscoa e da festa dos Ázimos é empreendida uma reforma do culto, terminadas todas essas festas, todo o Israel que lá se achava saiu pelas cidades de Judá quebrando as estelas, despedaçando as aserás, demolindo os lugares altos e os altares, para eliminá-los por completo de todo o Judá, Benjamim, Efraim e Manassés. A seguir, todos os israelitas voltaram para suas cidades, cada um para seu patrimônio (2Cr 31,1).

Nesta época o Reino do Norte, Israel, já havia sido destruído, sendo assim, Judá, Reino do Sul, tornou-se o único espaço onde a identidade religiosa do povo de Yahweh poderia ser mantida. Foi nesse contexto que Ezequias promoveu uma extensa reforma religiosa e política, com intenções de reunir o povo em torno de um só Deus e um só rei. Por isso, Ezequias é exaltado pelos redatores deuteronomistas como o rei que “fez o que agrada aos olhos de Yahweh” (2Rs 18,3). A reforma religiosa de Ezequias era baseada nas seguintes medidas: no combate a idolatria, na centralização do culto a Yahweh em Jerusalém e no cumprimento dos mandamentos. Tais medidas podem ter sido fundamentadas no documento trazido do Norte (Dt 12-26), que foi adaptado à reforma em Judá. Josias retoma 100 anos mais tarde este documento para empreender sua reforma religiosa e política (Gass, 2005: 78-83).

O rei Manassés (698-643 a.E.C), filho e sucessor de Ezequias, é lembrado pelos redatores como um rei que “fez mal aos olhos de Yahweh”, justamente porque reconstruiu os lugares altos que seu pai havia destruído, ergueu altares para os baais e fabricou postes sagrados, prestando-lhes culto. No entanto, foi construir altares dentro do Templo de Yahweh (2Rs 21,7) a maior abominação para os redatores, que ao final dos escritos sobre Manassés relatam sua conversão a Yahweh. “Sua oração e como foi ouvido, todos os seus pecados e sua impiedade, os sítios onde havia construído os lugares altos e erguido aserás e ídolos antes de se ter humilhado, tudo está consignado na história de Hozai” (2Cr 33,19).

O rei Josias (640-609 a.E.C) empreendeu uma reforma a partir de 622 a.E.C fazendo de Jerusalém o centro político e religioso de seu estado, destruindo os santuários de Yahweh que havia no interior e acabando com os cultos cananeus e assírios, que aconteciam no templo de Jerusalém e nos lugares altos. A reforma de Josias atingiu a liberdade religiosa popular, pois ordenou a Helcias, o sumo sacerdote, aos sacerdotes que ocupavam o segundo lugar e aos guardas das portas que retirassem do santuário de Yahweh todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu, queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron e levou suas cinzas para Betel (2Rs 23,4).

Com isso, o culto exclusivo a Yahweh é reafirmado pela corte e pela classe sacerdotal de Jerusalém, exclusividade que custou caro à religiosidade popular (Gass, 2003:.134-138). Josias ainda “demoliu as casas dos prostitutos sagrados, que estavam no templo de Yahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7). Aqui provavelmente se trata de vestidos feitos para a estátua de Asherah (Croatto, 2001:.41).

As intenções daqueles que redigiram tais textos parecem claras, ou seja, querem demonstrar que o “bom e justo” rei e povo é aquele que elimina qualquer resquício da presença de outros Deuses e Deusas em Israel, que o rei ou povo que “faz mal aos olhos de Yahweh” seria justamente aquele que aceita a realidade politeísta.

Na citação a seguir além de derrubar, despedaçar e reduzir a pó os altares, Josias manda espalhar este pó sobre o túmulo dos que ofereciam sacrifício a Baal e Asherah, ou seja, está explicito que pessoas foram assassinadas. Aqui o nome Asherah também aparece no plural, no oitavo ano de seu reinado, quando ainda não era mais que um adolescente, começou a buscar ao Deus de Davi, seu antepassado. No décimo segundo ano de seu reinado, começou a purificar Judá e Jerusalém dos lugares altos, das aserás, dos ídolos de madeira ou de metal fundido. Derrubaram diante dele os altares dos baais, ele próprio demoliu os altares de incensos que estavam sobre eles, despedaçou as aserás, os ídolos de madeira ou de metal fundido, e tendo-os reduzido a pó, espalhou o pó sobre os túmulos dos que lhes ofereceram sacrifícios (...) Nas cidades de Manassés, de Efraim, de Simeão e também de Neftali e nos territórios devastados que os rodeavam, ele demoliu os altares, as aserás, quebrou e pulverizou os ídolos, derrubou os altares de incenso em toda a terra de Israel e depois voltou para Jerusalém (2Cr 34,3-4.6-7).

Em Is 27,9 a Deusa Asherah é taxada de forma explícita como o pecado de Israel, a causa de sua iniquidade e ruína, devendo ser banida por completo, porque, com isto, será expiada a iniquidade de Jacó. Este será o fruto que ele há de recolher da renúncia ao seu pecado, quando reduzir todas as pedras do altar a pedaços, como pedras de calcário, quando as Aserás e os altares de incenso já não permanecerem de pé.

Está claro que a ascensão do culto exclusivo a Yahweh não se faz de forma tranquila, mas de forma violenta, a partir da intolerância religiosa, da destruição e da eliminação por completo do outro, que se torna uma ameaça.

Asherah como objeto cúltico:

A proibição “não plantarás um poste sagrado ou qualquer árvore¹ ao lado de um altar de Yahweh teu Deus que hajas feito para ti, nem levantarás uma estela, porque Yahweh teu Deus a odeia” (Dt 16-21-22), conforme Croatto (2001:.42), revela que o objeto que simboliza Asherah é feito de madeira, que está plantado, ou seja, é um poste ou uma estaca e não uma estátua, que sua colocação “ao lado de um altar de Yahweh” transparece o caráter cultual do símbolo e principalmente a associação da Deusa simbolizada junto com o próprio Yahweh.

