Xamanismo Urbano
Xamanismo Urbano é um ramo contemporâneo da ancestral árvore do Xamanismo, que é um conhecimento ancestral. Ao contrário de cultos de povos que já foram completamente exterminados, o Xamanismo ainda tem linhagens vivas em todos os continentes que vem transmitindo o conhecimento de boca para ouvido desde antes da aurora do tempo, e, portanto, é um conhecimento vivo que possui uma energia fluindo através da transmissão.
Tradições que foram geradas dentro do espaço-tempo moderno possuem uma energia característica deste momento. Outras tradições vem de antes do tempo e trazem consigo uma energia de fora, um algo diferente que não pertence a esta realidade.
É este poder, esta baraka, esta graça que uma TRADIÇÃO transmite a quem nela se inicia. Uma energia que não é desta realidade, a qual vem de antes de tudo que temos por realidade surgir.
Xamanismo, embora este termo seja hoje também utilizado por pessoas que copiam a forma, mas pouco compreendem o conteúdo, é um caminho que propõe um estado de viver muito mais abrangente do que o apenas sobreviver ao qual estamos expostos.
É natural que o Xamanismo sempre busque se adaptar ao tempo e ao lugar onde está, mas esta adaptação não é abandonar sua essência, não é se adulterar, não é se fantasiar ou travestir-se.
Todo Caminho Verdadeiro está sempre em sincronia com o aqui e agora, isto caracteriza um caminho profundo. Ele flui pelo Espaço-Tempo com naturalidade. Leva a essência do conhecimento e não a forma. Assim, hoje em dia, é muito mais provável que xamãs estejam trajando terno e gravata¹ em vez de penas e cocares, sem que isto, no entanto, lhes façam menos unos à Fonte de onde tudo nos vem.
O Xamanismo tem formas inteligentes, estratégicas e mágicas de nos permitir viver nas cidades de maneira harmônica. Minimizando os efeitos nefastos que a vida urbana está sempre a infringir sobre nossos organismos.
Ondas de celular, rádio e TV. Alimentos sem energia vital contaminados por verdadeiros venenos e substâncias agressoras. Fumaça, barulho. Tudo isto a cidade nos oferece. A violência urbana, a neurose das pessoas, as atmosferas psíquicas desequilibradas que a maior parte dos lugares urbanos insiste em desenvolver. Todos estes são fatores que podem constituir uma agressão ao nosso bem-estar.
A vida em prédios! Quantas famílias e pessoas ‘vivem’ no espaço como o de um prédio? Auras se interpenetrando, energias se misturando.
A tudo isso a cidade nos expõe. Porém não nos ensinaram a lidar com tais desafios de forma satisfatória. O consumo de remédios e drogas —- do álcool às religiões fanáticas - passando por coisas ‘pesadas’ mesmo. A infelicidade das pessoas, doenças constantes e a violência, são sinais da falência geral do sistema social que aí está. A questão é bem profunda.
Nós mesmos, tidos como civilizados, o somos, enquanto espécie, há tão pouco tempo. Essa vida de cativeiro nos é recente. Nossas células carregam em si uma saudade imensa de tempos em que os ritmos do sol e da lua lhes eram mais fortes do que a imposição de um escravizador moderno chamado relógio.
Nossa ancestralidade selvagem é muito mais ampla e forte que os poucos milhares de anos transitando para esta sociedade, que como nós, ninguém conheceu: — artificial, programada, dominada de tal forma que os povos livres nem em seus medos mais profundos imaginaram.
Como explicamos para essas forças ancestrais e selvagens que gritam em cada célula nossa que devem ser “boazinhas, educadas e cordatas”? Como explicar aos tambores que batem em nosso peito que devem se calar? Como explicar ao grito selvagem que queremos emitir que deve continuar ali, contido? Como explicar a sensualidade que viceja de tempos em tempos, como suor em nossos poros, que deve ser reprimida?
Nós que nascemos em cidades geralmente negamos nossa selvageria. Filhos e filhas dos conquistadores. É bom que não nos esqueçamos que somos isso. Os filhos(as) dos conquistadores. Dos que vieram para cá e de forma direta ou indireta colaboraram para o genocídio quase completo das populações nativas.
E agora colaboramos de forma direta ou indireta para a continuidade desse genocídio, que ocorre enquanto escrevo e também enquanto você lê estas linhas. Por ação ou omissão continuamos cúmplices.
