Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda
Entrevista com a xamã, curandeira, mestra e atriz de cinema Soledad Ruiz. Conta-nos como conheceu Dom Juan Matus anos antes de conhecer Carlos Castaneda, de quem foi amiga íntima desde os anos 70.
A princípio se mostrou reticente, porém, quando ouviu que era um trabalho para preservar a memória de Carlos, concordou, mas fez um estranho comentário: “As histórias não importam, o que importa é o Espírito”.
Seu testemunho começa quando em certa ocasião ela foi, junto com outro discípulo, visitar sua mestra, Magdalena Ortega, que era uma bruxa espetacular, tinha grandes poderes e realizava verdadeiras façanhas, mas essa é outra história.
_ Naquele tempo eu já havia lido o primeiro livro de Carlos que acabava de sair em inglês e comentei a respeito com minha mestra e ela me contou que era comadre de Dom Juan Matus. A princípio não quis acreditar e ela, que era uma tremenda vidente, deve ter percebido, pois replicou: “Algum dia eu a apresentarei a ele.”
Em certa ocasião, fomos visitá-la eu e outro de seus alunos. Ela nos disse que Dom Juan estava para chegar com outras pessoas que, suponho, eram seus aprendizes. Enquanto os esperávamos, disse-nos:
“Vou lhes dar uma tarefa: que reconheçam dentre todos os que chegarem qual deles é Dom Juan. Depois escrevam justificando sua conclusão e voltem amanhã.”
Ordenou que não falássemos entre nós sobre nossas impressões até nos encontrarmos com ela no dia seguinte.
Os visitantes chegaram tarde e se justificaram dizendo que haviam se perdido. Do quarto ao lado escutamos como a mestra lhes dava uma amistosa repreensão. Quando entraram na sala, observamos que eram cinco ou seis pessoas de idade avançada, nos levantamos para sair e ela nos apresentou por nossos nomes: “Ela é Soledad, ele é Milosh”, mas não mencionou os nomes dos visitantes.
Assim que os vi, pensei: “Dom Juan deve ser o que está sentado na poltrona”. Nós os cumprimentamos com movimentos de cabeça e ficamos parados, enquanto eles comentavam o engraçado da situação, pois haviam caminhado longo tempo de um lado para outro sem encontrar a casa. Isso aconteceu porque a mestra vivia em Amsterdam, uma rua circular que em outros tempos tinha sido o Jockey Club da Cidade do México.
Nós os observamos durante um breve momento, depois nos despedimos e fomos embora. No dia seguinte regressamos à casa da mestra para comentar nossa dedução.
Eu descobri Dom Juan por uma só razão: o olhar. Seu olho esquerdo estava desviado, e afirma-se que essa é uma característica dos xamãs, mas é óbvio que o fato de não a ter não significa que a pessoa não seja xamã. É só uma convenção. Disse a mim mesma: que vou escrever? De modo que não levei a minha tarefa. Em compensação, Milosh preencheu três páginas completas com suas razões chegando à mesma conclusão que eu.
Ao escutar nossas deduções, a mestra me disse: “Sim, você atinou, esse era Dom Juan. Você também, Milosh.”
Depois nos perguntou como o vimos vestido. Eu lhe respondi: “Tinha um estilo camponês, com calças de gabardine, uma camisa comum e uma chamarrita.”
Nesse momento Milosh e eu nos demos conta de algo extraordinário: ele o havia visto de outro modo, com um terno elegante. Ficamos assombrados, perguntando-nos como podia ser isso.
Afirma-se que um dos poderes que pode ter um xamã é deixar-se ver como quer que o vejam.
Foi somente anos depois que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Castaneda.
Carlos se interessava muito pela tradição indígena do México. Eu o conheci por esse motivo. A primeira vez que me encontrei com ele foi em 1974, em um estúdio de dança na colônia Del Valle compartilhado por uma bailarina de dança moderna e um capitão de dança conchera tradicional chamado Andrés Segura.
Andrés tinha uma mesa de tradição chamada Santo Niño de Atocha. Um dia me convidou para uma sessão de cantos, e ficamos tocando a concha e cantando louvores, como é habitual nas cerimônias dos dançarinos. Nisso chegou Carlos Castaneda, que se integrou à atividade e ficou escutando muito atento os louvores. Depois conversamos com ele e ele fez muitas perguntas sobre aspectos da tradição, e finalmente nos convidou para comer no restaurante chinês da Zona Rosa.
Em determinado momento, contei a Carlos que havia conhecido Dom Juan um par de anos antes, graças à mestra Magdalena. Ao escutar isso, seus cabelos se eriçaram, olhou-me com um interesse extremo e me disse: “Olhe, posso lhe fazer uma visita em sua casa?”