Em Jz 6,25 o pai de Gedeão possuía um altar de Baal que tinha uma Asherah ao lado, “aconteceu que, naquela mesma noite, Yahweh disse a Gedeão: Toma o touro de teu pai, o touro de sete anos, de uma segunda cria destrói o altar de Baal que pertence a teu pai e quebra o poste sagrado que está ao lado”. Conforme Jz 6,26.28, o 'poste sagrado' é queimado. Tal atitude provocou revolta, “os habitantes da cidade disseram então a Joás: Traze para fora o teu filho, para que morra, porquanto destruiu o altar de Baal e cortou o poste sagrado que estava ao lado” (Jz 6,30).

Acab (874-853 a.E.C) construiu um templo de Baal para sua esposa fenícia, “erigiu também um poste sagrado e cometeu ainda outros pecados, irritando Yahweh, Deus de Israel, mais que todos os reis de Israel que o precederam” (1Rs 16,33).

Os redatores deuteronomistas se queixam que na época do rei Joacaz (813-797 a.E.C) o culto a Asherah esteve presente “todavia, não se apartaram do pecado ao qual a casa de Jeroboão havia arrastado Israel; obstinaram-se nele e até mesmo o poste sagrado permaneceu de pé em Samaria” (2Rs 13,6). A ruína da Samaria é então explicada em 2Rs 17,16 porque “rejeitaram os mandamentos de Yahweh seu Deus, fabricaram para si estátuas de metal fundido, os dois bezerros de ouro, fizeram um poste sagrado, adoraram todo o exército do céu e prestaram culto a Baal”.

Manassés desfaz a reforma de seu pai Ezequias “reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, ergueu altares a Baal, fabricou um poste sagrado, como havia feito Acab, rei de Israel...” (2Rs 21,3).

Em 2Rs 23,6 o rei Josias tira Asherah de dentro do Templo de Jerusalém, transportou do Templo de Yahweh para fora de Jerusalém, para o vale do Cedron, o poste sagrado e queimou-o no vale do Cedron, reduziu-o a cinzas e lançou suas cinzas na vala comum.

Na citação de 2Rs 23,15b supõe-se que havia uma Asherah em Betel, muito antes de Josias, mas que este a “queimou”, demoliu também o altar que estava em Betel, o lugar alto edificado por Jeroboão, filho de Nabat, que havia arrastado Israel ao pecado, demoliu também esse altar e esse lugar alto, queimou o lugar alto e o reduziu ao pó, queimou o poste sagrado.

Conforme Croatto (2003:.43) o termo aserot (“os postes”) que designa o símbolo específico da Deusa Asherah é encontrado em poucos lugares. No plural, aparece geralmente no masculino (aserim). Nestas citações o termo já perdeu seu sentido original de símbolo da Deusa Asherah, num processo de “masculinização” que tenta apagar qualquer memória da Deusa.

Estes textos bíblicos nos ajudam a perceber o profundo processo de erradicação da Deusa Asherah, apagando qualquer resquício de sua memória, causando conseqüências drásticas à importância de Asherah na religiosidade do povo, bem como, no antigo culto ao lado de Yahweh. Os redatores bíblicos têm uma intenção nítida, contar a história a partir de Yahweh, único Deus, de tal forma que Asherah de consorte passe a ser sua rival, ou seja, a elite de escritores bíblicos tinham uma ideia daquilo que Deus deveria ser, único e masculino: Yahweh, negando assim toda a realidade politeísta em Israel.

Conclusões

Concluímos que Asherah possivelmente era uma Deusa e consorte de Yahweh no Antigo Israel e não um simples atributo deste. Várias descobertas arqueológicas e mencionadas nesta pesquisa nos ajudam na reflexão, destacando as de Khirbet el-Qom, em 1967 e a de Kuntillet Adjrud, em 1976, que traz a inscrição “abençoo-te em Yahweh de Teman e sua Asherah”.

A proibição da Deusa Asherah é fruto de um dado momento histórico de elaboração e ascensão do monoteísmo javista. A identidade judaica, após a drástica experiência do exílio babilônico e na tentativa de reorganização da nação, passa a se constituir em torno de três pilares: um só Deus, um só Povo e uma só Lei. A centralidade em Yahweh se torna um fator importante de credibilidade e legitimação da nova identidade nacional em formação, resultado das reformas empreendidas por Esdras e Neemias. A idolatria se torna então a culpa da ruína de Israel e neste contexto Yahweh é triunfante. Isso irá se refletir no conflito que os textos bíblicos demonstram em relação a Asherah e a outros Deuses e Deusas, bem como, em relação principalmente às mulheres estrangeiras.

Podemos claramente perceber que a elaboração e instituição do monoteísmo não se deu de forma democrática e muito menos pacífica. A partir de um contexto politeísta, a centralidade em Yahweh é um processo violento, de destruição da cultura religiosa do outro e da outra, de proibição do diferente, demonizando-o e tornando-o uma ameaça. Um processo nítido de intolerância religiosa.


A supressão do culto e da imagem da Deusa Asherah traz consigo conseqüências profundas para as relações entre os gêneros, afetando em especial aos corpos das mulheres, que tinham na Deusa uma possibilidade de representação do feminino no sagrado. A religião judaica vai se constituindo em torno de um único Deus masculino, legitimando historicamente uma sociedade patriarcal. Este poder divino imaginado somente como Deus afetou as mulheres, as crianças, a natureza, pois quase sempre partiu de um pressuposto de dominação, opressão e hierarquização das relações, tanto humanas como ecológicas.

Afirmar Asherah como Deusa é polêmico, mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a re-pensar não só as relações pré-estabelecidas entre homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida.
Re-imaginar o sagrado como Deusa é re-imaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado, novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa.
Esta talvez seja uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca a re-imaginar o sagrado, como possibilidade de re-imaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas secularmente.

