sexta-feira, 21 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Soledad Ruiz.

As Testemunhas do Nagual

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com a xamã, curandeira, mestra e atriz de cinema Soledad Ruiz. Conta-nos como conheceu Dom Juan Matus anos antes de conhecer Carlos Castaneda, de quem foi amiga íntima desde os anos 70.

A princípio se mostrou reticente, porém, quando ouviu que era um trabalho para preservar a memória de Carlos, concordou, mas fez um estranho comentário: “As histórias não importam, o que importa é o Espírito”.

Seu testemunho começa quando em certa ocasião ela foi, junto com outro discípulo, visitar sua mestra, Magdalena Ortega, que era uma bruxa espetacular, tinha grandes poderes e realizava verdadeiras façanhas, mas essa é outra história.

_ Naquele tempo eu já havia lido o primeiro livro de Carlos que acabava de sair em inglês e comentei a respeito com minha mestra e ela me contou que era comadre de Dom Juan Matus. A princípio não quis acreditar e ela, que era uma tremenda vidente, deve ter percebido, pois replicou: “Algum dia eu a apresentarei a ele.”

Em certa ocasião, fomos visitá-la eu e outro de seus alunos. Ela nos disse que Dom Juan estava para chegar com outras pessoas que, suponho, eram seus aprendizes. Enquanto os esperávamos, disse-nos:

“Vou lhes dar uma tarefa: que reconheçam dentre todos os que chegarem qual deles é Dom Juan. Depois escrevam justificando sua conclusão e voltem amanhã.”

Ordenou que não falássemos entre nós sobre nossas impressões até nos encontrarmos com ela no dia seguinte.

Os visitantes chegaram tarde e se justificaram dizendo que haviam se perdido. Do quarto ao lado escutamos como a mestra lhes dava uma amistosa repreensão. Quando entraram na sala, observamos que eram cinco ou seis pessoas de idade avançada, nos levantamos para sair e ela nos apresentou por nossos nomes: “Ela é Soledad, ele é Milosh”, mas não mencionou os nomes dos visitantes.

Assim que os vi, pensei: “Dom Juan deve ser o que está sentado na poltrona”. Nós os cumprimentamos com movimentos de cabeça e ficamos parados, enquanto eles comentavam o engraçado da situação, pois haviam caminhado longo tempo de um lado para outro sem encontrar a casa. Isso aconteceu porque a mestra vivia em Amsterdam, uma rua circular que em outros tempos tinha sido o Jockey Club da Cidade do México.

Nós os observamos durante um breve momento, depois nos despedimos e fomos embora. No dia seguinte regressamos à casa da mestra para comentar nossa dedução.

Eu descobri Dom Juan por uma só razão: o olhar. Seu olho esquerdo estava desviado, e afirma-se que essa é uma característica dos xamãs, mas é óbvio que o fato de não a ter não significa que a pessoa não seja xamã. É só uma convenção. Disse a mim mesma: que vou escrever? De modo que não levei a minha tarefa. Em compensação, Milosh preencheu três páginas completas com suas razões chegando à mesma conclusão que eu.

Ao escutar nossas deduções, a mestra me disse: “Sim, você atinou, esse era Dom Juan. Você também, Milosh.”

Depois nos perguntou como o vimos vestido. Eu lhe respondi: “Tinha um estilo camponês, com calças de gabardine, uma camisa comum e uma chamarrita.”

Nesse momento Milosh e eu nos demos conta de algo extraordinário: ele o havia visto de outro modo, com um terno elegante. Ficamos assombrados, perguntando-nos como podia ser isso.

Afirma-se que um dos poderes que pode ter um xamã é deixar-se ver como quer que o vejam.

Foi somente anos depois que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Castaneda.

Carlos se interessava muito pela tradição indígena do México. Eu o conheci por esse motivo. A primeira vez que me encontrei com ele foi em 1974, em um estúdio de dança na colônia Del Valle compartilhado por uma bailarina de dança moderna e um capitão de dança conchera tradicional chamado Andrés Segura.

Andrés tinha uma mesa de tradição chamada Santo Niño de Atocha. Um dia me convidou para uma sessão de cantos, e ficamos tocando a concha e cantando louvores, como é habitual nas cerimônias dos dançarinos. Nisso chegou Carlos Castaneda, que se integrou à atividade e ficou escutando muito atento os louvores. Depois conversamos com ele e ele fez muitas perguntas sobre aspectos da tradição, e finalmente nos convidou para comer no restaurante chinês da Zona Rosa.

Em determinado momento, contei a Carlos que havia conhecido Dom Juan um par de anos antes, graças à mestra Magdalena. Ao escutar isso, seus cabelos se eriçaram, olhou-me com um interesse extremo e me disse: “Olhe, posso lhe fazer uma visita em sua casa?”

Eu, que estava enfeitiçada por seu livro que acabava de sair em espanhol, respondi: “Encantadíssima!”

Ao observar meu entusiasmo, ele acrescentou: “Pois, se você quiser, vou esta noite mesmo!”

Eu lhe perguntei: “Você se importa se eu convidar três amigos que estão muito interessados nos assuntos da tradição?”

Ele concordou com a ideia, de modo que liguei rapidamente para meus amigos e os avisei. À esposa de um deles eu disse: “Fulana, em troca do convite, faça as tortas, porque acredito que vamos ficar até tarde e pode nos dar fome. Eu faço os refrescos.”

Assim fizemos.

Carlos chegou cerca de 9 horas da noite e foi-se às 2 da madrugada. Ficou fascinado com as tortas e comeu o quanto pôde.

Na noite seguinte voltou, não sei se para conversar ou pelas saborosíssimas tortas. Durante três dias seguidos veio cada noite e nos falou de coisas incríveis. Quando teve que regressar a Los Angeles, combinamos de nos ver de novo quando ele retornasse.

Assim começou nossa relação. Ele vinha ao México, dava suas conferências, e ao terminar, à hora que fosse, ia para minha casa. Ele era um grande conversador, suas histórias eram infinitas, de durar a noite toda. Às 2 ou 3 da manhã comíamos um pão com iogurte, mudava o tema por um instante e conversávamos sobre coisas triviais. Logo voltávamos ao assunto. Quando o dia clareava, ele olhava seu relógio e exclamava: “Oh! Já me vou!”

Às vezes me avisava de Los Angeles: “Soledad, vou ao México e busco você para nos vermos à tal hora.”

Entre nós se desenvolveu uma relação sumamente fraternal, inclusive, me fez uma dedicatória em um de seus livros – creio que “O Presente da Águia”: “À única irmã que o poder me deu.”

Contou-me seus antecedentes, disse que era brasileiro. Por alguma razão que não quis contar, seus pais não o criaram, seu avô o recolheu sendo ainda muito criança e o levou para a Argentina. Dali foi para Los Angeles.

Contou-me anedotas do avô, de como, quando tinha 12 anos, ele o incitou a conhecer mulheres, dizendo-lhe que já estava na idade, embora fosse ainda um garoto.

Um dia, ao voltar de uma aventura com uma mulher, se queixou: “Ai, vovô, aquilo das mulheres cheira muito mal!”

O avô gritou: “Idiota, esse é o odor da vida!”

Confessou que primeiro as mulheres lhe davam nojo, mas depois se tornou o mais mulherengo. Contou-me uma enorme quantidade de aventuras que havia tido com mulheres. Um dia começou até a me galantear. Eu lhe disse: “Cuidado, Carlos, que entre nós isso seria um incesto!”

É que nos tratávamos como irmãos. Na verdade eu o amava muito, com um amor fraternal.

Um dos nossos locais de encontro eram os caríssimos restaurantes aos quais me convidava. Ele gostava de comer muito bem. Pedíamos não sabe quantas coisas, e comíamos tudo! Depois, nos entretínhamos tentando adivinhar que mensagem nos diziam os objetos que estavam sobre a mesa.

Algo que tenho que destacar é que jamais, em nenhuma das tantas conversas que tivemos, ele adotou uma atitude de superioridade. Não se sentia nada excepcional, apesar de sê-lo. Nunca se fez de sábio, de audaz. Ao contrário, sempre exclamava: “Rechórcholis! Mas... em que é que eu fui me meter?”

Contava-me como, no início de seu aprendizado, fazia papel ridículo constantemente, devido à sua importância pessoal, e de como Dom Juan lhe baixava a crista. Uma das histórias que sempre repetia com prazer, morrendo de rir de sua própria estupidez, é aquela de quando se atreveu a comparar-se com Dom Juan:

“Tive a audácia de lhe dizer que éramos iguais, mas no fundo eu me sentia superior. Imagina: um chaparro (baixinho e rechonchudo) horroroso pretendendo que não era igual a Dom Juan porque tinha um título acadêmico! Como me ocorreu dizer-lhe isso? Ele me respondeu: ‘Não, não somos iguais em nada, eu sou um homem de conhecimento e você é um idiota.’ Não sabe a vergonha que senti!”

Como recurso para controlar sua importância, Carlos zombava de si mesmo, de sua estatura e aparência. Ríamos durante horas com ele, observando as maneiras cômicas como fazia sua própria caricatura.

Outra coisa que se notava nele é que sentia uma enorme responsabilidade por ser o transmissor de todo um sistema de ideias, estava preocupadíssimo com isso.

O que mais me causa impacto no ensinamento de Carlos não é sua descrição do Universo, porque cada um tem a sua, segundo suas próprias faculdades de percepção. O que eu considero de grande efeito social e religioso é o tema dos temores, de como o homem se impõe limites a partir do medo do fracasso, da morte, da solidão ou da pobreza. Estes são nossos verdadeiros inimigos, limpar a vida dos medos é um avanço extraordinário.

Carlos constantemente me falava de suas dificuldades, do enorme desafio que significava para ele aceitar plenamente o sistema de pensamento que lhe propôs Dom Juan. Uma vez me disse que os medos sociais, sobretudo o de não ser reconhecido e querido pelos outros, são algo de verdadeiramente demolidor, porque nos impedem de nos reconhecermos como infinito: “Quando você deixa de ter esses medos, pode lançar-se no abismo, se for necessário, porque já nada lhe importa.”