Eu, que estava enfeitiçada por seu livro que acabava de sair em espanhol, respondi: “Encantadíssima!”
Ao observar meu entusiasmo, ele acrescentou: “Pois, se você quiser, vou esta noite mesmo!”
Eu lhe perguntei: “Você se importa se eu convidar três amigos que estão muito interessados nos assuntos da tradição?”
Ele concordou com a ideia, de modo que liguei rapidamente para meus amigos e os avisei. À esposa de um deles eu disse: “Fulana, em troca do convite, faça as tortas, porque acredito que vamos ficar até tarde e pode nos dar fome. Eu faço os refrescos.”
Assim fizemos.
Carlos chegou cerca de 9 horas da noite e foi-se às 2 da madrugada. Ficou fascinado com as tortas e comeu o quanto pôde.
Na noite seguinte voltou, não sei se para conversar ou pelas saborosíssimas tortas. Durante três dias seguidos veio cada noite e nos falou de coisas incríveis. Quando teve que regressar a Los Angeles, combinamos de nos ver de novo quando ele retornasse.
Assim começou nossa relação. Ele vinha ao México, dava suas conferências, e ao terminar, à hora que fosse, ia para minha casa. Ele era um grande conversador, suas histórias eram infinitas, de durar a noite toda. Às 2 ou 3 da manhã comíamos um pão com iogurte, mudava o tema por um instante e conversávamos sobre coisas triviais. Logo voltávamos ao assunto. Quando o dia clareava, ele olhava seu relógio e exclamava: “Oh! Já me vou!”
Às vezes me avisava de Los Angeles: “Soledad, vou ao México e busco você para nos vermos à tal hora.”
Entre nós se desenvolveu uma relação sumamente fraternal, inclusive, me fez uma dedicatória em um de seus livros – creio que “O Presente da Águia”: “À única irmã que o poder me deu.”
Contou-me seus antecedentes, disse que era brasileiro. Por alguma razão que não quis contar, seus pais não o criaram, seu avô o recolheu sendo ainda muito criança e o levou para a Argentina. Dali foi para Los Angeles.
Contou-me anedotas do avô, de como, quando tinha 12 anos, ele o incitou a conhecer mulheres, dizendo-lhe que já estava na idade, embora fosse ainda um garoto.
Um dia, ao voltar de uma aventura com uma mulher, se queixou: “Ai, vovô, aquilo das mulheres cheira muito mal!”
O avô gritou: “Idiota, esse é o odor da vida!”
Confessou que primeiro as mulheres lhe davam nojo, mas depois se tornou o mais mulherengo. Contou-me uma enorme quantidade de aventuras que havia tido com mulheres. Um dia começou até a me galantear. Eu lhe disse: “Cuidado, Carlos, que entre nós isso seria um incesto!”
É que nos tratávamos como irmãos. Na verdade eu o amava muito, com um amor fraternal.
Um dos nossos locais de encontro eram os caríssimos restaurantes aos quais me convidava. Ele gostava de comer muito bem. Pedíamos não sabe quantas coisas, e comíamos tudo! Depois, nos entretínhamos tentando adivinhar que mensagem nos diziam os objetos que estavam sobre a mesa.
Algo que tenho que destacar é que jamais, em nenhuma das tantas conversas que tivemos, ele adotou uma atitude de superioridade. Não se sentia nada excepcional, apesar de sê-lo. Nunca se fez de sábio, de audaz. Ao contrário, sempre exclamava: “Rechórcholis! Mas... em que é que eu fui me meter?”
Contava-me como, no início de seu aprendizado, fazia papel ridículo constantemente, devido à sua importância pessoal, e de como Dom Juan lhe baixava a crista. Uma das histórias que sempre repetia com prazer, morrendo de rir de sua própria estupidez, é aquela de quando se atreveu a comparar-se com Dom Juan:
“Tive a audácia de lhe dizer que éramos iguais, mas no fundo eu me sentia superior. Imagina: um chaparro (baixinho e rechonchudo) horroroso pretendendo que não era igual a Dom Juan porque tinha um título acadêmico! Como me ocorreu dizer-lhe isso? Ele me respondeu: ‘Não, não somos iguais em nada, eu sou um homem de conhecimento e você é um idiota.’ Não sabe a vergonha que senti!”
Como recurso para controlar sua importância, Carlos zombava de si mesmo, de sua estatura e aparência. Ríamos durante horas com ele, observando as maneiras cômicas como fazia sua própria caricatura.