Referências Bibliográficas
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21
ISSN 1981-1225
Dossiê Religião
N.4 – abril 2007/julho 2007
Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério
NEUENFELDT, E. 1999. Yahweh- Deus único? Evidências arqueológicas de cultos e rituais à divindades femininas e familiares no antigo Israel. Monografia de Graduação em Teologia. São Leopoldo, IEPG/EST.
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SCHROER, S. A Caminho para uma reconstrução feminista da História de Israel. (s.d.) 1995. Trad. Monika Ottermann.
Recebido em abril/2007.
Aprovado em junho/2007.

Notas

¹ Dá para entender por que povos e países dominados por tais doutrinas religiosas vivem em desertos ou destroem as florestas.

O Culto da Cannabis

A deusa egípcia Seshat representada com uma folha de marijüana sobre a cabeça. Seshat foi uma divindade protetora das bibliotecas, do conhecimento e da geomancia entre outras coisas.

DIR.: Bast, a Artemis grega, deusa da sabedoria. Entre os egípcios, zoomorfa meio-gato, meio-mulher, acreditava-se que dominava variados aspectos da vida civilizada: do Sol Nascente, como filha de Rá; e também deusa da iluminação [intelectual], do lar, do sexo, da fertilidade e do parto, dos prazeres físicos e, curiosamente, deusa das lésbicas que, no país do faraó, eram associadas à verdade, honestidade. In CANNABIS PR-NTR-KTM

As origens do uso erótico/sexual da marijüana remonta ao surgimento dos ritos de fertilidade associados às primeiras práticas da agricultura - em uma época em que a ligação do homem com a terra, com os campos, era compreendida como uma relação religiosa. Entre comunidades primitivas de caçadores, os shamans usaram a magia "imitativa" ou magia simpática [de reprodução, representação da realidade] para obter sucesso na expedições de caça. Vestiam peles de animais, envergavam cabeças de grandes mamíferos em suas danças mágicas. Quando as comunidades fizeram sua transição da economia de caça-coleta para a economia agrária, a mesma lógica foi aplicada aos campos cultivados. Os ciclos das colheitas eram acompanhados de simbolismos e festas rituais.

Para estimular o bom desenvolvimento dos campos, os primeiros agricultores acreditavam na necessidade de renovar, periodicamente, o "matrimônio" entre a divindade da Terra e a divindade dos Céus. [Como na mitologia grega, Urano, o Céu, fecunda a Terra, Gaia]. O tema principal desses rituais, portanto, era o sexo, posto que era/é meio de fecundação. Orgias coletivas eram praticadas nos campos; orgias que, mais tarde, foram ritualizadas em cerimônias fechadas entre o rei e sua consorte ou entre sacerdotes e sacerdotisas.

A cannabis é considerada uma das culturas mais antigas da humanidade e a planta tem poderosas qualidades afrodisíacas. As práticas orgiásticas começaram precocemente justamente entre aquelas comunidades pioneiras no cultivo e uso da planta e uma das primeiras práticas religiosas da humanidade foi o coito ritual praticado nos campos.

Experiência Religiosa

O pesquisador da marijüana, Sula Benetowa, diz que a origem deste antigo culto, da cannabis, pode ser encontrada no Oriente Médio. No artigo Tracing Onde World Through Different Languages, ele escreve: "Tendo em conta o elemento matriarcal da cultura semita é possível afirmar que a Ásia Menor foi o centro de onde se propagou ambos os caracteres socioculturais: o matriarcalismo e o uso massivo do hashish [essência oleaginosa da maconha].

Um desses "elementos matriarcais" refere-se ao culto da deusa semita Asherah [em algumas tradições, dita consorte de Jehová], para quem era queimada a cannabis como incenso sagrado. Os corpos também eram "ungidos" com um o óleo da cannabis, o Santo Óleo, semelhante ao usado por Moisés e outros profetas e reis judeus da Antiguidade. [ver CC#5, Kaneh Bosm: the hidden story of cannabis in the old testament].

Objetos relacionados ao uso de cannabis foram encontrados em tumbas congeladas dos antigos Citas [Scythians] nas montanhas Altai, na fronteira entre a Rússia e a Mongólia. No sítio arqueológico também foram achadas sementes e restos dos "frutos" [berlotas] da planta. O Citas usavam a maconha reunindo-se em cabanas onde a erva era queimada e todos aspiravam seus vapores "mágicos" - um "efeito sauna". Essa prática de "respirar cannabis" foi mencionada por Herótodo e data de 500 a.C.. In Hallucinogenic Plants | EROWID.ORG

William Cole, em Sex and Love in The Bible, fala do culto a Asherah, enquanto cônjuge ou "aspecto feminino" do "deus" israelita Jehovah: "Ela foi uma divindade da Natureza, simbolizando sexualidade e fertilidade. Em muitas passagens do Antigo Testamento existem referências a Asherah, representada [o] como um pilar de madeira, um objeto de devoção. Claramente, é um símbolo fálico, ocupando lugar similar ao Lingam hindu.

Cole também explica que muitos deuses e deusas antigos aparecem em pares de macho/fêmea, [uma referência aos Hermafroditas de Raças Antigas]. Tais deuses também são retratados criando o mundo/Universo através de uma cópula [ato sexual].

"Os devotos destas divindades, aparentemente acreditavam no dever religioso da magia imitativa na qual, homem e mulher copulavam no solo, misturando suas "sementes" e seus desejos com a terra que, assim, tornar-se-ia ou continuaria fértil, pela partilha do ato sexual praticado pelos humanos. As orgias envolviam o uso de psicotrópicos, substâncias alucinógenas ou relaxantes/excitantes além de atividade sexual intensa e heterodoxa como importante fator de eficiência "mágica".