Por essa época, ele acabara de passar por uma experiência na qual foi empurrado por seu mestre para um abismo. Falava muito desse tema, de perder o medo e lançar-se ao infinito, notava-se que tinha ficado realmente muito abalado.

Contou-me que ele só se lembrava do momento em que o empurraram, mas não do que se passou depois. De repente, se vê em seu apartamento em Los Angeles, começa a olhar para todos os lados e pensa: “Sei que cheguei, mas... como cheguei?”

Repara que tem um papel no bolso da camisa, pega-o, e é o bilhete não utilizado do avião! Na época em que me contou essa história assegurou-me que não se lembrava de nada do que tinha acontecido com ele durante a viagem entre Oaxaca e Los Angeles.

Outra das coisas que me impressionavam nele era seu sentimento de orfandade. Em suas conversas pessoais deixava sair muito esse assunto, me contava que sofria muitíssimo por não ter mais Dom Juan vivo. Na realidade, ele nunca pôde superar sua partida, me disse isso até o final.

Sou testemunha de sua fascinação pela tradição pré-hispânica. Tínhamos vários pontos de afinidade, mas o principal é que eu era conchera. Ele sabia que eu tinha fontes sobre o conhecimento antigo diferentes das dos antropólogos. Creio que encontrava inspiração em minha atividade como dançarina, ou talvez buscasse corroboração na tradição sobre o conhecimento que lhe transmitiu Dom Juan.

Com frequência me perguntava o que era que sabiam os concheros sobre a tradição tolteca. Eu lhe dizia o que me haviam contado: que os toltecas foram os civilizadores originais, e que não foram uma raça, e sim um grupo de sábios que chegaram a certas descobertas sobre o homem, seu destino e a natureza da percepção.

Carlos me interrogava, extraía os detalhes da tradição como com lupa, não me perguntava qualquer coisa, só os detalhes finos. Uma vez me perguntou como é que os dançarinos de agora sabemos sobre os toltecas. Respondi que toda essa informação foi recebida através da tradição oral.

Certo dia chegou em minha casa e me contou uma história verdadeiramente fantástica: que ia até a Guatemala com outros companheiros, e que fariam a viagem a pé e não levariam dinheiro.

Fiquei um pouco preocupada, e perguntei-lhe se estavam devidamente equipados para a expedição. Respondeu-me que não necessitavam levar nada com eles, porque a Terra os abrigaria e lhes daria de comer.

Quando regressou da aventura, contou-me que estiveram três meses caminhando até a Guatemala e que tudo correu bem, foi muito emocionante. Efetivamente, a Terra se encarregou deles.

Não sei por que foram, mas acredito que buscassem um contato com a cultura maia, porque a relação entre as tradições do norte do México e os maias é muito profunda. Não me estranha que ele e seus companheiros tenham ido fazer uma oferenda à Terra no mundo maia.

Carlos não se relacionava com a mestra Magdalena diretamente, mas através de Dom Juan e dos velhos. Eu tive a oportunidade de estar onze anos perto dela. Contou-me que os bruxos têm suas hierarquias, que uns estão a cargo de outros, e cada xamã tem seu protetor. Geralmente, esses protetores não pertencem a esta realidade, mas sempre há um benfeitor vivo.

Ela tinha a ver com muitos xamãs que às vezes lhe pediam dinheiro para ajudar aos pobres.

Algo interessante é que tanto Dom Juan como a mestra declaravam que eles eram católicos convictos. Dom Juan era desses que vão à igreja todo domingo.

Carlos me contou que uma vez Dom Juan o levou à igreja e ele ficou esperando no átrio, porque tinha certo preconceito contra a religião. Quando se reuniram novamente, ele lhe perguntou:

“Ouça, Dom Juan, você se confessou?”

“Sim”, ele respondeu, “eu me confesso, comungo e tudo o mais.”

A mestra me explicou um dia essa relação com a igreja. Disse: “Como pessoa social, sou católica, mas como bruxa sou livre, não tenho religião.”

Disse-me que a religião tem uma grande energia, então não há porque rechaçá-la. Quando um bruxo se ajusta aos costumes de seu meio – sempre que esses costumes não sejam contrários à economia de energia – então não se desgasta lutando contra a corrente, não tem remorsos, é tão livre que até pode ir e comungar.

Também me explicou que os bruxos veem Deus como energia, não como um ser antropomórfico que nos vigia dia e noite para ver quando é que a gente vai dar uma mancada. A energia não é castigo. Isso de “Deus me castiga” é uma falsa ideia do Criador.

Na tradição do México se diz que Ometeotl se esparramou a si mesmo e gerou a dualidade, ou seja, o princípio masculino e feminino da criação, e daí veio o Homem. 



Os antigos sabiam da divindade o que sabemos hoje. Temos o conceito de Moyocoyani, “aquele que inventa a si mesmo”; quer uma melhor definição de Deus? Isso é saber como está organizado o Universo!

A mestra me levava à missa frequentemente e me dizia:

“Eu cumpro com a mais alta missão da igreja, que é fazer caridade. Não cobro por curar, portanto, ganhei o direito de comungar sem me confessar.”

Um dia em que eu estava caminhando por Mérida, vi uma igreja que tinha a porta aberta e entrei para ver o que havia. Nesse momento ia saindo um sacerdote. Estávamos sós, não havia ninguém na nave. O sacerdote se aproximou e me perguntou: “Você quer se confessar?”

Respondi: “Francamente, padre, quer que eu diga a verdade? Sou curandeira, não acredito no pecado.”

O padre ficou me olhando um pouco e disse: “Está bem, filha, não é necessário que se confesse.”

No caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.

Deve começar com a premissa de que está doente e de que é possível curar-se, primeiro de todos os males corporais e depois dos males mentais.

Tem que começar limpando as tripas de tantas porcarias e isso se faz através do uso de sete plantas mágicas com as quais se preparam chás, lavagens intestinais e vomitivos.

Depois vem os temascales, onde se purifica o corpo através de sudoração e banhos de ervas e flores.

Junto com uma gama de exercícios físicos estão as massagens e os alongamentos, que servem para manter o corpo ágil e em boa forma.

A mestra deve ter visto que Carlos precisava de ajuda porque uma vez me disse:

Diga a Carlos que ele deveria aprender a curar. É que a cura é uma porta para o mundo oculto. E no caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.”

Fui até Carlos e lhe transmiti seu recado. Acrescentei: “Acho que seria muito bom que você se encontrasse com ela para que ela o instrua em sua forma de curar.”

Mas notei que lhe dava medo essa possibilidade, porque tinha obsessão pelo assunto de que as pessoas chupam a nossa energia, e na cura há uma grande transferência de energia do curador para o paciente. Ele estava sempre se precavendo quanto a isso, não gostava de reuniões com muita gente e fugia das fotos, dizia que o sugavam.

Eu lhe respondia: “Sim, é verdade que nos chupam, mas nos renovamos descansando e comendo, não é preciso ter medo disso.”

Apesar da minha insistência, ele não quis ir com a mestra, acho que sentiu medo.

Um dia veio ao México e me disse: “Vou à península escandinava” – não me recordo por qual motivo. “O que querem as bruxas de presente?” Referia-se à mestra e a mim.

Respondi: “Não sei, o que você quiser.”

Ao regressar, trouxe-nos de presente uns perfumes maravilhosos, de uma qualidade verdadeiramente insólita, e umas toalhas. Eu levei à mestra Magdalena a parte que lhe cabia. Ela pegou seus presentes e me disse: “Diga a ele que eu lhe agradeço pelo perfume, mas as toalhas vou preparar para ele.”

Quem sabe o que fez com as toalhas, mas um dia as deu para mim e pediu que as entregasse a Carlos. Mas ele não quis pegá-las de volta, notei em seus olhos que tinha medo. Ainda as tenho aqui.

A velha Florinda e a mestra Magdalena não se davam bem. O motivo era que a mestra queria que Carlos se tornasse curandeiro, e Florinda se aborreceu por isso.

Em minha opinião, ela sentiu ciúme de que a outra se metesse com seu discípulo. Carlos me contava que se sentia sufocado pela forma dominante e dura com que Florinda controlava tudo.

Como fui eu que levei a mensagem da mestra, Florinda também se aborreceu comigo, não me queria para nada. Carlos me disse que ela o havia repreendido muito e me culpou de querer mudá-lo de caminho.

Uma noite sonhei com a velha Florinda e ela me tratou duramente, brigou comigo, recriminando-me por eu ser aprendiz de Magdalena.

Eu lhe respondi: “Olhe, senhora, eu não quero mudar Carlos em nenhum sentido, só dei o recado, nem sequer me atrevo a propor nada. Que culpa tenho eu? Quem tem essas ideias é a mestra Magdalena, então, qualquer assunto, fale com ela.”

No dia seguinte vou ter com a mestra e lhe pergunto: “Ouça, Florinda falou ontem com a senhora? Porque ela veio para cima de mim e eu a mandei falar com a senhora!”

Ela me tranquilizou: “Não se preocupe, essa velha não vai voltar a falar com você. Eu a pus em seu lugar!”

E assim foi, nunca mais me perturbou. Mas Carlos me ligou para dizer que Florinda havia exigido que ele não falasse mais comigo, de modo que durante um tempo teríamos que permanecer separados. Isso me doeu muito.

Anos mais tarde, Florinda, a jovem, veio ao México para dar uma palestra em um salão, lá por Las Lomas. Uma amiga minha soube e me avisou. Quando terminou, Florinda me disse: “Venha cumprimentar Carlos, que está na casa de Grinberg!”

Respondi: “Olhe, Florinda, há algo muito obscuro entre mim e ele”, e contei a história de minha desavença com a velha Florinda.

