segunda-feira, 31 de março de 2025

A questão da sombra - 2ª parte

Estamos entrando em outro paradigma quando trilhamos os caminhos do Xamanismo.

Precisamos despertar plenamente nossa natureza pagã, ser de corpo e alma um (a) pagão(ã), alguém que sente a VIDA sem intermediários, diretamente.

Recomendo muito ler Fernando Pessoa¹ e seus textos e poemas pagãos para sentir o que estou querendo colocar como "ser pagão".

Os poetas, FP em especial, conseguem dar uma elasticidade a palavra que ela se torna mais ampla, capaz então de conter em si verdadeiras definições deste complexo estado que é ser pagão (ã).

É um estado de espirito onde vamos direto a ELA, a Natureza, onde vamos além do que nos disseram ser a realidade para realmente SENTIR o que é a realidade.

Nós pagãos(ãs) nos sabemos parte DELA, sentimos em nós o Deus e a Deusa em seus movimentos.

Por isso um (a) pagão sente os ciclos da vida e os celebra, as luas cheias e novas, os trabalhos da crescente e da minguante, sabe quando o sol nasce, o meio dia, o crepúsculo que é porta e a noite escura, véu que nos permite atravessar as fronteiras e nos aventurarmos em outros mundos pelo SONHAR.

Há uma mudança profunda que se opera em nós quando deixamos de lado o condicionamento, o "que fizeram de nós" e ousamos ser "o que somos".

O Xamanismo coloca que neste caminho de auto-descobrimento e auto-realização, passamos por uma caverna, um lugar onde enfrentamos nossos fantasmas interiores, um lugar onde temos que aprender a integrar nossa sombra ao todo que somos.

A sombra quando não integrada gera uma turbulência na nossa totalidade e aspectos nossos não resolvidos podem vir à tona.

Meditem comigo, somos os(as) filhos(as), dos(as) pais, dos(as) avós, dos(as) bisavós, dos(as) tataravós e por aí vai.

Temos em nós a ancestralidade masculina e feminina que remonta a épocas além da concepção humana.

Temos todo tipo de estilos de ser nessa nossa ancestralidade, assim precisamos de fato harmonizar toda esta tremenda carga informacional que trazemos em nós, da qual somos manifestação.

Temos uma visão muito pobre do passado, do que são nossos ancestrais.

Os(as) verdadeiros(as) construtores(as) dos monumentos de pedra que intrigam a humanidade, ainda são desconhecidos, mesmo com as explicações simplistas e positivistas dos que ainda se arvoram de donos do saber, que julgam que suas teses são verdades que podem se sobrepor a realidade da existência.

Estamos querendo analisar o passado com olhos do presente, o passado tinha outros paradigmas, outra percepção da realidade.

Um jarro que tinha azeite não era só um vaso que tinha azeite como hoje uma lata de azeite numa mesa é prá nós.

Tudo tinha outra textura, outra época, temos que tomar cuidado para não embarcar na Helmman's Airlines e fazer uma leitura cinematográfica do passado.

Tem gente que crê mesmo que o passado é como Xena e Hércules mostram e que magia é o que Charmed "revela".

São até interessantes e muito bons tais seriados, antes que alguém venha em sua defesa, estou apenas citando como exemplo.

Legais, ótimos, bem feitos, mas são leituras de nossa época de uma época que era completamente diferente.

Os tempos mudam, mesmo recentemente.

Pensem como era sobreviver na Idade Média: pestes, ladrões nas estradas, senhores feudais temíveis, padres em suas diligências contra a "heresia" e o "demônio" com livre trânsito para acusar quem quisessem e não apenas matar, mas torturar de forma atroz quem fosse acusado(a).

Os vencedores sobrevivem em maior número, os que perdem as batalhas de conquista só o fazem porque abrem mão de seus referenciais de vida.

Os que perdem as batalhas sobrevivem em corpo, mas sua história e sua continuidade existencial lhes é negada, agora continuam para construir a realidade com os paradigmas dos vencedores.