Canção Erótica de Salomão

Uma passagem clássica de "erotismo bíblico", o Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão, atualmente é amplamente aceita como um texto litúrgico-amoroso integrante dos culto ao deus/deusa da fertilidade na região do Oriente Médio. É fato histórico conhecido que o rei israelita Salomão foi iniciado em cultos estrangeiros diversos em virtude do íntimo contato com a cultura de suas numerosas esposas, provenientes de diferentes nações, como o culto a Astarte e a queima ritual do incenso de cannabis [1 Reis 11:3-5].

Não é surpresa, portanto, encontrar umas tantas referências bíblicas diretas à cannabis nos Cânticos de Salomão:

"O quanto é intenso o seu amor, minha irmã, minha noiva! Mais delicioso que o vinho é o teu amor e a fragrância de seu óleo [ungënto], mais deliciosa é que o aroma das especiarias. Seu corpo é um pomar de frutos abundantes, de romãs, de henna e nardos, nardos e açafrões, cannabis [Kaneh Bosm] e canela e todas as árvores de incenso" ... [Cântico dos Cânticos 4:8-14]. Outra passagem demonstra explicitamente a simbologia sexual dentro da liturgia [cerimônia religiosa]:

Meu amor tocou-me a caverna
e meu ser fervia por ele
Eu me ergui e me abri para o meu amor
a minhas mãos gotejavam a mirra
A mirra escorrendo entre os dedos
sobre as mãos...
E eu abri minhas cadeias para o meu amor
Cântico dos Cânticos 5:4-6

Astarte foi adorada como filha e contraparte [aspecto] de Asherah e, tal como sua "mãe", seu culto era associado às práticas sexuais e ao uso da cannabis. Tanto o Cântico dos Cânticos quanto o Hino a Ishtar [outra divindade mesopotâmica] são narrativas de união conjugal. Cerimônias muito parecidas, que incluem o culto ao sexo e uso ritual da cannabis, são encontradas na Índia [ainda nos dias atuais].


O Festival das Carruagens, que data de época pré-Védica, ainda é realizado pelo culto Jagahath, em Puri. Nesta antiga festividade, carruagens com decoração elaborada, representando o "mundo em ação", saem em cortejo levando a figura velada do "Senhor do Universo" e sua noiva. Acredita-se que uma das figuras veladas é um lingam [pênis] gigante.

Durante o Festival de Jagganath, as "prostitutas do templo" desempenham o papel de "esposas do rei-deus" e mantêm relações sexuais com o "rei" ou sacerdotes a fim de obter abundantes chuvas de estação. O uso da cannabis faz parte dos rituais. O pesquisador do psicodelismo, Jonathan Ott, em seu livro Pharmacotheon, conta que os ingleses suprimiram, proibindo, esse ritual em toda a Índia e a atuação das devadasis, as prostitutas sagradas. A tradição desapareceu lentamente exceto em Puri.

Shiva & Kali

O uso da marijüana é parte do culto tântrico hindu de Shiva e Kali, duas das mais antigas divindades do mundo. O uso erótico ritual da cannabis também está inserido em no contexto da obtenção de fertilidade. A forte associação de Shiva com a cannabis está claramente demonstrada na antiga mitologia que envolve a planta bem como as minuciosos procedimentos dos devotos em relação aos campos sagrados.

Praticantes de tantra, seguidores de Shiva e Kali ainda usam marijüana como estimulante do sistema nervoso central capaz de ativar a energia chamada de kundalini, intimamente conectada com a energia sexual. É um costume milenar. Em The Woman's Encyclopedia of Myths and Secrets, a pesquisadora Barbara Walker explica:

Os principais fundamentos das práticas tântricas podem ser encontrados em tempos pré-históricos. Basicamente, é uma teosofia [pensamento religioso] que inclui o culto à Deusa-Mãe, às forças sexuais, à fertilidade, aos fenômenos naturais, tal como nos cultos animistas. Muitos dos símbolos usados no tantrismo contemporâneo, como os órgãos sexuais feminino e masculino, são semelhantes àqueles encontrados em cavernas paleolíticas, datando de 20 mil anos, em lugares tão diferentes quanto Europa Ocidental e China.

Sexo, Maconha e Energia

Os cultos à fertilidade, repletos de práticas sexuais, evoluíram ao longo das Eras e desenvolveram-se entre os estudiosos gnósticos e os praticantes de Tantra. Tornou-se um "casamento sagrado" que acontece no plano mental dos praticantes. O ritual não se dedica mais à fecundidade da terra ou dos homens; antes, pretende proporcionar o encontro do indivíduo consigo mesmo e sua identificação com o Universo.

Ritos que usam o sexo e a cannabis buscam o despertar da Kundalini e sua ascensão, ou seja, a ativação da energia sexual de modo tal que ela possa percorrer a coluna, alcançar a glândula pineal e atuar no cérebro como força criadora e regeneradora; e não mais e somente como força de geração física.

A glândula pineal é considerada a sede da alma, do espírito. É um órgão misterioso de funções praticamente desconhecidas mas para os praticantes do esoterismo, o uso da cannabis combinados com outras práticas, como relaxamento e meditação, produz uma ativação incomum da energia sexual. Nas palavras do místico Aleister Crowley, extremamente experiente quando o assunto é droga e sexo: "Quando você entende que Deus é meramente um nome para o instinto sexual não me parece tão difícil admitir que Deus está no sexo".

FONTE - Marijüana: the ultimate sex drug
CANNABIS CULTURE publicado em novembro | 1999
por Chris Bennett | tradução & adaptação: Ligia Cabús
http://jahmusic.vilabol.uol.com.br/rascultura/sexcannabis.htm

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A Deusa sem intermediários / Deusa, Paganismo e Ecologia

Existe um estudo muito sério a respeito do Messianismo¹. Vivemos isso não só nas religiões, mas também na política. É um vício existencial terrível ficar esperando que o Messias salvador venha resolver todos os problemas. A questão desse personagem central passa justamente por essa armadilha.