Mas ela me assegurou: “Por sorte, Soledad, esse problema já passou. Florinda se foi e acabou a bronca. Venha comigo, eu levo você até Carlos.”

Respondi: “Louvado seja Deus! Que bom!”

Assim o fizemos. Eu ia com um pouco de medo, mas quando chegamos à casa de Jacobo, Carlos me deu o abraço mais longo que já recebi em toda a minha vida. Foram uns dez minutos. Ele colocou seu rosto bem junto ao meu e disse aos presentes:

“Vejam minha irmãzinha, não é verdade que somos iguaizinhos?”

A última vez que o vi foi na palestra que deu na Casa Tibet. Cheguei um pouco tarde, ele já havia começado. Sentei-me no fundo da sala para não chamar atenção, mas escutava e via bem.

Quando terminou, o vi sair de braço dado com Carol Tiggs, caminhando com passinhos muito curtos, como um débil ancião. Ela o amparava, porque ele já não podia andar sozinho. Causou-me muito impacto seu estado, porque eu o havia conhecido como um jovem em todo o seu esplendor.

Abracei-o com muito entusiasmo, e senti que se desfazia em meus braços. Perguntei-me como era possível que em tão pouco tempo Carlos houvesse passado de sua plenitude a um nível energético tão baixo.

Como se lesse minha mente, ele respondeu:

“Sabe, tenho um problema muito sério: tenho um pé aqui e outro sabe lá onde. Soledad, fui muito longe e não pude reunir minhas partes. Por isso estou tão mal.”

Explicou-me que sua enfermidade era na realidade um problema energético, pois em um de seus ensonhos se atolou por aí e não pôde juntar de novo sua totalidade. Em tom amargurado, queixou-se:

“Imagine! Eu, que sempre fui tão independente, agora necessito que me ajudem, tem até que me dar banho!”

E acrescentou: “Se conseguir reunir minhas partes novamente, regressarei ao México e ligo para você. Senão, Soledad, nos veremos no além. Lembre-se que eu e você temos um encontro no outro mundo.”

Era verdade, alguns anos antes nós havíamos marcado um encontro em um mundo que não é humano. Selamos o pacto com um pequeno ritual que teve lugar na sala da minha casa.

Nunca mais veio ao México. Diz-se que morreu de câncer do fígado, mas creio que essa explicação foi para cumprir com as formalidades.

Minha conclusão sobre Carlos é que, mais do que contar fatos sobre sua vida privada, vale a pena ressaltar sua monumental importância para o México. Ele é o pesquisador que mais divulgou nossas tradições no mundo inteiro, seus livros foram traduzidos para todos os idiomas importantes e são estudados por suas gigantescas contribuições culturais e espirituais. O México tem uma imperecível dívida de gratidão para com ele.

Tradução: Adriana Northrup

quinta-feira, 20 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Martha Venegas

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com Martha Venegas

_ Como você chegou ao nawalismo?

_ O que me levou às investigações místicas e filosóficas é entender o que estamos fazendo aqui, porque estamos no mundo. Quando era muito jovem, eu queria estudar psicologia, porque pensava que essa matéria continha respostas para minhas inquietudes; mas, por alguma razão, terminei estudando Ciências da Comunicação.

Conheci o nawal através de um amigo comum, Fausto Rosales, editor da Editora Diana, que Carlos chamava afetuosamente de “meu sobrinho”. Fausto é um tipo tremendo: com ele as coisas devem ser claras, por isso o estimo tanto. Um dia me chamou e me disse: “Venha, vou lhe apresentar Carlos Castaneda!”

Eu havia ouvido falar dele como um escritor interessante, mas não como nawal. Fui sem nenhuma expectativa ao University Club, onde Carlos estava participando de um coquetel com diversos intelectuais. Desse primeiro encontro não tenho uma impressão clara. Não me lembro exatamente o que falou, só me lembro que estava presente uma das bruxas, Florinda Donner.

A segunda reunião a que assisti foi diferente. Então já havia começado a ler sua obra, e descobri que ali se encontravam respostas para as minhas inquietudes. Desse modo, me dei a tarefa de anotar tudo o que dizia. Nesta ocasião, explicou como se movia o ponto de encaixe, quer dizer, o centro onde se focaliza a percepção. Disse que todos estamos conectados com os filamentos do ser cósmico que chegam até nós, e que podemos nos mover de um grupo de filamentos a outro, se aprendemos a deslocar o ponto de encaixe. Esse deslocamento pode ocorrer, seja dentro da faixa que é acessível ao homem, ou além dela.

Explicou:

“Se se move para a direita, você se torna um nazista!” – começou a marchar pelo palco como um militar, em ângulos retos. Com isso queria dizer que o movimento da percepção à direita, à área do Tonal, solidifica nossa interpretação do mundo, enchendo-nos de convicções e fazendo-nos crer em “verdades” definidas; em conseqüência, terminamos nos comportando como verdadeiros fanáticos. “Mas se seu movimento é para a esquerda, então você se torna místico!” – ajoelhou-se no chão e começou a rezar, como se estivesse possuído de êxtase religioso.

Fiquei assombrada com sua explicação. Sempre havia acreditado que os santos e os místicos eram produto de uma vida de treinamento, de ver Deus e perceber a unidade da criação, agora compreendia que se tratava de uma escolha deliberada. Percebi que nada é verdade ou mentira; o ponto de encaixe determina o que você é, e, se aprende a movê-lo, aprende a fluir entre diversas realidades.

Estamos adaptados a interpretar que existem causas externas que nos levam a determinadas atitudes, mas não é verdade, basta um simples movimento da atenção para entrar em outro canal e captar uma gama completamente nova de percepções. É como se nos conectássemos a uma antena. Você tem aí em seu aparelho de televisão 160 ou 600 canais, e tudo depende de que conheça suas opções para que as troque. Agora vou ver Deus, e me sintonizo com o molde do homem. Mas se me dá vontade, posso ir a outra visão, outra posição do ponto de encaixe.

Os seres humanos passamos a vida inteira aferrados a um canal, digamos, ao canal das estrelas, devorando espetáculos que não nos acrescentam nada. Por que não mudar? Por que não nos darmos um descanso, mostrar-nos outras possibilidades? Você pode escolher quem quer ser.

_ Como era o caráter de Carlos?

_ A princípio, o que mais me impressionou nele foi seu histrionismo. Recordo que fiquei pensando: “Que senhor tão simpático! Se não fosse nawal, teria sido um excelente comediante.” É que o cara era genial no palco. Para fazer didático o ensinamento desempenhava papéis, fazia várias vozes e atitudes, fazendo-nos rir o tempo todo com suas brincadeiras e imitações dos outros. Envolvia-nos com personagens, situações, quase que a gente podia viver as histórias dos bruxos através do que falava. Não lhe importava deixar de lado a postura de mestre e tornar-se qualquer outra coisa.

Outra coisa que me impressionou é que ele não se escondia atrás de uma máscara de guru nem se dava importância alguma. Qualquer um podia abordá-lo e falar de qualquer coisa, que ele sempre respondia, com um sorriso nos lábios. A princípio, dava ampla margem às pessoas, tomava seu tempo para responder tudo o que quisessem perguntar. Era como se percebesse sinais do Espírito nas perguntas, agarrava um tema e fluía por ali.

Como não correspondia ao protótipo do mestre importante e inacessível, as pessoas ficavam desconcertadas com ele. Em certa ocasião, organizei uma conferência na Casa de Cultura de Coyoacán, a umas cinco quadras da minha casa. Avisei a um amigo meu, dono de uma livraria: “Fulano, venha, porque Carlos Castaneda vai dar uma conferência em tal lugar.”

O homem não acreditou, zombou de mim e disse: “Isso não pode ser! Castaneda jamais daria uma conferência pública!”

Pensou que o nawal era um desses guerreiros míticos que não se põem ao alcance das pessoas.

A princípio, era muito picaresco. Constantemente estava desafiando a moral convencional, falava de sexo e de plantas, e era muito aberto em sua linguagem. É que ainda estávamos nos anos 70, um momento desafiador da sociedade.

Depois, sua linguagem se fez mais formal. Foi como se lhe houvessem dito: não fale de certas coisas! Então adotou outra estratégia, passou do expansivo ao concreto, seu tom se tornou mais equilibrado e começou a desestimular o uso de plantas.

Teve que mudar, pois se havia formado um equívoco em torno dele. Muita gente o buscava, não por conhecimento, mas pelo mito do herói. O que queriam era um modelo de vida, alguém que lhes dissesse o que fazer em cada momento. A maioria dos que acudiam a suas conferências não lhe fazia caso quando falava sobre ser impecável, em compensação, tomavam ao pé da letra sobre o peyote. Chegou um momento em que Carlos se sentiu responsável.

_ Como foi que você se tornou a organizadora dos eventos no México?

_ Velasco Piña disse que sou a mulher-ponte, pois estou sempre conectando pessoas. Essa era minha função nos grupos naguais, avisar a todos: “Aí vem Carlos!” Assim nos reuníamos.

Começou pouco depois de tê-lo conhecido. Um dia chegou Fausto e me disse: “Carlos vai vir e preciso que você me ajude a conseguir dois lugares para dar suas conferências. É que estou muito ocupado e não tenho tempo, agradeceria muito se você o fizesse.”

Me senti muito orgulhosa com seu encargo, pois pensei que o estava ajudando deveras. Mas agora, quando penso nisso, acho que ele estava me pondo à prova para ver se eu atendia aos requisitos.

Fui correndo falar com minha amiga Maru, que tinha uma casa lá por Pedregal, com um auditório com uma tela grande. Ela não sabia bem quem era Castaneda, pois o nawalismo não era sua linha, mas ficou encantada de nos emprestar o lugar. Reuniram-se entre 100 e 150 pessoas.

Nessa oportunidade, Carlos deu uma conferência esplêndida. Falou da importância pessoal. Disse que, para um guerreiro, perder a importância era como bater no cachorro do índio.