Outra coisa que se notava nele é que sentia uma enorme responsabilidade por ser o transmissor de todo um sistema de ideias, estava preocupadíssimo com isso.
O que mais me causa impacto no ensinamento de Carlos não é sua descrição do Universo, porque cada um tem a sua, segundo suas próprias faculdades de percepção. O que eu considero de grande efeito social e religioso é o tema dos temores, de como o homem se impõe limites a partir do medo do fracasso, da morte, da solidão ou da pobreza. Estes são nossos verdadeiros inimigos, limpar a vida dos medos é um avanço extraordinário.
Carlos constantemente me falava de suas dificuldades, do enorme desafio que significava para ele aceitar plenamente o sistema de pensamento que lhe propôs Dom Juan. Uma vez me disse que os medos sociais, sobretudo o de não ser reconhecido e querido pelos outros, são algo de verdadeiramente demolidor, porque nos impedem de nos reconhecermos como infinito: “Quando você deixa de ter esses medos, pode lançar-se no abismo, se for necessário, porque já nada lhe importa.”
Por essa época, ele acabara de passar por uma experiência na qual foi empurrado por seu mestre para um abismo. Falava muito desse tema, de perder o medo e lançar-se ao infinito, notava-se que tinha ficado realmente muito abalado.
Contou-me que ele só se lembrava do momento em que o empurraram, mas não do que se passou depois. De repente, se vê em seu apartamento em Los Angeles, começa a olhar para todos os lados e pensa: “Sei que cheguei, mas... como cheguei?”
Repara que tem um papel no bolso da camisa, pega-o, e é o bilhete não utilizado do avião! Na época em que me contou essa história assegurou-me que não se lembrava de nada do que tinha acontecido com ele durante a viagem entre Oaxaca e Los Angeles.
Outra das coisas que me impressionavam nele era seu sentimento de orfandade. Em suas conversas pessoais deixava sair muito esse assunto, me contava que sofria muitíssimo por não ter mais Dom Juan vivo. Na realidade, ele nunca pôde superar sua partida, me disse isso até o final.
Sou testemunha de sua fascinação pela tradição pré-hispânica. Tínhamos vários pontos de afinidade, mas o principal é que eu era conchera. Ele sabia que eu tinha fontes sobre o conhecimento antigo diferentes das dos antropólogos. Creio que encontrava inspiração em minha atividade como dançarina, ou talvez buscasse corroboração na tradição sobre o conhecimento que lhe transmitiu Dom Juan.
Com frequência me perguntava o que era que sabiam os concheros sobre a tradição tolteca. Eu lhe dizia o que me haviam contado: que os toltecas foram os civilizadores originais, e que não foram uma raça, e sim um grupo de sábios que chegaram a certas descobertas sobre o homem, seu destino e a natureza da percepção.
Carlos me interrogava, extraía os detalhes da tradição como com lupa, não me perguntava qualquer coisa, só os detalhes finos. Uma vez me perguntou como é que os dançarinos de agora sabemos sobre os toltecas. Respondi que toda essa informação foi recebida através da tradição oral.
Certo dia chegou em minha casa e me contou uma história verdadeiramente fantástica: que ia até a Guatemala com outros companheiros, e que fariam a viagem a pé e não levariam dinheiro.
Fiquei um pouco preocupada, e perguntei-lhe se estavam devidamente equipados para a expedição. Respondeu-me que não necessitavam levar nada com eles, porque a Terra os abrigaria e lhes daria de comer.
Quando regressou da aventura, contou-me que estiveram três meses caminhando até a Guatemala e que tudo correu bem, foi muito emocionante. Efetivamente, a Terra se encarregou deles.
Não sei por que foram, mas acredito que buscassem um contato com a cultura maia, porque a relação entre as tradições do norte do México e os maias é muito profunda. Não me estranha que ele e seus companheiros tenham ido fazer uma oferenda à Terra no mundo maia.
Carlos não se relacionava com a mestra Magdalena diretamente, mas através de Dom Juan e dos velhos. Eu tive a oportunidade de estar onze anos perto dela. Contou-me que os bruxos têm suas hierarquias, que uns estão a cargo de outros, e cada xamã tem seu protetor. Geralmente, esses protetores não pertencem a esta realidade, mas sempre há um benfeitor vivo.
Ela tinha a ver com muitos xamãs que às vezes lhe pediam dinheiro para ajudar aos pobres.
Algo interessante é que tanto Dom Juan como a mestra declaravam que eles eram católicos convictos. Dom Juan era desses que vão à igreja todo domingo.