No Cristianismo o caso é mais sério. Se você provar que Jesus não existiu, acabou o Cristianismo(ver o polêmico e instigante documentário Zeitgeist, no link). Todos os preceitos morais, toda a ideologia cristã depende terrivelmente dessa figura central. Para os católicos e cristãos fundamentalistas a dependência é ainda maior: Jesus morreu para salvá-los, assim qualquer alteração na história de Jesus, como as tradições que dizem que ele não morreu na cruz, que foi tirado antes e foi morar na Índia, onde tem até um túmulo que alegam ser dele, destrói completamente a base dessas religiões².

O Budhismo é um caso mais complexo. Como o Cristianismo, o Budhismo se desenvolveu em muitas e diferentes seitas. Temos desde escolas filosóficas como o Zen até Escolas que acreditam que basta você ficar cantando uns mantras e chamando um certo Budha ( existiram vários além do histórico Sidarta Gautama) e vc está "salvo". O Espiritismo Kardecista quando surgiu não tinha linha filosófica clara. Existem uns escritos de Madame Blavatsky nos quais ela comenta que o espiritismo é tão confuso que iria acabar adotando o Cristianismo como base religiosa... E foi o que aconteceu.

Esse papel torna Kardec um codificador, mas não o coloca numa perspectiva histórica, no mesmo patamar de Jesus ou Gautama Budha, ou Maomé, ou Krishna. Esses seres que cito foram seres semidivinos, seres cercados de uma aura que os colocava num nível muito particular. Jesus é o filho de um Deus tribal, o Deus dos judeus, que foi imposto como Deus universal. É engraçado notar esse equívoco tremendo, quando colocam um deus tribal no lugar do conceito de Divindade Cósmica e chamam esse deus tribal de deus único e consideram esse arremedo de monoteísmo uma evolução, em relação ao panteísmo que sente a divindade em todas as manifestações da natureza ou ao politeísmo que cultua várias divindades.

O Budhismo tem uma perspectiva inicial diferente: Sidarta Gautama é um homem comum, como nós, que realiza o despertar e DESPERTANDO se torna o BUDHA, que quer dizer desperto. Ele não é diferente de nenhum outro ser humano e seu caminho pode ser trilhado por qualquer um. Enquanto Jesus "morre para salvar seus fiéis", mantendo antigas práticas mágicas do "cordeiro sacrificial", Gautama ensina um caminho para que qualquer um que se dedique também desperte.

Quando nos aproximamos da Wicca não vamos encontrar nenhum conceito de "salvação por procuração" fixado em um ser humano. Se notarmos com atenção a Religião da Deusa nunca desapareceu completamente. Esteve hibernando, esperando que o inverno árido espiritual que caiu sobre esta parte do mundo passasse, com toda sua terrível perseguição, principalmente às mulheres, que se dedicavam à ARTE.

Gardner tem acesso a uma antiga linhagem que sobrevive de forma discreta e pode então lançar as bases do que vai ser um "renascimento" público da Wicca e, por tabela, de várias outras formas de Paganismo (livro no link: A Bruxaria Hoje, por Gerald Gardner).

O que mais caracteriza o Paganismo em geral? A sintonia com a Natureza, o reconhecimento da divindade em cada momento da Natureza, o reconhecimento desse elo profundo e intransferível que temos para com a Natureza e a percepção que a Divindade, a Eternidade que nos envolve é feminina. Este aspecto é muito interessante e traz de volta uma questão muito séria. Não se trata de um simbolismo, não se trata, como querem alguns, que os "primitivos" consideravam a mulher um símbolo melhor para a Divindade. Aliás, é mesmo um símbolo mais rico, pois a mulher gera, assim a Deusa "emana" a criação de si, ao contrário das divindades patriarcais que precisam "criar", "modelar em argila" e outros subterfúgios mais para quem não tem útero. Não é mero símbolo, é muito mais que isso, de fato a Eternidade que nos envolve É FEMININA.

E isso não é apenas na Wicca, não. O Xamanismo em várias versões coloca isso da mesma forma. Vivemos num universo feminino e num planeta feminino. Isso não desmerece o homem e o masculino. Até pelo contrário, explica porque ficamos nesta condição de "reis da cocada preta", pois sendo uma energia mais rara na existência ganhamos uma proeminência que podia ter sido usada de forma bem mais inteligente e criativa que o criar dessa civilização doentia de valores pseudo-patriarcais na qual estamos inseridos.

Assim sendo, na Wicca não temos "avatares" de destaque que representam "guias" no caminho. Nosso contato é direto com a Deusa e suas várias faces, nosso trabalho é direto com a Fonte. Gardner e tantos outros são "expoentes" da ARTE, pessoas sérias que ao dedicarem-se ao estudo profundo da ARTE nos auxiliam a compreender melhor sua complexa simplicidade.

A Deusa tem várias faces e também é a SEM FACE, pura essência, que está em nós e em cada fenômeno e evento com o qual interagimos. Há uma tradição interessante, hoje quase perdida, que conta que na senda iniciática o(a) aprendiz começa por conhecer as 3 faces da Deusa: A Menina, a Mulher e a Anciã. As 3 fiandeiras que tecem o destino de todos. Então, quando está pronto(a) o(a) aprendiz é levado a conhecer a face escura e secreta da Deusa, sua face negra.