Através de suas gesticulações, pudemos compreender o sentido desta metáfora: o índio está no extremo da escala social; pois bem, o cachorro do índio está ainda mais abaixo, e uma vez que você bate nele, ele já não pode se degradar mais! Assim é quando você perde a importância, como Jó quando perdeu tudo: está no chão, não é ninguém; nada pode lhe ofender, porque já passou por tudo; não há dor nem aborrecimento, só o que você pode fazer é dar-se conta ou morrer.

Falou também das cogidas aburridas. Afirmou que o pai e a mãe nos deixam impressos para toda a vida. Disse que ele era produto de uma cogida aburrida, mas eu não acredito, porque derramava uma energia inexplicável.

Deu como exemplo de uma vida perdida a de seu avô, um tipo peculiar, folclórico. Notei que gostava muito dele, parece que foi importante em sua vida. Em certo momento se emocionou e exclamou: “Não quero morrer como ele, babando no colchão!”

Depois dessa conferência, foi para o jardim e conversou longamente com algumas pessoas.

O medo terrível que eu sentia quando tinha que organizar uma conferência era que ele me deixasse plantada depois de ter reunido as pessoas. É que muitas vezes ele dizia que ia mas não chegava.

Algo assim aconteceu uma vez na Universidade Nacional Autônoma, em um centro dirigido por sacerdotes dominicanos. Haviam-se reunido umas 300 ou 400 pessoas; estavam todos os grupos de praticantes do México. Os minutos começaram a passar e as pessoas foram se desesperando. Então chegou correndo um amigo, todo afobado, e nos disse que o nawal acabava de ligar para avisar que não ia vir. Depois subiu à tribuna e anunciou: “Carlos Castaneda pede desculpas a vocês, mas teve uma diarreia e não vai poder dar a conferência.”

As pessoas ficaram frustradas e, para entretê-las um pouco, alguém subiu ao púlpito e começou a falar sobre a obra do nawal. Mas as pessoas não se interessaram muito e começaram a ir embora.

Eu não sabia o que pensar, mas disse para mim mesma: “Não vou até ver o que Carlos vai fazer.” É que já era escolada no assunto e conhecia o truque.

Quando restavam menos da metade das pessoas, aparece Castaneda todo sorridente, pede desculpas e explica que o problema era que havia muita gente reunida, e, como ele não gostava de usar microfone, teve que esperar que alguns se fossem para que sua voz pudesse ser escutada por todos. Acrescentou que, para sentir-se à vontade, precisava de uma audiência íntima.

Essa explicação não me convenceu: era óbvio que o nawal estava manobrando para escolher os que verdadeiramente deveriam escutá-lo. O que deteve os que ficaram, uma vez que fomos advertidos que o evento estava suspenso? Creio que foi o Espírito.

Nessa conferência, talvez porque o auditório estivesse formado principalmente por estudantes, colocou muita ênfase na responsabilidade que temos que ter para encarar a segunda atenção, sobretudo quando através de plantas. Desaconselhou expressamente seu uso, aduzindo que Dom Juan só lhe deu porque ele era muito fixo em suas rotinas.

Pouco depois se deu meu afastamento de Carlos, foi algo físico, não espiritual, e se deveu a um mal-entendido, ou pelo menos foi o que achei. Em uma ocasião correu a notícia de que o nawal tinha vindo ao México e ia dar uma conferência. Manuel Zurita, que era chamado de “o Proibido”, ligou para perguntar se eu sabia de algo. Respondi que não, que quando averiguasse lhe diria.

Por esses dias, minha filha Sandra estava trabalhando no gabinete de um conhecido jornalista, em umas pesquisas sobre fenômenos paranormais. Sem nenhuma razão aparente, eu fui visitá-la justo no momento em que Fausto ligou para avisá-la que Carlos ia falar na Editora Diana. Eu não tinha por que ter ido lá, foi uma casualidade que interpretei como um augúrio, de modo que peguei o telefone e perguntei a Fausto: “Que acha de eu convidar algumas pessoas amigas, como Toni Karam, Mariví de Teresa e Manuel Zurita?”

Respondeu-me com voz alarmada: “Convide quem você quiser, menos Manuel. Por nada deste mundo diga-lhe onde será!”

Como eu tinha ficado de avisar Manuel, liguei de volta e disse-lhe, com toda a sinceridade:

“Olha, não posso lhe convidar, porque vai ser um evento privado e o nawal não quer você lá. De modo que, por favor, não fale sobre essa ligação. Nem posso dizer onde vai ser, porque prometi a Fausto.”

Mas Manuel tinha seus contatos e se apresentou na conferência. Evidentemente, todos acharam que havia sido eu. Dizem que caí em desgraça por isso.

Um dia soube que ia ter uma reunião com Carlos na Casa Tibet. Falei com Miguel, o ajudante de Mariví, para ver porque não me haviam avisado, e ele me disse que eram rumores, que o nawal não ia vir; mas, pelo tom de sua voz, percebi perfeitamente que estava mentindo. O que mais me doeu não foi que me evitassem, mas sim que se tratou de uma conferência aberta, para a qual convidaram até pessoas desconhecidas.

Ainda estou sentida com Fausto porque, por sua causa, Carlos me relacionou com Zurita. Quando falo com ele pelo telefone, digo: “Por sua culpa nunca mais entrei nos grupos!” Mas sei que, na realidade, não é assim.

_ O que você quer dizer?

_ É difícil julgar as razões do nawal. Ele era desapiedado quando tinha que nos dar uma lição, e não gostava que misturássemos seu ensinamento. Em uma conferência, me aproximei para cumprimentá-lo. Ele me abraçou com muito afeto e me disse: “O que aconteceu com você?”

Não entendi racionalmente sua pergunta, mas não me atrevi a perguntar-lhe o que estava vendo. Baixei a cabeça e respondi: “Não sei”.

De algum modo, soube que havia visto uma mudança na minha energia. Quando me fez a pergunta, me vieram à memória certos exercícios que eu estava fazendo com o grupo de Jaime Ribas. Jaime era um instrutor de alquimia; por exigência dele, mudei drasticamente minha dieta e deixei de fumar, o que me fez engordar. Mais tarde, Mariví afirmou que Carlos se aborreceu com isso. Disse-me que a chamou à parte e falou: “Não convide mais Martha para as minhas conferências, porque está muito gorda. Nem Miguel também, porque está muito magro.”

Você pode perceber que esses não são argumentos válidos, e sim pretextos. Neste momento, acredito que o motivo real pelo qual me separou dos grupos é outro, e me custou anos entender.

Carlos cortou vários dos que estávamos mais próximos dele de uma vez. No caso de Manuel, era uma questão de energia. Ele é um homem muito vital, nota-se que teve contato com o Poder. Comigo sempre foi encantador, mas em outros provoca medo, porque seu comportamento é muito desconcertante: seus olhos redondos, como bolas de gude, têm algo de inquietante, como se escondessem algo. Também é um observador muito crítico. Sempre me advertia: “O nagual quer com você!”

Disse-me que, naquela famosa reunião, quando Carlos me abraçou, ele havia visto como puxava minha energia. Entendo porque o nagual não queria vê-lo.

Mas, no meu caso, como no de outros companheiros, o motivo da separação foi nos dar uma lição. Dei-me conta disso um dia, conversando com Fausto sobre um evento relacionado com os huicholes. Conversamos muito e confessei que estava muito afetada pela separação.

Ele fez algumas observações, e de repente ficou óbvio para mim que tudo havia sido parte de um jogo, uma nawalada de Carlos, para que nenhum de nós se achasse mais do que o outro. Nós que andávamos com ele sentíamos que havia um vínculo, que éramos importantes na estratégia. Particularmente os homens não eram nada sóbrios, todos estavam loucos por ele, queriam igualar-se a ele, ser seus continuadores.

De repente, o nagual rompeu o laço, fez-nos ver da maneira mais crua que não éramos ninguém, e que o melhor que podíamos fazer era destruir nossa importância pessoal.

_ Como você reagiu à separação?

_ Me doeu muito. Eu estava acostumada aos eventos abertos, que qualquer um podia assistir. Minha visão do nawal era muito livre, nos primeiros tempos Carlos aparecia e ia embora sem compromisso, não havia possibilidade de dizer “quero ser sua aluna”.

De repente se formaram uns grupinhos herméticos, fechados com cadeado. O ensinamento se fez sistemático, e os participantes adquiriram um status social que os diferenciava do resto. Não se podia chegar até eles da rua, praticavam os passes mágicos.

O que mais me doeu foi perder os exercícios. Constantemente me recriminava, dizendo a mim mesma: justo agora, quando Carlos nos traz os exercícios, eu fico de fora! É que até então tudo havia sido conversa e um ou outro exercício isolado, mas agora estavam sendo feitas práticas formais. Tive que me resignar, fui praticar na casa de Mariví, em um grupo secundário.

Depois que caí em desgraça, a organização dos eventos ficou por conta de Mariví. Eu que a tinha apresentado a Carlos.

Foi muito engraçado, porque, apesar de ela ser prima de Carlos Ortiz e já estar há tempos investigando as coisas do Espírito, não sabia nada dos ensinamentos do nawal. Sua aproximação teve a maior transcendência no desenrolar dos acontecimentos. Carlos lhe delegou sua confiança de imediato; encarregou-a de difundir os passes mágicos, sobretudo os passes iniciais, que eram muito fortes.

Os primeiros grupos se reuniam na Quinta Colorada, onde iam praticar os membros do grupo de dança tradicional Citlalmina. Carlos tinha algo a ver com eles, pois lhes dava aulas de Tensegridade.

Devido às minhas boas relações com Mariví, voltei a encontrar-me com ele em 94. Ela havia aberto um café na Casa Amatlán. Eu a apoiei, planejamos as conversas de café, às quais foram convidados muito interessantes, como um ex-sacerdote de Guadalajara e o pessoal de Carlos de León. Foi algo muito animado.