Assim temos um mundo formado pelos referenciais dos vencedores das várias batalhas nos quais impérios mercantilistas foram conquistando e destruindo, quer completamente quer em parte, os povos nativos.

Quer os matando, quer os convertendo.

E isto continua acontecendo, agora , subjugados à miséria que lhes foi imposta, são presas fáceis para os que lá vão convertê-los à fés que lhes são estranhas.

E é isto que ocorre agora, povos nativos, pagãos, sofrendo a subjugação, talvez mais atroz, agora que lhes escravizam as almas, lhes prometem paraísos futuros enquanto lhes roubam o que têm.

São outros seres humanos que estão fazendo isso, quer a violência de lhes negar sua tradição milenar, que a violência ainda mais terrível de lhes negar vida, terra, liberdade, pois a exploração e a morte de nativos é uma triste realidade em todo nosso continente.

Quem está destruindo vidas pelo lucro, que queima a floresta, que draga o rio, mata um rio inteiro para tirar minérios (há barcos que fazem isso, passam uma draga no fundo do rio e separam os minérios que querem e devolvem o "restolho" para o fundo do rio, pensem os nichos do fundo do rio que foram destruídos, isso está acontecendo aos montes agora. Estão MATANDO rios e ninguém nem liga...) tudo isso acontecendo é uma manifestação temível desta mesma sombra, seres humanos negam sua sensibilidade e destroem a vida em todas as formas em busca de lucro.

Por isso é muito importante resolver a sombra, para não nos tornarmos partidários da destruição que este sistema propõe em várias estâncias.

Temos toda essa tremenda energia dentro de nós, temos forças ancestrais em nós que foram sábias e magnânimas, mas também temos forças ancestrais em nós que foram atrozes.




Por isso temos que harmonizar essas forças ancestrais em nós e uma parte da sombra que falamos aqui é composta dessas forças ancestrais de tremendo poder, mas que podem nos deturpar com seus preconceituosos conselhos, podem usar toda sua habilidade para levar nossa percepção a focar o "jeito" de ser de alguém que já viveu, em outra época, outro momento, quando o desafio é sermos nós, entes singulares e vivermos do NOSSO jeito.


Nuvem que passa


¹ Fernando Pessoa como Alberto Caieiro - download aqui.

Rebanhos» (IX, X, XIII) (1925)
IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

***

X

«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?»

«Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?»

«Muita coisa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.»

«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»

***

XIII

Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.

(Athena, 4, janeiro de 1925, p. 148)


domingo, 30 de março de 2025

A questão da sombra - 1ª parte, por Nuvem que Passa.

Abordar a questão da sombra como pagãos (ãs) é entrar no assunto por outros campos.

É chegar já sem medo, sem crer em "mal", sem crer em pecados, que são crenças crististas que nada tem a ver com o paganismo.

Lembrando que chamamos de Cristista aqui o que fizeram do Cristianismo, pois a abordagem cristã da realidade também tem seus méritos, mas as religiões dogmáticas e dominantes, com sua necessidade de poder mundano acabaram deturpando a mensagem do Cristianismo reduzindo-o a um sistema muito tacanho e opressor, que, para diferenciar, chamo de cristismo.

Ir às questões fundamentais, como a sombra, pela via do Paganismo é outra realidade.

É outra abordagem, percebem, é uma história não para gente ficar explicando como às vezes temos mania, pegar um conto xamânico, uma lenda pagã, não é para ficar "interpretando": "isso e aquilo, tal coisa simboliza tal coisa, o osso é a tipificação do signo que é uma metalinguagem, sdroboWW!!!..."

O paganismo nos desafia a outro tipo de percepção, com o corpo da gente, é sentir o que está lendo, é sentir e não apenas raciocinar. Estas histórias falam para partes profundas de nós e temos partes profundas de nós que estão nas sombras.

Não é iluminar as sombras, sombra é sombra, luz é luz, cada uma tem seu papel.