Após esse momento o(a) aprendiz compreende os Quatro Cantos do Mundo e seu desafio agora é ser o Quinto ponto, o centro, após conhecer as quatro faces da Deusa é momento de ser a Quinta Essência, a quinta face, manifestar a Deusa em SI. Quando realiza este quinto momento, quando sente e "É" a Deusa em si olha para Cima e para Baixo e encontra a Deusa nos Céus e na Terra que pisa. Realizou o Sexto e o Sétimo passo em seu caminho. É então que encontra o Oito, o infinito e todas as barreiras caem, descobre que todas as imagens que usava para representar a Deusa eram ainda pálidas aproximações da realidade, caem as máscaras e podemos então SENTIR a Deusa em SI mesma, em toda a plenitude de seu poder.

Se isto é realizado, estamos prontos para entrar na nona esfera de iniciação e então conhecer o Mistério além do Tempo, além do Espaço. E então voltamos a ser unidade ao lado do Zero, 10. Nós, a unidade, fortalecidos e "potencializados pela Orubós sem fim, a Deusa que nutre de si mesma, a Existência cíclica. Na Wicca, como em outros ramos profundos do Paganismo, não precisamos acreditar em avatares dos Deuses ou da Deusa, em pessoas que criaram dogmas e regras, que tem seu papel sim, no começo do caminho, para evitar confusões, mas como aquelas rodinhas que usamos para aprender a andar de bicicleta, podem virar uma dependência limitante se não temos a coragem de quando estamos prontos, tirar tais rodinhas e andar sem as mesmas, com a certeza que se não estivermos de fato prontos, o tombo vem.

Nosso elo é direto com a DEUSA e seu Consorte, com a VIDA, e a Vida só se revela sendo vivida. Qualquer teorização excessiva é sempre sinal de fuga da vida em si, real e efetiva, para ficar justificando com elaborações racionais.

Por: Nuvem que Passa em Domingo, 04 de Agosto de 2002 - 21:17:59 (Brasília)
Notas (por F. )

¹ Um dos estudos mais sérios é o trabalho da socióloga brasileira Maria Isaura Pereira Queiroz

² ver o documentário Jesus viveu na Índia, lembrando que Jesus tinha um irmão gêmeo, Tomé, o dídimo. Dídimo tem origem grega, provém do nome Didymos, que significa literalmente “gêmeo”, “nascido do mesmo parto”, de dís, o mesmo que “duas vezes”, em português.


Deusa, Paganismo e Ecologia


Realmente este texto é uma das mais belas manifestações do espírito nativo dos povos que habitavam este continente.


Quando o pretenso civilizado aqui chegou e impôs sua cultura, impôs a ferro e fogo, com morte e dor, encontrou aqui uma cultura complexa, de valores ecológicos sofisticados como bem mostra esta carta. A sintonia com a Vida e com a Terra, vista como Mãe, é algo que nós neopagãos bem entendemos. Este é o valor mais ausente desta cultura utilitarista e consumista que se instalou no mundo: Não conseguem sentir a Vida pulsando em tudo à nossa volta, perderam o elo com a Mãe Terra, ser vivo e dinâmico, com o qual podemos criar uma relação que nos permite um grau de completude, de plenitude existencial e energética inominável.

Um dos riscos que vejo na Wicca hoje é uma adoção de um culto formal à Deusa, fazendo aquilo que tantos chamam de criar um "jeová" de saias. Sem a consciência ecológica não há ligação com a Deusa. Sem a mudança dos paradigmas fundamentais nos quais fomos criados, que não são ecológicos, não levam a uma relação direta com a divindade sem intermediários e sentindo faces da divindade em cada aspecto da existência. Sem esses pontos-base não há paganismo. Sem perceber a Deusa na natureza e na vida como um todo não há paganismo efetivo. É minha opinião que os cultos a uma "personalização" da Deusa pouca relação tem com "sentir" e "celebrar" a Deusa, que sempre foi sentir e celebrar a própria vida em seus ciclos. Uma pessoa que se diz pagã e não possuí aguda, clara e intensa consciência ecológica é alguém diletante, alguém que apenas repete formas prontas, sem entender a essência. Pois como estar em um movimento que busca ser uno com a vida sem ter essa consciência ecológica plenamente desenvolvida? Este me parece o primeiro ponto.

Segundo ponto a debater é a questão de sentir a Deusa. A percepção da Deusa sem faces, da Deusa enquanto origem e fonte sempre foi um conhecimento iniciático. Pelo que pesquisei nenhum culto "popular" tinha essa concepção. Sempre neste nível mais "exotérico" o culto era a uma das faces da divindade, da Deusa. O conceito da Fonte sem Fonte, da Deusa sem face sempre esteve associado aos trabalhos já dentro dos chamados mistérios. Estes dois níveis da religiosidade antiga nunca podem ser esquecidas quando falamos sobre os cultos ancestrais, os cultos abertos ao público e portanto os únicos que deixaram registros possíveis de serem estudados pelos historiadores tinham um outro aspecto, secreto, oculto, transmitido apenas de boca para ouvido e que sobrevive até os dias de hoje dentro destas mesmas premissas, pois me parece uma das grandes ilusões contemporâneas crer que o secreto e o sagrado estão revelados. Aliás podem até estar, já que etimologicamente revelar é velar de novo. RE-velar. Mas nunca o sagrado, o segredo, os mistérios serão revelados neste sentido que dão ao termo, pois não é o mistério que pode ser aberto à compreensão limitada de quem apenas foi condicionado pela sociedade, mas somos nós que temos que nos desenvolver, sutilizar e ampliar nossa percepção para mergulhar na vastidão onde reside o secreto e o sagrado. Como a cor só se revela a alguém quando este alguém abre os olhos, não há como falar sobre cores a quem insiste em manter os olhos fechados.