Um dia soube que Carlos estaria ali, de modo que fui. Nessa ocasião, falou de certas práticas para mover a energia. Recordo que utilizou um balde de água para exemplificar o conceito de fluidez. Ao terminar, me cumprimentou afetuosamente, mesmo eu estando proscrita. Entendi que a separação não havia sido nada pessoal.

Meu último encontro foi na reunião do hotel Fiesta Palace. Naquela ocasião, reuniram-se umas 500 pessoas. Enquanto esperávamos que aparecesse o nawal, fui testemunha de algo que não me agradou. Toni Karam subiu ao palco e se dirigiu à multidão, gritando: Intento! Intento! Todos faziam coro com ele. Tive a impressão que isso era fanatismo, pois, pelo que entendi dos ensinamentos, o Intento é algo pessoal.

_ A que se deve a mudança de atitude de Castaneda?

_ Como lhe disse, a princípio era muito aberto. À medida que seus auditórios cresceram, suas respostas se fizeram mais breves e abstratas, e passaram do anedótico ao conceitual. Isso é compreensível, pois, quando você tem sessenta mãos levantadas, fazendo perguntas ao mesmo tempo, não pode conceder a cada um a mesma atenção. Nos últimos tempos, eram as bruxas que respondiam por ele.

Essa mudança se notou em outro assunto, por exemplo, nas estratégias de difusão. Durante muitos anos Carlos recusou o contato com o público. Os que o conheciam nos sentíamos como parte de um movimento underground. De repente ele se abriu à propaganda e começou a falar em grandes foros, cobrando a entrada. Seu nome apareceu por todos os lados. Para o evento do Sheraton, chegou a colocar um enorme outdoor na via pública, cedido por Michael Domit. Também redesenhou os passes mágicos, tornando-os mais leves e suaves, até que terminaram se transformando na Tensegridade.

_ Por que essa mudança de estratégia?

_ Não sei. O que posso dizer é que foi algo muito deliberado.

Naquela época ocorreram coisas estranhas. Por exemplo, justo no momento em que começava a Tensy, Carlos convidou vários companheiros para que se reunissem com ele em Los Angeles. Entre eles estavam Toni, Jacobo, Michael, Carlos e Mariví, entre outros. Ficaram no hotel Claremont, perto da casa do nawal.

Nessa noite, Mariví teve uma revelação. Estava dormindo e sentiu que havia uma presença na casa. Abre os olhos e vê ao pé da cama Carlos e Carol Tiggs, a mulher nagual! Afirma que a tomaram pela mão e a levaram para outro lugar, onde lhe mostraram tantas coisas que regressou completamente alterada.

Eles nunca quiseram falar desse assunto, mas sei que receberam uma informação muito especial; o nawal os iniciou ou algo assim, porque, quando voltaram, Mariví me disse, com a voz trêmula de emoção: “Vivemos algo tão forte, que nos tornamos irmãos! Agora somos uma fraternidade.”

Também me falou sobre um pacto secreto, algo assim como tornar-se cúmplices do conhecimento. Creio que Carlos moveu seu ponto de encaixe coletivamente. Em pouco tempo, cortou-os a todos, com um pretexto qualquer. No caso de Mariví, porque a havia visto fumando em uma reunião. O lugar dela foi ocupado por Marcela Gálvez.

Marcela era uma pessoa muito complicada, sempre com problemas familiares. Pensando que praticar um pouco de Tensy lhe faria bem, liguei para ela e lhe disse para ir ao grupo de Mariví que ela ia gostar.

Ela foi e então a chamaram para as aulas. No início era muito ciumenta e tinha raiva de Mariví por causa do nawal, mas logo começou a escalar degraus e finalmente foi admitida para ter aulas no grupo interno de Carlos, lá em Los Angeles.

Subiu muito rápido. Um dia, fui ao teatro Amália Hernández, onde iam se apresentar o nawal e as chacmoles, e vejo Marcela decidindo quem entrava e quem não, e revistando os convidados para que não passassem gravadores. Sua autoridade se consolidou no evento do hotel Sheraton, onde também desempenhou o papel de chefe de segurança. Esse foi um evento muito grande, chegaram mais de mil pessoas, o que requeria muita organização. Pode-se dizer que ali nasceu Cleargreen, a instituição encarregada de divulgar a Tensegridade.

_ Quando foi a última vez que viu Castaneda?

_ Com a mudança das estratégias de difusão, também mudou meu status. Apesar de não estar mais encarregada dos eventos, fui convidada para apoiar em alguns aspectos, como difusão e contatos de imprensa.

Ainda pude vê-lo no seminário organizado por Michael Domit no Sheraton. Esse foi um desafio muito interessante, porque, depois que Toni Karam levou 500 pessoas ao hotel Fiesta Palace, nós nos propomos levar mil. Além do mais, a maioria desses pertencia às novas gerações, que não sabiam quem era Carlos Castaneda. Michael ofereceu a infra-estrutura e Grisel Vasquez foi a organizadora. Por instruções diretas de Carlos, eles me pediram que os apoiasse com os meios de informação. Foi uma reivindicação para mim.

A última vez que o vi foi no dia 12 de fevereiro de 1996, no evento “Os novos caminhos da Tensegridade”, organizado no Centro Asturino por Guillermo Díaz, dono de uma fábrica de calçados. Sua esposa Lídia foi a porta-voz oficial, junto com Perla e Marcela.

Carlos estava radiante, deu uma conferência preciosa, na qual esclareceu os novos conceitos do ensinamento, respondeu a muitas perguntas e nos disse muitas coisas referentes à continuação do trabalho. Qualificou sua mudança de estratégia como uma evolução natural à qual os praticantes deviam adaptar-se, sem ceder à tendência humana de taxonomizar, quer dizer, atender a minúcias pessoais que não têm nada a ver com o Espírito. É que alguns de seus seguidores estavam investigando detalhes privados de sua vida, como se isso fosse importante.

Disse que quem se dedica a especular sem fazer acaba abandonando a busca, e que, para que as práticas nawais sejam efetivas, o interesse dos participantes deve ser abstrato. Que o centro motor da nossa busca deve ser em todo momento a consciência de uma necessidade de mudança, e não a curiosidade mórbida.

Para mim, esse evento foi muito importante, porque, como encarregada da difusão, me coube organizar uma entrevista coletiva – a única desse tipo que deu em toda a sua carreira. Um detalhe comovedor foi que o dinheiro arrecadado, mais de 150 mil pesos, foi doado a uma instituição de assistência à infância mexicana. Eu estive presente no dia da entrega do donativo.

Depois desse dia, nunca mais o vi.

_ Como recebeu o anúncio do falecimento de Carlos Castaneda?

_ Não acreditei. Não acredito que o nawal tenha morrido.

Tradução: Adriana Northrup

quarta-feira, 19 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Jacobo Grinberg

As Testemunhas do Nawal

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Texto de Jacobo Grinberg

Havíamos tido a oportunidade de participar de conferências que Carlos Castaneda dava em diferentes lugares da Cidade do México (incluindo nossa casa) e se havia estabelecido uma relação estreita e pessoal com ele. Dias depois de nosso matrimônio Terita falou com ele por telefone em Los Angeles e externou seu desejo de ir visitá-lo comigo; o nagual aceitou, incluindo em sua lista Carlos Hidalgo, com quem se comunicou no dia seguinte.

A partir dessa conversa ficou decidido que iríamos um total de seis pessoas do México.

Como presente, levei para ele uma coleção de meus livros, que recebeu com zombeteira alegria dizendo que eu escrevia livros a quilo. Aquela era sua forma usual de reagir cada vez que alguém, em seu grupo, manifestava sinais de ego. Obviamente, eu estava orgulhoso de meus livros, identificava-me com eles e sua enorme quantidade era para mim um sinal de meu valor.

Ao nawal havia custado suor e lágrimas se desprender de sua história pessoal e de seu ego para agora reforçar o de outro. Ao entregar-lhe meus livros, eu supunha implicitamente que ele se interessaria pelo seu conteúdo e até apoiaria sua publicação. Terita, igualmente ingênua, porém mais corajosa, disse a ele que meus livros diziam a mesma coisa que os dele, só que utilizando uma linguagem científica. Depois percebemos que tudo aquilo era sinal de imaturidade e que o nawal reagira a isso com desprezo. De fato, muitas vezes nos disse que nossa amizade não lhe importava nada, e que jamais fôssemos pensar que nossa relação se baseava em afeto e carinho. O mundo cotidiano, repleto de estruturas, convencionalismos e hipocrisias era, para o nawal, desprezível e não merecia maior atenção. Realmente, a maioria das pessoas vivia ali, dentro de seus cárceres psicológicos e seus convencionalismos e sua importância pessoal, mas não ele nem ninguém de seu grupo íntimo. Repetia constantemente:

“O mundo cotidiano é manejável com o dedo mindinho; a energia deve ser utilizada para alcançar a liberdade.”

O mundo cotidiano incluía todos os desejos de fama, dinheiro, posição e todas as relações de estrutura. Todo desejo mundano baseado na vida de necessidades devia sua existência ao acordo e à convenção e devia ser rechaçado totalmente. Tanto Terita quanto eu acreditávamos estar fora de estruturas e pertencer a um estrato de buscadores da liberdade. Entretanto, as palavras do nawal nos deprimiam e muitas vezes chegamos a perceber o mundo e a nós mesmos nele como algo sombrio e triste, frio e sem esperança. O nawal parecia incentivar tal visão como preparação para chegar a um estado magnífico de vitalidade e otimismo no qual ele parecia viver incansavelmente o tempo todo. A verdade é que demorávamos meses para nos recuperar do terrível impacto que nos causava cada uma de suas visitas e, por fim, o temor de vê-lo era maior que o desejo de encontrá-lo. Suas palavras confirmavam nosso estado:

“Um contato com o nawal é um evento terrível do qual custa muito recuperar-se. A força da personalidade do nawal é maiúscula e indefinível.”