O Xamanismo é um caminho selvagem. Tentar transformar o Xamanismo nestas bobeiras insossas como “discos de poder animal”², querer gerar um “xamanismo new age” como tantos fazem, é apenas continuar com a farsa que o sistema tem lançado sobre tudo ligado a esta tradição oriunda de povos nativos sobre os quais sabemos muito, muito pouco em termos da ciência oficial, pois não apenas ao genocídio condenaram esses povos, como sua memória foi apagada da história oficial, ignorados em suas sofisticadas civilizações.
O Xamanismo foi mantido e desenvolvido por povos nativos de vários continentes, mas não começa com eles, vem de antes. Vem dos véus além da aurora dos tempos. Isto é fundamental ficar claro para irmos às reais origens do Xamanismo. Os povos nativos são guardiães do Xamanismo, não seus geradores. Assim como uma escola de música não inventa a música, apenas aprimora e acumula técnicas e formas de ajudar novos artistas a desabrocharem com mais amplitude.
Isto é o mais importante, entender que o Xamanismo não é um conhecimento humano. É um conhecimento de outras esferas que foi ‘capturado’ quando a raça humana começou e depois foi se transformando. Não é uma verdade pronta. Não tem dogmas. É um campo de estudo em aberto, onde cada praticante é desafiado a provar por si, e em si, o que está estudando. Estudo aqui é sinônimo de prática. O Xamanismo surgiu em outra civilização que já existiu neste planeta e que se foi. A qual deixou um saber que continuou sendo ‘cultivado’ por gerações e gerações de praticantes até chegar a este tempo-espaço em que estamos.
Quando olhamos para o passado, os estudos científicos vão nos dizer que a Terra era do mesmo tamanho, mas isto é falso, a Terra era muito maior.
Existiam mais lugares para se ir na Terra do que há hoje, e os lugares não estavam sempre nas mesmas ‘coordenadas’. Existem muitos lugares que existiam e ‘foram embora da Terra’. Demorou muito para prenderem o mundo nessa descrição que temos hoje por ‘real’. O mundo já foi muito mais desconhecido e ainda o é em certos lugares e em certos momentos, embora o paradigma geral da ‘mentalidade’ dominante seja negar isso.
Essa fantástica homogeneização perceptiva que vivemos nesta idade globalizada é em si uma magia interessante e espantosa, mas realizada por e a serviço dos interesses de neo-senhores feudais e da guerra, das neo-companhias das índias ocidentais e orientais e dos neo-cleros que temos em nossa época que continuam fazendo o que sempre fizeram;: dividir o mundo entre si, provocar discórdias e acirrar disputas para obter benefícios desta divisão entre povos. Buscar mercados consumidores, fornecedores de matéria-prima, transformar tudo que seja possível em coisa a ser vendida. E converter e limitar a percepção humana aos seus estreitos padrões.
É importante notar como isso mudou. Hoje os jesuítas não são mais os campeões em obrigar outros a se converterem a seus paradigmas, a CIA tem tido muito mais sucesso.
Mas os fatos bases continuam e o Xamanismo observa tudo isso acontecendo com espanto, pois partilha da pergunta dos povos nativos:
Por que os ventos que regem os destinos humanos colocaram no poder um povo como o homem branco, que não ama a Terra, nem seus ancestrais, nem a seu irmão, irmã, pai, mãe; que trai seus amigos; que não respeita suas crianças e que condena todos nós, humanos, animais e vegetais a um fim cada vez mais evidente e próximo?
Nós, xamãs curandeiros, há muito temos como fato que a Terra está doente. Muito doente, praticamente em coma. Os absurdos e desmesurados atos da era industrial geraram uma doença profunda no Ser Terra. Por isso, encontros no mundo inteiro têm objetivado gerar energias de cura para que o Ser Terra se recupere. Sabemos que se Ele se recuperar vamos conseguir ter uma mudança verdadeira no estado de consciência coletivo.
Os povos nativos celebravam a vida e os ciclos da Natureza em seus cultos. Não eram cultos de adoração apenas, eram cultos de ‘sintonização’.