Nossos ancestrais estão nesta sombra, temos que resolver nossa relação com nossos ancestrais.

Muitas pessoas nunca conseguem se equilibrar porque seus ancestrais não estão em harmonia com sua realidade de aqui e agora.

Galera, vamos acordar, vamos parar de querer fazer leituras crististas do paganismo.

Não é que o cristismo é errado não, cada um na sua. Acredito que a realidade é muito ampla, cabe todo mundo, mas alguém que quer mesmo trilhar o caminho do paganismo, é bom ir além desses paradigmas.

Senão a gente fica igual os movimentos nova era da Califórnia. Tem exceções, fique claro, mas tem aqueles caras que falam as mesmas coisas, pecado, céu, inferno, culpa, medo, Jesus, um deus pai e tal, mas usam palavras novas, termos novos. Temos que ir além de só mudar os nomes, apenas dar novos nomes aos bois não muda o fato que são bois.

Se estamos num grupo de pagãos, vamos ser pagãos em nossa proposta de entender o mundo.

Vamos olhar com novos olhos nossa ARTE.

Caminhos como o Xamanismo e a Wicca são caminhos pagãos e neo pagãos, assim merecem ser abordados com outro conjunto de paradigmas.

Digo isso porque, como xamã, considero a Wicca uma prima, uma "iba dïbï saï" ("os meus de verdade" termo usado pelos Sanumá, grupo da nação conhecida como Yanomani, para designar parentes próximos).

Pensem, este povo está sendo dizimado. Agora, enquanto teclo, tem um monte de povos nativos sendo dizimados nesse continente, a guerrilha do sub-comandante Marcos, na Colômbia, Peru, Bolívia, o narcotráfico e os agentes norte-americanos, há tanta coisa levando o povo nativo à destruição.

Toda essa crise no mundo.

Por que esta guerra no mundo?

Porque antigos ódios não foram esquecidos, porque os (as) filhos (as) continuam as lutas de seus pais ao invés de buscarem novos caminhos.

Cada um que está hoje num desses conflitos está lutando por causas que vem alimentando gerações de mortes e destruição.

Esta Sombra que os impulsiona vem do fato que não vivem suas próprias vidas, continuam a luta de seus ancestrais.

O primeiro passo de transformação da Sombra precisa é o trabalhar com nossos ancestrais.

Pois temos muitos jeitos de reagir, de emocionar e de raciocinar que não são "nossos" de verdade, trazemos coisas de nosso pai, nossa mãe e de nossos ancestrais também, porque nossos pais trazem dos pais deles e estes dos deles e aí vai.

Temos de estar atentos se vamos mesmo lidar com nossa Sombra, temos de lidar com os fatos que somos, sem fantasias sobre nós mesmos.

A tradição xamanística diz que só gente de verdade pode andar nas trilhas da sombra interior e não ser devorado por ela, por isso a vida é um dom tão raro, ensinam os(as) xamãs, só na trilha da vida podemos andar pela sombra e integrar seu tremendo poder em nós.

Depois que alguém passa pela avó morte dizem que é quase impossível um homem ou mulher conseguir mais andar pela trilha da sombra sem ser por ela devorado.

Pois a sombra deve estar integrada a nós, não dominando, pois qualquer parte da vasta totalidade que somos que "domine" já está exercendo um tipo de poder que acaba se mostrando no final sempre nefasto.

Neste ponto é interessante lembrar que na Wicca, como no Xamanismo, a gente não tem aquela história de "dominar" os elementais, de ser "o senhor"(a) dos elementos.

Nós "encantamos", e a magia da Deusa, encantamento, outra forma de abordar o poder, com a mesma VONTADE.

Da mesma forma vamos "encantar" a energia tremenda de nossos antepassados que faz parte de nossa Sombra.

Precisamos falar sobre isso também de forma clara.

Vejam as briguinhas que surgem nas listas de debate de tempos em tempos, A fala algo B entende outro algo, C se sente ofendido.

Aí começam ataques e contra ataques, brigas, separações, quantas histórias assim vocês conhecem?