O esoterismo contemporâneo, ou, melhor dizendo, o que se convencionou chamar de esoterismo hoje, é um conjunto de idéias que remete ao transcendente, mas ir ao transcendente é algo para ser feito com plenitude, jamais apenas como conceito intelectual. Da mesma forma, o paganismo é algo que hoje precisa ser recuperado. Não está em nós, criados como civilizados, de forma "natural". Por isso gosto do termo “neopagão”, fica claro que somos pessoas com toda uma influência cultural urbana, que pouco a pouco lutam para recuperar uma abordagem mais plena e realista da vida, que inclui o perceber da Vida em sua plenitude e da natureza como ser vivo e do qual fazemos parte. Por isso, lendo esta carta do chefe Seattle a gente volta a notar como são distintos e distantes os paradigmas da cultura que fomos criados e destes povos nativos.

Nossa chance é de hibridação, de fusão entre estas culturas. Quando notamos o que aconteceu de fato aos povos nativos, como foram subjugados e quase completamente destruídos percebemos que algo falhou em termos práticos, na realidade da luta pela continuidade existencial algo não foi pleno neles, pois perderam a guerra para este modelo cultural no qual fomos também limitados. Este é um dos pontos mais fundamentais quando vamos estudar o paganismo em geral. O Paganismo, embora tenha as melhores respostas para a sobrevivência efetiva da humanidade, uma vez que os modos de vida do mundo civilizado nos levam a esta crise ecológica e social sem precedentes históricos que vivemos, não conseguiu resistir à invasão, saque e genocídio, acompanhados de destruição da cultura, subjugação e imposição de um modelo cultural estranho que aconteceu onde quer que os conquistadores chegassem com seu estilo de vida. Das legiões romanas aos navegadores cristãos católicos e protestantes dos séculos XV e XVI o fato é o mesmo: destruição de povos nativos com ricas e milenares tradições seguidas da imposição de uma cultura servil aos dominadores. Portanto, há algo que os povos nativos precisavam aprender em termos reais de sobrevivência frente a grupos outros que não os seus.

O irônico é que o grupo social vencedor, até agora, nesta guerra entre nações, não é o mais apto à sobrevivência, ao contrário, apresenta mesmo um comportamento danoso e perigoso a si e a todos os outros grupos de seres vivos da Terra, pois em sua loucura e luta pelo poder constrói armas cada vez mais nefastas, já suficientes par acabar com o mundo num nível alarmante, fora as tecnologias pesadas e poluentes que adotamos em nosso cotidiano, com um total desrespeito à vida e as próximas gerações. Daí que considero que o Paganismo é revelado antes de mais nada pela prática que pelo discurso. Discursos verborrágicos, cheios de erudição não fazem de ninguém pagão. O paganismo vem da realidade prática, que pode e deve mesmo, ser embasada por um bom conhecimento da teoria do que se faz, mas é no fazer que se revela. Paganismo é atitude.

Nuvem que passa


Mora, na Filosofia

                 

O Poder, em sua natureza impessoal, possui uma linguagem direta que se expressa através de tudo: dos eventos naturais, das relações sociais e das manifestações das próprias coisas ditas inanimadas, deixando sua marca registrada através de coincidências significativas, sincronicidades. 

Estar atento e sintonizado para essas comunicações não verbais é a tarefa do aprendiz de Xamanismo. Tais comunicações não verbais expressam a linguagem silenciosa, a linguagem sem linguagem do Poder, do Intento, do Nagual. 

O silêncio interior é a matrix deste conhecimento silencioso que exige do aprendiz uma condição física perfeita e uma mente estável para revelar os seus arcanos. 

Aqui, na verdade, estamos diante de um outro sistema cognitivo, de uma nova epistemologia, de uma práxis da fenomenologia, como disse certas vez o nagual de 3 pontas, que nos permite transpor os limites kantianos e responder de forma prática à Schopenhauer, e, assim, o Xamanismo torna-se a ponte real e perceptiva que nos leva do fenômeno para o númeno, da representação para o real, da descrição para a coisa em si.





quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Uma heresia?

A heresia das heresias era o bom senso - George Orwell.


No Absolutismo havia o chamado direito divino dos reis ao trono. E como os reis eram os representantes de Deus na Terra eles eram considerados perfeitos e não podiam errar: 

"The King can do no wrong". 

Conseguimos superar essa concepção. Mas não superamos a ideia original que deu sustentação ao absolutismo dos reis, o absolutismo divino, pois ainda encaramos Deus, o senhor supremo e rei do Universo, como perfeito e infalível, segundo a visão teísta tal como a que marca a nossa cultura. 

Perfeição é igual a Deus, eis uma concepção que precisa ser questionada, pois essa hipótese vai além do dualismo teísmo e ateísmo (algumas pessoas são ateias devido a incongruência da ideia de Deus como ser perfeito ter criado algo tão imperfeito, por exemplo, como nós), pois se Deus não é perfeito, questão que tem a marca da heresia própria do pensamento independente, se o Criador é imperfeito e sujeito ao erro, então, poderíamos entender por que no Universo e na Natureza há a marca da violência, típica de Caim, por que existe esse aspecto predatório tão marcado na existência. 

O próprio universo criado como uma distopia.

Se o Criador é imperfeito pode-se entender perfeitamente a expressão contida em Gênesis de que nós fomos feitos à imagem e à semelhança do Criador, afinal diz o ditado popular: Filho de peixe, peixinho é. 

Vejo o brilho da navalha de Ockham. 

Sinto o ardor das fogueiras inquisitoriais.

Em algumas mitologias (em certas linhagens gnósticas, por exemplo) é indicado que a criação tem problemas por que o Criador é imperfeito, tido até como maligno. Em todas as mitologias vemos os Deuses com um comportamento tipicamente humano e justificamos isso como uma projeção. Mas e se não for uma projeção? E se os Deuses forem imperfeitos como bem vemos pelo comportamento deles narrado em tantas mitologias? E se não conseguimos simplesmente perceber isso por estarmos presos ao paradigma do absolutismo divino no qual o Criador não erra? 

Isso jogaria sobre nós uma grande responsabilidade, pois não estaríamos aqui para sermos salvos por Deus, mas para salvá-lo através de nosso próprio aperfeiçoamento como seres humanos.