Fomos apresentados às pessoas do grupo do nawal e passamos com eles uma semana cheia de aprendizagens, provas e aventuras que relatarei mais tarde. Ao nos despedirmos, o nawal disse que seu grupo desejava receber cartas nossas. Eu levei isso muito a sério e, já no México, me dediquei a escrever cinco volumosas missivas que entreguei a um amigo comum que visitaria o nawal em Los Angeles no dia seguinte.

Passaram-se várias semanas sem que tivéssemos notícias do nawal e seu grupo, até que uma tarde Carlos Ortiz falou por telefone com Terita anunciando-lhe que, no dia seguinte, o nawal viria ao México, mas sem dizer a hora e o voo em que o faria.

Ficamos entusiasmados com a perspectiva de vê-lo novamente e esperamos o dia todo a notificação do seu número de voo, mas esta nunca chegou. À noite, Terita e eu decidimos sair em sua busca pela Cidade do México sem ter idéia de onde encontrá-lo. Fomos a um hotel e depois de perguntar, em vão, por seu quarto, de repente soubemos que se encontrava no Zócalo.

Fomos até lá e, numa ruazinha a uma quadra do mesmo, topamos com ele e todo um grupo de pessoas que o acompanhava.

Aquela era uma verdadeira façanha de poder que Terita e eu havíamos conseguido fazer: encontrar o nawal na gigantesca Cidade do México em um local preciso e a uma determinada hora sem indicações externas. Eu, de pura satisfação, plantei-me em frente ao nagual e dei um enorme grito de saudação, diante do que ele brincou dizendo que, depois de tudo o que havia visto, já não distinguia o que pertencia a este ou a outros mundos e que minha súbita presença acompanhada do poderoso grito o haviam surpreendido. Ao nos abraçarmos, disse-me que encontrá-lo dessa maneira havia sido um ato de poder.

Alegres e festejando o encontro, fomos até o Café Tacuba e nos sentamos a uma mesa. O nawal conversou sobre suas experiências e eu lhe perguntei se havia recebido minhas cartas. Olhou-me com um gesto de malícia e disse:

“Suas cartas se perderam; nunca as recebemos.”

Minha reação ao ouvir isso foi de fúria contra o amigo comum a quem encomendei entregá-las e assim o externei, enquanto ele me perfurava com seu olhar. Quando chegamos em casa disse a Terita que a perda das cartas era tão dolorosa que teria de reproduzi-las de memória e assim o fiz durante boa parte da noite. No dia seguinte, Terita tinha um encontro com o nagual e por isso ela era a indicada para entregar-lhe as cartas. Depois soube que, no ato de entrega e ao saber que eu havia reproduzido as cartas, o nawal se escangalhara de rir, zombando de mim por minha obsessiva compulsão para escrever e por meu enorme ego. Meses mais tarde, meu amigo me disse que as cartas originais tinham sido entregues tal como havíamos combinado e que, em uma sessão memorável, foram lidas para deboche e zombaria de todos.

Não consegui escrever uma linha por seis meses depois desses acontecimentos e levei outros seis para entender e elaborar seu significado.

O dia em que chegamos a Los Angeles coincidiu com dois acontecimentos: o final da Guerra do Golfo Pérsico e o término de uma estiagem mortal que havia submetido a Califórnia a um inferno de calor e seca. Parados na recepção do aeroporto nos esperavam o nawal e as integrantes de seu grupo mais próximo.

Cumprimentaram-nos com um carinho claro e direto e depois nos convidaram para almoçar em um restaurante italiano. Éramos cerca de doze pessoas e todos nos sentamos juntos em uma mesa grande.

Comentamos sobre o fim da guerra e da seca e o nawal os considerou sinais auspiciosos de nossa chegada.

Depois nos levaram a um hotel modesto e velho no qual nos surpreendeu a familiaridade do encarregado, que nos recebeu como se fôssemos velhos amigos e conhecidos.

Depois de acomodar nossos pertences nos quartos, o nagual convidou os homens do grupo a acompanhá-lo e juntos fomos pegar sua filha Nuri, uma garota magra, extraordinariamente sensitiva e vestida como homem, que me surpreendeu pela forma como entendeu a teoria sintérgica. Ela havia me perguntado qual era minha ocupação e eu contei sobre meu trabalho na Universidade e a pesquisa acerca das hipóteses da Teoria Sintérgica. Sua compreensão foi direta e total como se minha explicação houvesse assentado perfeitamente dentro de sua mente.

Depois o nawal nos levou para ver os jardins da Universidade da Califórnia, a casa em que vivia quando iniciou sua aprendizagem e um enorme centro comercial no qual, tomando-me pelo braço, disse-me que se interessava muito pela cabala e que seus antepassados haviam sido judeus. Eu disse a ele que a cabala para mim era um ensinamento precioso. Por fim, o tema da conversa derivou para os xamãs do México em geral e os graniceros em particular, com sua capacidade de fazer chover e seu interesse em detectar sinais e augúrios a partir de eventos da natureza. Mencionei que Dom Lucio era um expert em “ler” o vulcão Popocatépetl. Percebi que o tema lhe interessava profundamente e em dado momento esteve a ponto de me perguntar algo a respeito, mas por alguma razão não o fez.

Ao regressar ao hotel encontrei uma Terita furiosa, reclamando de por que motivo as mulheres haviam sido excluídas do encontro. Expliquei que a decisão não tinha sido minha e, quando se acalmou, fomos dormir.

A noite foi cheia de presenças estranhas dentro do nosso quarto e (depois viemos a saber) também no de nossos companheiros. Era como se olhos e ouvidos sutis estivessem nos observando, incluindo o conteúdo de nossos sonhos. Soubemos que era o nagual e sua gente que assim nos vigiavam.

No dia seguinte, voltamos a nos separar em um grupo de homens e de mulheres, e nós acompanhamos o nawal. Fomos comer e no resto da semana engordei vários quilos de tanto fazê-lo.

O nawal dizia que o desgaste energético que fazíamos era tão grande que devíamos compensá-lo comendo muito.

À tarde assistimos a uma cena na qual Florinda Donner, uma das pessoas mais próximas ao nawal, reclamou sobre a separação que este fazia entre gêneros. O nawal explicou que éramos muitos e sua forma de interagir com as mulheres era muito diferente de com os homens, mas que a partir daquele momento já não nos separaria. Disse-nos que no passado ele concebia a mulher como inferior, mas que isso já não existia em sua mente:

“A mulher é um ser com conhecimento direto, à diferença do homem, tão apegado à linguagem”, disse-nos com convicção e depois continuou: “A mulher é um ser de ação e possui um órgão extra, a vagina, que lhe permite façanhas de percepção que o homem nem imagina”.

Convidaram-nos para a casa de Margarita, uma amiga do nawal, que parecia pertencer a seu grupo íntimo, mas de forma diferente da do resto das mulheres. Margarita era terrena e cuidava do nawal com uma ternura e delicadeza mundanas. Sua casa de tipo clássico californiano parecia um lugar fora do tempo ou retido no passado. Sentamos ao redor de uma mesa redonda, enorme, e depois de uma refeição também enorme passamos a uma sala e o nawal se sentou em uma poltrona de encosto alto com Carol, a mulher nagual, a seu lado.

Terita e eu dissemos que acabávamos de nos casar em Totolapan e, quando escutaram o nome do lugar, nos disseram, assombrados, que eles também haviam se casado ali cumprindo uma ordem de Dom Juan.

“Fizemos isso”, afirmou o nawal com segurança, “como uma estratégia perante este mundo.”

Para o nawal e seu grupo, existiam dois mundos claramente separados, o deles e o do resto. Ou se pertencia a seu mundo ou ao outro. Seu mundo era fechado e não admitia visitantes; nós, o grupo do México, éramos uma exceção, as portas de seu mundo se haviam aberto para que penetrássemos nele. Este evento era algo totalmente novo e só o Espírito decidiria se ficaríamos dentro ou se as portas voltariam a se fechar deixando-nos fora.

“O pássaro da liberdade”, disse o nagual com extrema seriedade, “está voando sobre suas cabeças. Depende de vocês se o deixam passar ou se vão com ele. Se o deixam passar, jamais aparecerá de novo e terão perdido uma oportunidade que nunca se repetirá.”

A explicação de nosso estado privilegiado era que existia uma dívida para com o México e nós, mexicanos, havíamos sido depositários do pagamento.

O nawal e sua mulher haviam tido uma filha e esta era a garota magra que havíamos conhecido no primeiro dia.

O grupo mais próximo ao nagual estava formado integralmente por mulheres. Algumas que eu conheci eram Carol, a mulher nawal, Nuri, sua filha, Florinda Donner e Ana. Todas tinham em comum algo que as diferenciava do resto das mulheres que eu havia conhecido antes, excetuando algumas mulheres de Tepoztlán, um anseio pela liberdade e uma força livre de sentimentos mundanos. Ana era a mais notória por essas qualidades. Florinda era forte e direta e a que mais se parecia com o nawal. Carol parecia ser de outro mundo, distante e etéreo.

Nuri era inteligente e certeira como uma lâmina de aço, no entanto havia algo nela que ainda não estava definido, algo por amadurecer. Todas eram magras e masculinizadas.

Durante essa semana o nawal também nos apresentou aos membros do seu grupo periférico, estudantes, homens e mulheres que assistiam a suas aulas de Tensegridade, exercícios físicos que o nawal mesmo desenvolvia e transmitia em um salão enorme perto do centro de Los Angeles. O grupo periférico se distinguia do íntimo por não haver alunos diretos de Dom Juan e não possuir as características que descrevi antes para o grupo íntimo.

Eram pessoas de diferentes idades e nacionalidades com o objetivo comum de querer conhecer mais sobre os ensinamentos dos bruxos.

O nawal conhecia muita gente e gostava de nos contar anedotas sobre os notáveis que lhe haviam sido apresentados: presidentes, ministros, atores e atrizes e grandes mestres espirituais. De todos se expressava de forma similar, debochada e cruel.