Tudo isso indica que ainda reagimos demais, que temos muita ansiedade e nos colocamos em guarda ao menor sinal (real ou imaginário) de ataque.

Sem trabalhar isso antes, querer trabalhar a sombra é dar uma bomba atômica para um suicida religioso...

Portanto vamos ser bem realistas conosco mesmo.

Estamos mesmo nos trabalhando para estarmos mais em harmonia com a gente e com realidade ou tenho uma vida em crises com tudo e todos (as) a minha volta?

Da sinceridade desta resposta, que no silêncio do ler este texto, pelo menos por um instante vai passar pela tua consciência, vem a também a resposta se é hora ou não de lidar com esta questão da sombra.

Nuvem que passa


sábado, 29 de março de 2025

Como eliminar a autoimportância - 2ª parte

Através da ignorância sábia:

   

          Ignorar solenemente o ego. 



O seu e o dos outros.



Conhecida esotericamente como:



                                                   a técnica do cu virado.
                                                   

                                                   

Uma questão quase pretensiosa: como eliminar a autoimportância?



Uma questão pretensiosa?  A pretensão de pretender ser despretensioso?

Ou a necessidade existencial de livrar-se de um excesso de peso na viagem que realmente importa?

Como eliminar a autoimportância?

Sabendo de fato isto.

Só existe a Águia¹ e as ordens da Águia. Nada mais.

Eu não sou nada, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

Não há se quer isso que chamo de "eu", só existe a Águia e as ordens da Águia.

Quem escreve isto? Quem lê isto?

A Águia, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

Eu, tu, nós, as relações, o amor e o ódio, a paz e a guerra, o prazer e a dor, todo esse jogo dual é pura ilusão, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

Esse tremor infinito que sacode todo o ser, é apenas um rápido vislumbre daquilo que É, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

Por mais importante, por mais real que você, eu agora nos sintamos saiba que a morte acaba com tudo isso, pois essa é a ordem da Águia.

O que você chama de destino, livre-arbítrio, escolha, poder pessoal nada mais é do que a Águia e as ordens da Águia.

A implacabilidade é nada mais nada menos do que a própria ordem da Águia, que paira sobre todos os seres de forma impessoal.

Nada é mais importante do que qualquer outra coisa, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

"Uma pessoa é igual a tudo".

Por que os nawais e guerreiros toltecas não fazem nada por si mesmos, antes agem em função de sinais, de presságios, de augúrios e indicações do Poder? Por que só existe a Águia e as ordens da Águia.

Por que o caminho realmente só começa a partir do estabelecimento do silêncio? Por que só a partir do silêncio interior podemos de fato compreender a Águia e as ordens da Águia.

O eu, o ego se rebela contra isso, como se ele existisse, mas até mesmo essa autoafirmação nada mais é do que a Águia e as ordens da Águia.

A autoimportância querendo agir apenas encontra dor, sofrimento, frustração, desejo, preocupação, angústia, vaidade pois é incapaz de compreender que só existe a Águia e as ordens da Águia.

Os próprios observadores ao contemplarem a imensidão da Águia, a fonte suprema de tudo, em sua irreverência a chamaram de tirano, pois só existe a Águia e as ordens da Águia.

Sabendo disso surgiram aqueles que se rebelaram contra tal tirania, apegaram-se a si mesmos e constituíram o caminho sombrio, mas isso é assim, por um único motivo: só existe a Águia e as ordens da Águia.

Isso não é religião, nem dogma contra o qual se possa insurgir, apenas um fato energético decorrente da própria Fonte, talvez você possa chamá-lo de "advaita vedanta nawal" ou o regulamento, pois em realidade só existe a Águia e as ordens da Águia.

Diante disso só há duas possibilidades: apegar-se a si mesmo e lidar com os pequenos tiranos do cotidiano ou desapegar-se de si e unir-se à própria Fonte.

Mas quem decide? Bem, "você" já sabe a resposta. Será?