Nosso amor teria que ser tão grande que isto nos tornaria quem sabe divinos, pois o nosso perdão se estenderia até aos deuses.

Mas talvez isso não passe de mais uma heresia...



terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Por que vivemos numa sociedade de idiotas? Escuta, Zé Ninguém! Por John Nada.

"Tomei a resolução de fazer a minha tarefa resoluta e honestamente. Deve ser duro e difícil viver no mundo. Em primeiro lugar, resolvi ser cortês e sincero como todo o mundo. “Ninguém deve esperar mais do que isso, de mim. Talvez aqui também me olhem como uma criança; não faz mal.” Todo o mundo me toma por um idiota e isso também pela mesma
razão. Outrora estive tão doente que realmente parecia um idiota. Mas posso eu ser idiota, agora, se me sinto apto a ver, por mim próprio, que todo o mundo me toma por um idiota? Quando cheguei, pensei: “Bem sei que
me tomam por um idiota; todavia tenho discernimento e eles não se dão conta disso!…” - O Idiota, de Dostoievski.

Não, não quero ofender a ninguém, até pelo fato mesmo de me incluir em tal condição como participante de tal sociedade.

E como idiota que sou recorro ao dicionário, o pai dos burros, para descobrir-me, para revelar-me, para entender a minha origem e vejo que idiota vem do grego idios, que significa pessoal, privado, particular, como em idiossincrasia, a maneira própria de uma pessoa reagir a um evento qualquer.

Assim idiota não tem nada de mais, não é ofensivo, é até comum, comum a todos, é um comunismo comportamental a idiotia. E talvez seja aí que a porca torce o rabo, e talvez esteja justamente aí o problema, afinal, quem quer ser comum, quem quer ser medíocre, mediano, morno, aquele que não fede e nem cheira? Ninguém. Ninguém quer ser ninguém. Todos querem ser algo nesta vida de meu Deus (em grego Dios, curioso não?).

Assim a palavra idiota vai do particular - idios - ao comum - medíocre. E isso é uma evolução no entendimento da palavra, o que nos mostra uma aparente contradição, algo próprio dos idiotas.

E é comum a todos nós aquele desejo de se destacar, aparecer, ter aqueles 15 minutos de fama, todos querem ser reconhecidos, o zé ninguém (de Wilhem Reich ou ainda o John Nada, de Eles Vivem) quer ser algo, e para tal é necessário que o idiota, seguindo aquilo que é valorizado pela sociedade (de idiotas), adquira certos bens, obtenha certas coisas ou manifeste determinados valores ou atitudes. Ou seja, o idiota quer ser valorizado pela sociedade de idiotas e aí está o paradoxo. O idiota quer ser um idiota especialmente valorizado pelos outros idiotas, quer ser popular, quer ser eleito, quer se reverenciado, quer chamar a atenção a todo custo, mesmo que isso custe a sua vida ou a sua liberdade.

Eis uma das marcas distintivas do idiota, querer ser especialmente reconhecido como tal pela sociedade: reconhecimento social. 

Por isso as redes sociais se tornaram o espaço de predileção para tal tipo de manifestação, que abunda como erva daninha a esparramar-se por todo o canto. Todos dias nos jornais, nas redes, nas mídias vemos flagrantes disso. Alguns escabrosos. Como o que vi hoje: um jovem que assaltava apartamentos de luxo no litoral paulista e que ao fazê-lo tirava selfies de si mesmo, ostentando os produtos de seu roubo, enquanto era filmado pelas câmeras de segurança. Verdadeiro narciso larápio, adorador de si, mais preocupado em aparecer do que em furtar, um autêntico meliante carente, inclusive de inteligência.

Não há como não nos ver em tal marginal, nesta sociedade nos espelhamos, difícil é ver-se no outro, já que a revelação beira ao grotesco e auto-revelação pode ser chocante, pois tudo o que se quer, tudo o que um idiota deseja é roubar a atenção de alguém, alguns likes, alguns cliques para poder dizer a si próprio: sou reconhecido, logo existo. 

Vultus ergo sum.  

O idiota, sobretudo, não percebe que a única forma real de valorizar-se é deixando de ser o que é, mas o preço a se pagar é alto demais, é como naquela história que vi certa vez no filme Serpico (1973), com Al Pacino, um filme que fala de um policial honesto que trabalhava disfarçado para departamento de entorpecentes em NY. A namorada de Serpico deitada na cama contou uma lenda que resumia a história do próprio Serpico:

"Certa vez um homem santo recebeu uma revelação de um anjo que o Diabo iria envenenar todas as águas do mundo de uma tal maneira que os humanos se esqueceriam de quem eram. O homem santo fez uma reserva de água para si mesmo e evitou beber das águas do mundo dali por diante. Com o esquecimento generalizado o homem santo tentou revelar aos outros humanos quem eles eram de fato, mas acabou sendo perseguido como louco, afinal, só ele afirmava aquele absurdo de que os humanos estavam alienados de si mesmos. Perseguido e a beira de ser assassinado o homem santo disse para a multidão que o acossava: - Esperem! Eu sei como me curar! - E bebeu das águas do mundo".

Eis a história do "novo normal".

Das águas do mundo quase todos acabam por beber, mas se não queres fazê-lo evita de querer fazer como o homem santo, segue por outro caminho, "o caminho do homem astuto", como diria Gurdjieff, uma das possibilidades, dizem, de deixar de ser um idiota. Algo muito difícil, mas não tanto quanto fazer parte da sociedade da idiotia. Mas, talvez, pior ainda é ficar no meio do caminho, num limbo, onde não se é nem uma coisa e nem outra.



Autodomínio

Quando verdadeiramente convencido verás que não é preciso a ninguém convencer. O convencimento do outro é uma violência. Isso fez da polític...