Dizia-nos que não tinham energia suficiente, que eram uns idiotas com um ego exagerado e no fim sempre recordava Dom Juan como o único ser verdadeiramente livre que havia conhecido.

Várias afirmações do nagual me pareceram incongruentes; dizia que o fato de nos apresentar ao seu grupo íntimo serviria para nos convencer de que seu estilo de vida e seus livros eram reais.

Posto que eu nunca havia duvidado disso, a afirmação me pareceu estranha. Também falava de outros membros do grupo que nos apresentaria a seu devido tempo, em particular uma mulher que somente apareceria se conseguíssemos dar o “salto” para a liberdade total:

“Aparecerá”, dizia em tom misterioso, “no momento preciso.”

Fazia referência contínua ao fato excepcional de estarmos juntos e a seu significado. Dizia-nos que em parte as portas se haviam aberto para nós como uma homenagem ao México e um pagamento por tudo o que Dom Juan, um mexicano, havia feito por ele. Depois se queixava da ausência de Dom Juan:”Velho fdp que se foi e me deixou sozinho.”

Dizia-o com tristeza, e sentimento similar expressava sobre Florinda, a velha, que havia desaparecido na frente de todos em uma tarde memorável. Florinda Donner tentara impedir e o nawal, ao detê-la com um braço, recebeu um impacto energético tão atroz que tiveram que interná-lo em um hospital para salvá-lo de uma peritonite fulminante. Florinda, a velha, havia sido sua mestra e guia depois do desaparecimento de Dom Juan e, quando ela também se foi, no mesmo dia do terremoto da Cidade do México de 1985, o grupo caiu em uma desesperança sem fundo. Decidiram então alugar um jatinho em Costa Rica e lançá-lo de bico sobre um vulcão, com o objetivo de desaparecer deste mundo, coisa que obviamente não fizeram.

De Florinda, a velha, o nawal contava anedotas incríveis.

Dizia que era expert em mudar a posição do ponto de encaixe para posições inverossímeis, tais como a de uma mosca. Ao fazê-lo, transformava-se nesse inseto, o que lhe agradava, já que as moscas vivem eternamente dedicadas a fazer amor sentindo orgasmos sem fim.

“Mas existe um preço gigantesco para essas mudanças”, dizia-nos com seriedade, “e é que já não se regressa igual como se foi.”

Florinda, a velha, o havia obrigado, como um antídoto para sua súbita notoriedade, a servir como cozinheiro em um restaurante de beira de estrada. Durante um ano, o nawal se dedicou a fazer hambúrgueres, acompanhado de uma mulher que era leitora fanática dos livros que ele havia escrito. Essa mulher desejava conhecer Carlos Castaneda sem saber que o tinha a seu lado. Em uma ocasião, um grande Cadillac estacionou na frente do restaurante tendo dentro um homem que escrevia algo em um caderno de notas. A mulher estava certa que se tratava de seu ídolo, e disse isso ao cozinheiro, que a acompanhou morrendo de rir por dentro.

Em outra ocasião, um amigo o convidou para uma reunião secreta em que Carlos Castaneda daria autógrafos. Ao fundo de um corredor, em um pequeno quarto, o impostor havia autografado um de seus livros.

Também nos contou sobre um congresso de antropologia no qual sua obra foi duramente criticada. No centro do auditório havia um senhor com uma máscara indígena que o cobria. Todos supuseram que se tratava de Castaneda e, ao criticá-lo, apontavam-no com o dedo em um gesto acusatório. Na realidade não se tratava do nawal.

A semana foi repleta dessas histórias que o nagual contava sem parar durante horas inteiras. Todas elas tinham como tema central os costumes estúpidos do mundo. Falou de seu aprendizado ao lado de seu mestre e de uma série de eventos fantásticos relacionados com ele mesmo, com Carol e com Nuri.

Já que ele publicou essas histórias em seu último livro, “A Arte do Sonhar”, não as repetirei aqui. O nawal tinha dúvidas sobre publicá-lo, mas Florinda Donner o convenceu a fazê-lo. A razão da dúvida eram os eventos extraordinários relatados no livro e se seriam compreendidos. O que eu realmente gostaria de relatar é o que concerne ao grupo de indígenas que Dom Juan legou a ele e Las Gordas.

Uma manhã, Florinda nos ligou para informar que o nawal precisara viajar em busca dos índios de seu grupo, os quais estavam incomodados e com ciúmes da nossa presença. Quando o nagual voltou dessa viagem, disse-nos que Nuri havia sido seqüestrada e que ele tivera que viajar centenas de quilômetros para resgatá-la. Os índios haviam percebido nossa presença e todos os ensinamentos que recebemos e desejavam vingar-se. Nuri foi resgatada depois de uma luta feroz, mas os índios haviam cortado seu cabelo como advertência. Quando a vimos na casa de Margarita seu cabelo estava muito curto e com um penteado diferente do da véspera. Advertiram-nos para ter cuidado na rua, porque nos vigiavam e a qualquer momento poderíamos sofrer uma agressão. O nawal se referia aos índios de seu grupo como um bando de imbecis que não haviam aprendido nada e só constituíam um peso morto que ele tinha que sustentar.

“Comparado com vocês”, nos dizia, “são uns imbecis que não entendem nada e dos quais devo me afastar.”

Aquelas afirmações nos faziam sentir muito bem e fortaleciam nosso ego. Somente Carlos Hidalgo percebia que era uma estratégia utilizada pelo nawal. A verdade é que depois de reforçar nossa importância pessoal nos atacava, fazendo-nos sentir uns imbecis. Esses vaivéns entre reforçar nosso ego e depois despedaçá-lo se repetiram durante toda a semana.

Também nos falou de Las Gordas: duas mulheres do grupo íntimo que se haviam oposto à liderança do nagual. Este havia tido que empregar toda a sua energia para submetê-las, mas em lugar de consegui-lo havia desencadeado nelas uma crise de loucura cujo desenlace havia sido a morte. A história era macabra e me produziu uma sensação muito desagradável.

Uma tarde, fomos convidados à casa de um dos membros do grupo periférico. O nagual não foi mas nos acompanharam as mulheres de seu grupo íntimo. A casa estava localizada nos subúrbios e sua fachada estava adornada com uma enorme bandeira norte-americana que ondulava ao vento. Em Los Angeles abundavam essas manifestações de nacionalismo motivadas pela Guerra do Golfo Pérsico. Vê-la na casa de um dos chegados ao nawal produziu-me uma sensação de confusão. O dono da casa, um homem fornido com trejeitos femininos, recebeu-nos com grandes mostras de afeto e se vangloriou de suas coleções de moedas, relíquias tibetanas e a comida que havia preparado em nossa honra. Senti-me como no México quando uma de minhas tias fazia uma de suas comidas burguesas e, não suportando, saí à rua e me sentei em um banco, esperando que essa reunião absurda terminasse. Pela manhã, o nawal indagou sobre nossas impressões da véspera e eu lhe disse que havia sido insuportável, mas que o resto do grupo não estava de acordo comigo. Deu-me razão, felicitando-me por minha percepção.

Pouco a pouco, ia compreendendo que tudo o que acontecia com o nawal estava premeditado e era resultado de um padrão, o qual estava idealizado para nos pôr à prova. O nagual observava nossas reações, notando o aparecimento de nossos egos, estruturas aprendidas e bloqueios. Além do mais era um expert na medição de nossos níveis energéticos e aberrações.

Continuamente nos falava da necessidade de deixar para trás o ego e nos instruía em técnicas para apagar nossa história pessoal. A principal delas era a recapitulação, que consiste em reintegrar eventos e imagens do passado, recuperando todas as cargas energéticas associadas a eles até alcançar uma observação equânime dos mesmos.

Também opinava que o Universo era um lugar em que imperava a violência e a depredação de uns seres sobre outros. Eu me opunha a essa visão defendendo o mundo como um lugar regido pelo amor. O nagual zombava de mim dizendo que o importante era a energia pessoal e o poder. Afirmava que o sexo era a melhor forma de perder energia e que devia ser evitado a qualquer preço.

Alguém do grupo protestou, afirmando que ele e sua namorada alcançavam níveis esplêndidos de consciência durante suas relações sexuais. O nawal pensou um momento e disse que nesse caso não havia objeção. Mas não o disse porque acreditasse e sim para seguir a corrente. Por essa ocasião e depois de ouvi-lo vários dias, comecei a distinguir quando o nawal falava a sério e quando ficava do nosso lado como que dizendo que era inútil tentar nos modificar. O expert nessas detecções era, contudo, Carlos Hidalgo. Quando à noite nos reuníamos para comentar os acontecimentos do dia, ele nos instruía sobre as táticas e estratégias do nawal. Dizia-nos que quase nunca falava a sério e que seus atos, na maioria, eram simples subterfúgios para ativar nossas defesas egóicas e nossos apegos.

Nesse sentido, sua principal tática era nos convidar para ficar com ele e seu grupo, abandonando tudo: trabalho, bens, casa e família. Contava-nos o caso de uma senhora que havia jurado fazer tudo o que ele mandasse sob a condição de permanecer em seu grupo. O nagual lhe pediu que cortasse o cabelo, sabendo que era seu bem mais apreciado. A senhora, histérica, rogou que ele pedisse qualquer outra coisa menos isso. Depois dessas histórias ficava nos olhando e eu sentia que éramos como essa senhora: desejosos de ser livres, mas apegados a nossos cárceres e sem poder deixá-los.

Por fim chegou o dia do retorno ao México. O nawal nos levou ao aeroporto dizendo-nos que não sabia se nos voltaria a ver, posto que, tal como Dom Juan, ele e seu grupo teriam que desaparecer no outro mundo e o momento de fazê-lo já estava muito próximo.

Necessitava de uma massa crítica para consegui-lo e desejava nossa energia. Havia convidado Terita para ficar com Florinda e, para mim, disse que precisava de meu cérebro para ajudá-lo a compreender eventos inexplicáveis. Antes de descer do carro, no aeroporto, disse-me que não me fosse, mas não lhe fiz caso e, com um sentimento de perda, pegamos o avião que nos levaria de volta à Cidade do México.