Ao final e ao cabo todos retornarão à Fonte.

Modak

¹

"O poder que governa o destino de todos os seres vivos é chamado a Águia, não por ser uma águia ou ter qualquer relação com ela, mas por aparecer ao observador como uma incomensurável águia negra, na sua postura ereta, com o corpo voltado para o infinito" - O Presente da Águia, de Carlos Castaneda.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Entre a vaidade e o medo



Quando era garoto, lá pelos anos 60 e 70, em plena ditadura militar, quase todo o dia tinha que sair na porrada por causa da provocação dos mais velhos contra e entre os mais novos, num versão humana da rinha de galo em via pública. 

Vivia num dos bairros ditos nobres da zona sul do Rio de Janeiro, a três quadras da praia, que naquela época era um verdadeiro paraíso onde ainda podíamos catar tatuís na areia, à beira-mar. Hoje os tatuís não mais existem nas praias da "minha" infância, com eles morre um pouco de nós mesmos. A rua onde moraváoms já carregava uma marca de guerra, tinha nome de almirante e por lá deixamos sangue, dentes, suor e bons amigos.

Aquele agogê mirim começava sempre numa rodinha de garotos da rua que se reuniam para travar as mais diversas brincadeiras, quase todas violentas ou que era raro não acabar em violência: carniça, polícia e ladrão, futebol de rua, boxe em duplas ou times (usando havaianas com arma para golpear e humilhar), guerra de elásticos, cabo de guerra, furtos em mercados ou na carrocinha do bidú, sarradas provocativas, xingamento gratuitos e por aí vai.

Naquela época tv e telefone ainda eram novidade e gamers eram apenas o jogos como damas, loto, xadrez ou carteado. Havia ainda os jogos com bolinhas de gude como mata-mata, bulica ou triângulo. Havia álbuns de figurinhas e disputas mano à mano como bafo-bafo. Havia o futebol de botão, a sinuquinha, o totó, peteca, ping-pong e tudo o mais que a criatividade permitisse, nesse sentido o céu era o limite e o sonho de consumo da garotada eram os carrinhos matchbox, os autoramas e os trenzinhos de ferro.

Na televisão passava Batman (e a incrível Mulher-Gato), Speed Race, Fantomas, Oitavo-Homem e Ultraseven. Morria-se de tédio na maior parte das vezes em frente à TV e os dias chuvosos eram um verdadeiro tormento. A violência que percebíamos talvez fosse um reflexo, um escape ao tédio, à disciplina escolar, ao adestramento imposto nos colégios e ao ambiente autoritário numa época de golpes, contra-golpes, torturas e guerrilhas.

O agogê mirim ainda assim era melhor que tudo isso. Tínhamos naturalmente medo, mas nos sentíamos vivos e não encarcerados em "apertamentos" ou salas de aula com ensinamentos sem o menor sentido. A porrada comia por toda a parte: na rua, no colégio ou em casa. Não lembro da primeira porrada de rua como me lembro da primeira surra de cinto de fivela em casa, algo literalmente marcante, que deixou marcas profundas pelas coxas, mas sem traumas ou ressentimentos, só lembranças de quem viveu uma infância bem vivida.

Mas de uma coisa me lembro bem nas porradas de rua: se achava que ia me dar bem, me dava mal e se achava que ia me dar mal acabava me dando bem. A vaidade era sempre uma péssima conselheira e o medo aquilo que me concedia um poder superior, transformava-me numa verdadeira besta infante.

Aprendi rápido como a vaidade nos enfraquece e como o medo diante do perigo nos fortalece. Não diria que o medo é uma virtude, mas compreendi bem por que um bicho acuado é infinitamente mais perigoso e por que um pavão será sempre algo vistoso e nunca algo para se contar numa situação de conflito. Percebi assim como o medo está muito mais próximo da humildade do que qualquer outra emoção e por que ao enfrentarmos os desafios da vida uma dose de medo é muito mais importante do que um excesso de vaidade.