Os cultos exotéricos das religiões que foram dominando o mundo cada vez mais, destruíram esse elo do ser humano com a Terra. Passaram a cultuar egrégoras, imagens de um deus distante, fora da Terra, julgando, punindo ou ‘agraciando’ o ser humano segundo misteriosos caprichos, mas sempre necessitando ser ‘adorado’, ‘temido’, ‘idolatrado’. Assim tivemos a quebra do elo entre o ser humano com a Terra e o Sol, fontes verdadeiras de vida. Seres realmente vivos e fontes reais da nossa vida. Quebra esta que institui uma subserviência a abstrações mentais de deuses feitos à imagem e semelhança dos medos e caprichos humanos.
Os cultos que surgiram fazem com que o ser humano deixe de se harmonizar com as energias do Sol, Terra, dos Astros e outras forças cósmicas que os festivais e ritos ancestrais contemplavam e passem a adorar uma representação abstrata de um pretenso ‘princípio único’, de um pretenso ‘deus único e verdadeiro’ que torna toda pessoa que chame a divindade por outro nome, infiel ou herege.
A passagem do contato direto com a VIDA, com a NATUREZA, para uma religiosidade de adoração à ‘imagens’ e ‘representações’ é tida por ‘evolução’. Uma transição do ‘primitivo e pagão politeísmo’ para o avançado, progressista e evoluído ‘monoteísmo’.
E o que fizeram esses deuses? Cada um se dizendo ‘único e maior’, desde que começaram a ser adorados. Serviram de justificativa para toda guerra que houve desde então até hoje. Basta ligar a TV e ver esses deuses brigando. Há até mesmo versão ‘1’ e versão ‘2’ do mesmo deus brigando entre si, como no caso de cristãos e protestantes na Irlanda.
Sentir a Vida como divina! Logo a Natureza como divina, viva e consciente é algo fundamental ao caminho xamânico. Nas cidades isto é mais difícil, por isto é mais fácil ser praticante dessas abordagens racionais e menos sensíveis da realidade, da religiosidade.
Na cidade, com supermercados, açougues e feiras podemos esquecer que os alimentos ainda vem da Terra. Dependem do Sol, da chuva, dos ventos, pássaros e insetos polinizadores e do ciclo das estações.
Assim os natais de presentes e páscoa de ovos de chocolate são celebrações mais importantes do que a primavera que volta com a vida ou o momento da colheita.
Para nós do Xamanismo é evidente que a vida tem seus ciclos, suas formas de se manifestar. Isto celebramos, com estes ciclos nos sintonizamos. Na Terra e no Sol temos as forças fundamentais à Vida, sem elas, esta não existiria aqui. Nenhum ‘ser’ ou espectros de outras dimensões, a quem atribui-se maior valor do que a força viva da Natureza a nossa volta, pode nos sustentar enquanto ‘seres vivos e conscientes’.
A Magia telúrica e a Bruxaria telúrica são parceiras do Xamanismo nesta abordagem. Nosso corpo lê e metaboliza a energia das estrelas. Mas nossos pés precisam estar no chão e temos de estar bem alimentados e saudáveis se quisermos interpretar corretamente o que tais forças nos mostram.
O Sol é nossa fonte de vida. Mais forte que qualquer rito, que qualquer símbolo mágico, que qualquer eucaristia. Lá está ele! Sol, fonte da Vida aqui! Mesmo que nos destruamos com essa loucura de guerras e ‘economias’, ainda assim continuará lá, iluminando o céu de um planeta desolado porque os conquistadores tomaram o mundo e impuseram seu modo de ser.
O Xamanismo urbano é uma resposta.
Uma resposta da ancestral Arte do Xamanismo aos desafios que este momento está nos trazendo, pois agora estamos no tempo em que nitidamente vivemos a História como participantes atuantes ou só nos resta ‘sofrer a História’.
Agora, mais que nunca, precisamos de caminhos que nos ensinem a usar nossa mais profunda e poderosa Magia, pois loucos dominam o mundo. Esses loucos têm armas poderosas e respeito nenhum pela vida. Apenas sua insanidade e frustração existencial como guias.
Como nas antigas lendas nativas, temos de ousar sair em uma jornada mágica em busca de meios para lidarmos com esses loucos. Para que a vida ainda seja possível a nós e nossa descendência.
Notas
¹ Possível alusão ao encontro entre Carlos Castaneda e Don Juan Matus narrado em "Porta para o Infinito", no capítulo "Ter que Acreditar".
² Ver texto do autor: Sobre o Animal de Poder.