Poucos dias depois, chegou o aviso de que o nawal vinha ao México, quando ocorreu a façanha relatada antes, de encontrá-lo perto do Zócalo capitalino.

No Café Tacuba combinamos de nos ver no dia seguinte para realizar uma excursão às grutas de Cacahuamilpa, nas quais o nawal nos daria uma iniciação ao Xamanismo.

Todos saíram de manhã bem cedo para as grutas, menos eu, que me dirigi a Tepoztlán porque desejava pegar minha filha para que conhecesse o nawal. Não a encontrei e, quando cheguei a Cacahuamilpa, encontrei todo o grupo sentado ao redor de uma mesa depois de comer, preparando-se para entrar nas grutas. Pedi uma refeição ligeira e isso fez com que a entrada se atrasasse por uma hora. O nawal, diante do atraso forçado, manifestou uma conduta estranha; passeava de um lado para o outro impaciente e nervoso e, em certo momento, totalmente desesperado por ter que esperar. Aproximei-me dele e lhe disse que me parecia que sua forma de agir estava determinada pela cultura norte-americana na qual vivia e na qual tudo era previsível.

“Aqui no México”, me atrevi a dizer-lhe, “as coisas nem sempre saem como se planeja.”

Olhou-me assombrado e me respondeu que essa não era a razão de seu estado, e sim o fato de que os augúrios não correspondiam. Nesse momento uma senhora índia vendendo artesanato se aproximou e o nawal praticamente gritou para que ela nos deixasse em paz.

Por fim, pudemos entrar na gruta e o nawal anunciou que devíamos nos separar do resto das pessoas, dos turistas e visitantes casuais que nos rodeavam.

“Nossa missão aqui é transcendente”, disse com solenidade, “eu lhes mostrarei a estátua do guerreiro da mesma forma que Dom Juan fez comigo.”

Começamos a caminhar e meu corpo a protestar pelo ambiente sufocante e o ar rarefeito que não me bastava para respirar.

Além do mais, minha mente começou a se queixar; me dizia que aquilo era uma cerimônia pagã da qual não devia participar. Sentia que me asfixiava, que o nawal era um farsante por sua impaciência e que estava me obrigando a adorar uma pedra, traindo com isso todo o meu judaísmo. Por fim, não suportando mais, regressei à saída e fui para casa. Esperei metade da noite pela volta do grupo, que havia decidido que nos reuniríamos ali e, enquanto o fazia, observei uma andorinha que se acercava de um ninho ocupado por outras andorinhas, que a rechaçavam uma e outra vez até que esta se afastava. Era exatamente assim que me sentia; havia me separado do grupo e agora desejava unir-me a ele mas era rechaçado. O grupo não apareceu em toda a noite, confirmando meu sentimento de ser como a andorinha rechaçada, e fui dormir.

No dia seguinte fui buscar o nawal em seu hotel e o encontrei tomando café da manhã em companhia de vários do seu grupo. Olhou-me com uma indiferença e um desprezo óbvios que me fizeram sentir terrivelmente mal. Pedi desculpas por haver saído das grutas contando a anedota das andorinhas, mas sentindo-me um perfeito estranho. Nesse momento, tentei me lembrar de quando havia aceitado Carlos Castaneda como nawal, mas não pude.

Também disse que meu atraso havia sido motivado pelo desejo de apresentar o nawal à minha filha. O nagual me olhou com um reflexo estranho em seus olhos e riu às gargalhadas:

“Quer me apresentar à sua filha!”, exclamou entre risadas.

Isso me abalou por completo. Para mim, o desejo de apresentá-lo à minha filha estava motivado pela idéia inocente de apoiar seu crescimento ao conhecer uma pessoa como o nawal. Seu deboche e sua expressão escondiam, por outro lado, algo totalmente alheio à inocência. Nesse momento, algo se rompeu dentro de mim e comecei a ver o nawal com outros olhos.

Entretanto, não fui embora dali. Havíamos sido convidados para ir a Tula e no meio da agitação da saída me esqueci do meu mal-estar.

Como sempre, o nawal começou a falar e não parou um segundo em todo o trajeto. Ao entrar no carro havia me proibido de pôr música. Disse-nos que ele já não possuía um “eu”, que tudo o que restava nele eram histórias de nawais que saíam de sua boca como por si mesmas. Contou-nos que Dom Juan o havia obrigado a separar-se de todos os seus amigos e que durante meses permaneceu encerrado em um quarto de hotel sem ver ninguém e ficando maluco, até que algo se reacomodou em seu interior e deixou de precisar de companhia. Quando chegamos a Tula, nos levou à praça central e à igreja na qual havia tido um encontro com o Desafiante da Morte.

“Achei que tinha sido em Oaxaca”, disse alguém do grupo.

“Foi aqui”, respondeu o nagual, “e aqui também desapareci durante nove dias no outro mundo.”

Entramos na igreja na qual o nagual havia se encontrado com o Desafiante e me pareceu o lugar mais triste do mundo. Depois demos voltas pela praça e o nagual nos apontou o banco favorito de Dom Juan e recordou ter visto dali a morte de uma pessoa.

“Com Dom Juan todo acontecimento era um ensinamento”, disse com seriedade. “Antes de conhecê-lo, ver a morte de alguém era um evento cotidiano, mas com Dom Juan vi a morte se aproximando e todo o evento adquiriu um matiz mágico e fantástico.”

Depois nos disse que o Desafiante da Morte se havia fundido com a mulher nagual e que Carol continha ambos em um. Todos nos voltamos para olhar Carol e ela assentiu com a cabeça.

“Com esta mulher”, disse o nawal, “viajei para onde ninguém pode viajar.”

Olhamos de novo para Carol e ela tornou a assentir com a cabeça.

Durante o tempo em que o nawal esteve no México, além de Tula fomos a Teotihuacan. Recordo que, ao chegar e ver a pirâmide do Sol, senti um calafrio e uma pressão no ventre. Comentei minhas sensações, interpretando-as como associadas a uma detecção da energia do lugar. O nawal se virou para mim e disse, rindo:

“Bobagem, é um peido que está preso aí.”

Caminhamos pela estrada dos mortos e o nawal debochou de tal nome. Disse-nos que os espanhóis haviam encontrado restos humanos ali e por isso lhe deram esse nome, mas que na verdade o que ocorria ali era fantástico.

Centenas de espreitadores se colocavam em cada lado da avenida e juntos visualizavam a pirâmide da Lua. Quando o faziam à perfeição e em total sincronia, desapareciam deste mundo. Se alguém falhava, ficava então mutilado e seus restos espalhados pelo chão.

Depois de dizer isso, o nagual se colocou em uma esquina e olhou para a pirâmide como se tentasse reproduzir o sentimento daqueles homens capazes de viajar juntos para outros mundos.

Não voltei a ver o nawal e às vezes me pergunto se a Ave da Liberdade passou em cima de mim e eu a deixei passar, ou se tudo o que vivi foi uma peça a mais do enredo da minha vida, peça necessária e valiosa exatamente tal como a vivi. Em algumas ocasiões me recrimino por não ter deixado tudo e me entregado totalmente ao nawal e a seu caminho. Sobretudo quando me sinto preso a meu trabalho ou a este mundo penso que perdi a oportunidade da minha vida e que algo que desejei durante anos se tornou realidade, mas não fui capaz de agarrá-lo. Mas depois me lembro da risada de zombaria do nawal quando lhe mencionei meu desejo de que conhecesse minha filha, minha Estusha amada, e algo me diz que tudo o que aconteceu foi o que devia ter acontecido, nem mais nem menos.

O nawal nos pediu para não divulgar as experiências ocorridas durante nossos encontros. Durante três anos assim o fiz, mas agora sinto que tudo fazia parte de uma estratégia na qual o importante era o impacto sobre nossas consciências e a capacidade de transformá-las. Eu estou muito agradecido ao nawal por tudo o que me mostrou de mim mesmo, minhas dependências e apegos, meu ego e minha obstinação, mas não posso aceitar guardar segredos.

Como uma mostra de seu ensinamento e do valor que deu à liberdade como o maior bem e meta a se conseguir, tomei a liberdade de descrever algumas coisas que me recordo daqueles dias extraordinários nos quais fui testemunha direta das manifestações de uma das personalidades mais valiosas de nosso tempo.

Oxalá isso sirva a quem o leia.

Uma última palavra: o nagual deixou de se comunicar com a maioria de nós, à exceção de uma das mulheres do nosso grupo. Falava-lhe dia e noite, instigando-a a abandonar tudo e unir-se ao seu grupo. O problema é que esse abandono implicava deixar sem proteção um de seus filhos, que dependia emocional e materialmente de sua mãe. Submeteu-a a tal pressão que, em uma ocasião, ela teve que pedir-lhe para não mais entrar em contato. Quando nos contou o que estava acontecendo e a terrível pressão à qual o nawal a submeteu, surpreendi-me profundamente e continuo sem entender o evento.

O nawal nos advertiu, várias vezes, que sua estratégia não era a mesma de Dom Juan e que nunca chegássemos a pensar em vínculos de carinho ou dependência emocional com respeito à sua pessoa. Isso foi difícil de digerir e aceitar, mas afinal de contas se mostrou verdadeiro. O nawal desapareceu e nunca mais o vimos. Não foi um mestre com continuidade e espírito de permanência e proteção para com seus discípulos. Isso nos ensinou a não depender de figuras de poder em nosso caminho e certamente se constituiu em um impulso para a independência e a liberdade. Agradeço-lhe por esse gesto, difícil mas necessário.


Nota do editor: agradecemos a Carlos Ortiz de la Huerta, que amavelmente nos facilitou este artigo, que tinha em seu poder há muitos anos.


Tradução: Adriana Northrup

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A questão da sombra - 4ª parte

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