Hoje, numa outra fase da vida, continuamos num outro agogê, numa outra luta, uma luta para que, sobretudo, não sucumbamos diante de nós mesmos, entre a vaidade e o medo.

Modak


quinta-feira, 27 de março de 2025

A auto-importância

Pessoal, esse é um capítulo de um livro sobre Nagualismo, no final disponho o link para download, refere-se portanto a uma linhagem xamânica que tinha um propósito muito próprio e que para ser devidamente compreendido precisa ser vivenciado, o que nos fará entender o significado da frase famosa de Matrix: "Há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho". Escolhi a Torre, arcano 16 do Tarot, como imagem porque ele ilustra bem para onde a auto-importânica nos leva.

A Importância Pessoal
Justificar
Cheguei ao átrio do hotel na hora combinada. Não esperei nem um minuto e o vi descendo as escadas que davam acesso aos quartos. Nós nos cumprimentamos e então nos dirigimos ao restaurante onde nos serviram um delicioso café da manhã. Em dado momento quis perguntar-lhe algo, mas ele me fez sinais para ficar calado. Comemos em silêncio.

Ao terminarmos, saímos para caminhar pela rua Donceles, rumo ao Zócalo. Enquanto passeávamos pelos sebos, ele me confessou que, geralmente, não falava em particular com as pessoas, mas que no meu caso era diferente porque ele tinha recebido uma indicação a respeito. Como eu não sabia a que se referia, preferi permanecer calado, já que qualquer comentário meu nada mais faria que sublinhar minha ignorância.

Acrescentou que de forma alguma eu deveria confundir sua deferência com um interesse pessoal.

"Eu disse muitas vezes que minha condição energética me impede de receber discípulos.

Por isso, as pessoas se desapontam comigo. Mas eu não posso fazer nada!"

Conversamos sobre diversos temas. E eles fez muitas perguntas sobre minha vida, pediu o número de meu telefone e me avisou que na noite seguinte ele daria uma palestra na casa de uma amiga. Eu estava convidado a assistir, mas que a nossa relação deveria permanecer em segredo.

Eu lhe respondi que adoraria estar presente e então ele me deu o endereço e o horário.

Em um dos sebos que visitamos, encontramos um exemplar de um dos seus livros intitulado - "Uma estranha realidade". Estava na estante das obras de ficção, o qual lhe aborreceu muitíssimo. Comentou que as pessoas estão tão comprometidas com o cotidiano que nem sequer podem conceber o mistério que nos cerca. Quando algo sai do conhecido, automaticamente nós o classificamos em uma cômoda categoria e então nos esquecemos disso.

Percebi que folheava os livros com interesse e que, às vezes, passava a mão neles com carinho, com um sentimento de respeito. Ele disse que aqueles, mais que livros, eram depósitos de conhecimento não se importando com a forma em que este se apresentasse. Acrescentou que a informação de que precisamos para ampliarmos a consciência se esconde nos lugares mais improváveis e que se não fôssemos tão rígidos como normalmente somos, tudo à nossa volta nos contaria segredos incríveis.

"Somente precisamos nos abrir ao conhecimento e este chegará a nós como uma avalanche".

Vendo uma mesa que exibia livros a um preço quase de graça, ficou admirado com o baixo custo que têm os livros já lidos comparados com os novos. Na opinião dele, isso provava que as pessoas não estão realmente procurando informação. O que procuram é o "status" do comprador.

Eu lhe perguntei que tipo de leitura ele preferia e me respondeu que gostava de saber sobre tudo. Porém, nessa ocasião, estava procurando um livro de poesia em particular; certa edição antiga que nunca havia sido reimpressa. Pediu-me que lhe ajudasse a encontrá-lo.

Durante um longo tempo, nós revolvemos muitos livros. Finalmente, saiu com um pacote deles, mas não com o qual procurava. Com um sorriso culpado, admitiu:

"Sempre me acontece a mesma coisa!"