Carlos me contou que uma vez Dom Juan o levou à igreja e ele ficou esperando no átrio, porque tinha certo preconceito contra a religião. Quando se reuniram novamente, ele lhe perguntou:
“Ouça, Dom Juan, você se confessou?”
“Sim”, ele respondeu, “eu me confesso, comungo e tudo o mais.”
A mestra me explicou um dia essa relação com a igreja. Disse: “Como pessoa social, sou católica, mas como bruxa sou livre, não tenho religião.”
Disse-me que a religião tem uma grande energia, então não há porque rechaçá-la. Quando um bruxo se ajusta aos costumes de seu meio – sempre que esses costumes não sejam contrários à economia de energia – então não se desgasta lutando contra a corrente, não tem remorsos, é tão livre que até pode ir e comungar.
Também me explicou que os bruxos veem Deus como energia, não como um ser antropomórfico que nos vigia dia e noite para ver quando é que a gente vai dar uma mancada. A energia não é castigo. Isso de “Deus me castiga” é uma falsa ideia do Criador.
Na tradição do México se diz que Ometeotl se esparramou a si mesmo e gerou a dualidade, ou seja, o princípio masculino e feminino da criação, e daí veio o Homem.
Os antigos sabiam da divindade o que sabemos hoje. Temos o conceito de Moyocoyani, “aquele que inventa a si mesmo”; quer uma melhor definição de Deus? Isso é saber como está organizado o Universo!
A mestra me levava à missa frequentemente e me dizia:
“Eu cumpro com a mais alta missão da igreja, que é fazer caridade. Não cobro por curar, portanto, ganhei o direito de comungar sem me confessar.”
Um dia em que eu estava caminhando por Mérida, vi uma igreja que tinha a porta aberta e entrei para ver o que havia. Nesse momento ia saindo um sacerdote. Estávamos sós, não havia ninguém na nave. O sacerdote se aproximou e me perguntou: “Você quer se confessar?”
Respondi: “Francamente, padre, quer que eu diga a verdade? Sou curandeira, não acredito no pecado.”
O padre ficou me olhando um pouco e disse: “Está bem, filha, não é necessário que se confesse.”
No caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.
Deve começar com a premissa de que está doente e de que é possível curar-se, primeiro de todos os males corporais e depois dos males mentais.
Tem que começar limpando as tripas de tantas porcarias e isso se faz através do uso de sete plantas mágicas com as quais se preparam chás, lavagens intestinais e vomitivos.
Depois vem os temascales, onde se purifica o corpo através de sudoração e banhos de ervas e flores.
Junto com uma gama de exercícios físicos estão as massagens e os alongamentos, que servem para manter o corpo ágil e em boa forma.
A mestra deve ter visto que Carlos precisava de ajuda porque uma vez me disse:
“Diga a Carlos que ele deveria aprender a curar. É que a cura é uma porta para o mundo oculto. E no caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.”
Fui até Carlos e lhe transmiti seu recado. Acrescentei: “Acho que seria muito bom que você se encontrasse com ela para que ela o instrua em sua forma de curar.”
Mas notei que lhe dava medo essa possibilidade, porque tinha obsessão pelo assunto de que as pessoas chupam a nossa energia, e na cura há uma grande transferência de energia do curador para o paciente. Ele estava sempre se precavendo quanto a isso, não gostava de reuniões com muita gente e fugia das fotos, dizia que o sugavam.
Eu lhe respondia: “Sim, é verdade que nos chupam, mas nos renovamos descansando e comendo, não é preciso ter medo disso.”
Apesar da minha insistência, ele não quis ir com a mestra, acho que sentiu medo.
Um dia veio ao México e me disse: “Vou à península escandinava” – não me recordo por qual motivo. “O que querem as bruxas de presente?” Referia-se à mestra e a mim.
Respondi: “Não sei, o que você quiser.”
Ao regressar, trouxe-nos de presente uns perfumes maravilhosos, de uma qualidade verdadeiramente insólita, e umas toalhas. Eu levei à mestra Magdalena a parte que lhe cabia. Ela pegou seus presentes e me disse: “Diga a ele que eu lhe agradeço pelo perfume, mas as toalhas vou preparar para ele.”
Quem sabe o que fez com as toalhas, mas um dia as deu para mim e pediu que as entregasse a Carlos. Mas ele não quis pegá-las de volta, notei em seus olhos que tinha medo. Ainda as tenho aqui.
A velha Florinda e a mestra Magdalena não se davam bem. O motivo era que a mestra queria que Carlos se tornasse curandeiro, e Florinda se aborreceu por isso.