Próximo ao meio-dia nos sentamos para descansar num banco de uma praça onde estavam os impressores oferecendo seus serviços. Aproveitei a oportunidade para lhe dizer que suas declarações da noite anterior tinham me deixado perplexo. Então lhe pedi que me explicasse com mais detalhes no que consistia a guerra dos bruxos.

Com muita cortesia, ele me explicou que era natural que esse tema me afetasse, já que eu, como o resto dos seres humanos, fui preparado desde meu nascimento para perceber o mundo do ponto de vista do bando das ovelhas. Ele me contou histórias de seus companheiros e como eles tinham conseguido, depois de muitos anos de luta tenaz contra suas fraquezas, superar à coerção coletiva. E me aconselhou a ser paciente, pois a seu devido tempo as coisas se explicariam.

Depois de um momento de conversa agradável, ele me deu a mão num gesto de adeus. Eu não pude conter minha curiosidade e lhe perguntei o que ele tinha desejado dizer com isso de que havia tido "uma indicação" sobre mim.

Em vez de me responder, ele olhou com atenção sobre meu ombro esquerdo. Imediatamente minha orelha ficou quente e começou a zumbir. Depois de um tempo, disse que ele mesmo não sabia, porque não pôde ler a natureza do sinal. Mas tinha sido algo tão claro, que tinha sido forçado a prestar atenção.

Acrescentou:

"Eu não posso guiá-lo, mas posso colocá-lo diante de um abismo que colocará à prova todas as suas habilidades. Dependerá de você se se lança ao voo ou se corre para se esconder na segurança de suas rotinas".

Suas palavras despertaram minha curiosidade. Eu lhe perguntei a que abismo se referia.

Ele me disse que se referia ao meu próprio sonho.

Essa resposta me estremeceu. De alguma maneira, Carlos tinha notado meu dilema interior.

Faltando quinze para às sete, cheguei a uma bonita casinha em Coyoacán. Uma moça agradável, que parecia ser a dona da casa, veio me receber. Eu lhe expliquei que tinha sido convidado à conferência de Carlos e ela me convidou a entrar. Nós nos apresentamos e ela disse que se chamava Martha.

Na sala havia outras oito pessoas. Logo chegaram mais dois convidados e em seguida apareceu Carlos que, como sempre, saudou a todos efusivamente. Desta vez apareceu trajado de um modo muito formal, de terno e gravata, e trazia na mão uma pasta que lhe dava um ar intelectual. Começou a conversar sobre diversos assuntos e, quase sem que notássemos, entrou no tema: como apagar a importância pessoal.

Como preâmbulo, afirmou que o papel relevante que nos concedemos a nós mesmos em cada uma das coisas que fazemos, dizemos ou pensamos, consiste numa espécie de "dissonância cognitiva" que nubla nossos sentidos e nos impede de ver as coisas clara e objetivamente.

"Somos como pássaros atrofiados. Nascemos com todo o necessário para voar, porem, estamos permanentemente obrigados a dar voltas em torno de nosso ego. A corrente que nos aprisiona é a importância pessoal”.

"O caminho para converter um ser humano normal num guerreiro é muito árduo. Sempre intervém nossa sensação de estar no centro de tudo, de sermos necessários e termos a última palavra. Nós nos sentimos importantes. E quando a pessoa é importante, qualquer intento de mudança se converte em um processo lento, complicado e doloroso”.

"Esse sentimento nos segrega. Se não fosse por ele, todos nós fluiríamos no mar da consciência e saberíamos que nosso eu pessoal não existe para si mesmo: seu destino é alimentar a Águia”.

A importância cresce na criança à medida em que ela aperfeiçoa sua interpretação da realidade. Fomos forçados a aprender a construir um mundo de concordâncias ao qual nos referir, para que possamos nos comunicar. Mas esse dom incluiu uma embaraçosa sequela: nossa ideia do 'eu'. O eu é uma construção mental, veio de fora e está na hora de nos desfazermos dele".

Carlos afirmou que as falhas em que nós incorremos ao nos comunicarmos são uma prova de que a concordância que nós recebemos é absolutamente artificial.