Em minha opinião, ela sentiu ciúme de que a outra se metesse com seu discípulo. Carlos me contava que se sentia sufocado pela forma dominante e dura com que Florinda controlava tudo.
Como fui eu que levei a mensagem da mestra, Florinda também se aborreceu comigo, não me queria para nada. Carlos me disse que ela o havia repreendido muito e me culpou de querer mudá-lo de caminho.
Uma noite sonhei com a velha Florinda e ela me tratou duramente, brigou comigo, recriminando-me por eu ser aprendiz de Magdalena.
Eu lhe respondi: “Olhe, senhora, eu não quero mudar Carlos em nenhum sentido, só dei o recado, nem sequer me atrevo a propor nada. Que culpa tenho eu? Quem tem essas ideias é a mestra Magdalena, então, qualquer assunto, fale com ela.”
No dia seguinte vou ter com a mestra e lhe pergunto: “Ouça, Florinda falou ontem com a senhora? Porque ela veio para cima de mim e eu a mandei falar com a senhora!”
Ela me tranquilizou: “Não se preocupe, essa velha não vai voltar a falar com você. Eu a pus em seu lugar!”
E assim foi, nunca mais me perturbou. Mas Carlos me ligou para dizer que Florinda havia exigido que ele não falasse mais comigo, de modo que durante um tempo teríamos que permanecer separados. Isso me doeu muito.
Anos mais tarde, Florinda, a jovem, veio ao México para dar uma palestra em um salão, lá por Las Lomas. Uma amiga minha soube e me avisou. Quando terminou, Florinda me disse: “Venha cumprimentar Carlos, que está na casa de Grinberg!”
Respondi: “Olhe, Florinda, há algo muito obscuro entre mim e ele”, e contei a história de minha desavença com a velha Florinda.
Mas ela me assegurou: “Por sorte, Soledad, esse problema já passou. Florinda se foi e acabou a bronca. Venha comigo, eu levo você até Carlos.”
Respondi: “Louvado seja Deus! Que bom!”
Assim o fizemos. Eu ia com um pouco de medo, mas quando chegamos à casa de Jacobo, Carlos me deu o abraço mais longo que já recebi em toda a minha vida. Foram uns dez minutos. Ele colocou seu rosto bem junto ao meu e disse aos presentes:
“Vejam minha irmãzinha, não é verdade que somos iguaizinhos?”
A última vez que o vi foi na palestra que deu na Casa Tibet. Cheguei um pouco tarde, ele já havia começado. Sentei-me no fundo da sala para não chamar atenção, mas escutava e via bem.
Quando terminou, o vi sair de braço dado com Carol Tiggs, caminhando com passinhos muito curtos, como um débil ancião. Ela o amparava, porque ele já não podia andar sozinho. Causou-me muito impacto seu estado, porque eu o havia conhecido como um jovem em todo o seu esplendor.
Abracei-o com muito entusiasmo, e senti que se desfazia em meus braços. Perguntei-me como era possível que em tão pouco tempo Carlos houvesse passado de sua plenitude a um nível energético tão baixo.
Como se lesse minha mente, ele respondeu:
“Sabe, tenho um problema muito sério: tenho um pé aqui e outro sabe lá onde. Soledad, fui muito longe e não pude reunir minhas partes. Por isso estou tão mal.”
Explicou-me que sua enfermidade era na realidade um problema energético, pois em um de seus ensonhos se atolou por aí e não pôde juntar de novo sua totalidade. Em tom amargurado, queixou-se:
“Imagine! Eu, que sempre fui tão independente, agora necessito que me ajudem, tem até que me dar banho!”
E acrescentou: “Se conseguir reunir minhas partes novamente, regressarei ao México e ligo para você. Senão, Soledad, nos veremos no além. Lembre-se que eu e você temos um encontro no outro mundo.”
Era verdade, alguns anos antes nós havíamos marcado um encontro em um mundo que não é humano. Selamos o pacto com um pequeno ritual que teve lugar na sala da minha casa.
Nunca mais veio ao México. Diz-se que morreu de câncer do fígado, mas creio que essa explicação foi para cumprir com as formalidades.
Minha conclusão sobre Carlos é que, mais do que contar fatos sobre sua vida privada, vale a pena ressaltar sua monumental importância para o México. Ele é o pesquisador que mais divulgou nossas tradições no mundo inteiro, seus livros foram traduzidos para todos os idiomas importantes e são estudados por suas gigantescas contribuições culturais e espirituais. O México tem uma imperecível dívida de gratidão para com ele.
Tradução: Adriana Northrup
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