"Depois de experimentar durante milênios situações que alteram nossos modos de perceber o mundo, os bruxos do México antigo descobriram um fato prodigioso: que nós não estamos obrigados a viver em uma única realidade, porque o universo está construído com princípios muito maleáveis que podem se acomodar em formas quase infinitas, produzindo incontáveis gamas de percepção”.

"A partir desta constatação, eles deduziram que o que nós seres humanos recebemos de fora, foi a capacidade para fixar nossa atenção em um desses níveis para explorá-lo e reconhecê-lo, moldando-nos a ele e aprendendo a senti-lo como se fosse único. Assim surgiu a ideia de que nós vivemos em um mundo exclusivo e, consequentemente, gerou-se o sentimento de ser um 'eu' individual.

"Não há dúvidas de que a descrição que nos deram é uma possessão valiosa, semelhante a uma estaca à qual se amarra uma plantinha tenra para fortalecê-la e conduzi-la. E isso tem permitido que cresçamos como pessoas normais numa sociedade modelada para essa fixação.

Para isso, nós tivemos que aprender a 'desnatar', quer dizer, fazer leituras seletivas do enorme volume de informações que chegam a nossos sentidos. Mas, uma vez que essas leituras se tornam 'a realidade', a fixação da atenção funciona como uma âncora, pois nos impede de tomar consciência de nossas incríveis possibilidades”.

"Don Juan sustentava que o limite da percepção humana é a timidez. Para poder manipular o mundo que nos cerca, nós tivemos que renunciar ao nosso patrimônio perceptivo que é a possibilidade para testemunhar tudo. Desse modo, nós sacrificamos o voo da consciência pela segurança do conhecido. Nós podemos viver vidas fortes, audazes, saudáveis, podemos ser guerreiros impecáveis, mas não ousamos!

"Nossa herança é uma casa estável onde viver, mas nós a transformamos em uma fortaleza para a defesa do eu, melhor dizendo, em um cárcere onde condenamos nossa energia a consumir-se em prisão perpétua. Nossos melhores anos, sentimentos e forças se vão no conserto e na sustentação daquela casa porque nós acabamos nos identificando com ela”.

"Quando uma criança se torna um ser social, ela adquire uma falsa convicção de sua própria importância. E aquilo que no princípio era um sentimento saudável de autopreservação, acaba se transformando em uma exigência ególatra por atenção”.

"De todos os presentes que recebemos, a importância pessoal é o mais cruel. Converte uma criatura mágica e cheia de vida em um pobre diabo arrogante e sem graça".

Apontando para seus pés, falou que nos sentir importantes nos força a fazer coisas absurdas.

"Vejam eu! Uma vez eu comprei sapatos muito bons, que pesavam quase um quilo cada um. Gastei uns quinhentos dólares para andar arrastando meus sapatões por aí!

"Por causa de nossa importância, nós estamos cheios até as bordas de rancores, invejas e frustrações. Nós nos deixamos guiar pelos sentimentos de indulgência e fugimos da tarefa de nos conhecer a nós mesmos com pretextos como: 'me dá preguiça' ou 'que cansaço!'. Por trás de tudo isso há uma ansiedade que tentamos silenciar com um diálogo interno cada vez mais denso e menos natural".

Neste ponto da conversa, Carlos fez um intervalo para responder algumas perguntas e aproveitou para nos contar diversas histórias exemplares sobre como a auto-importância deforma os seres humanos, transformando-os em couraças rígidas diante das quais um guerreiro não sabe se ri ou se chora.

"Depois de estudar durante alguns anos com don Juan, eu me senti tão perplexo com suas práticas que fui embora durante algum tempo. Não podia aceitar o que ele e meu benfeitor me faziam. Parecia desumano, desnecessário e ansiava por um tratamento mais doce. Eu aproveitei para visitar diversos guias espirituais do mundo inteiro a fim de achar nas doutrinas deles algum ensino que justificasse minha deserção”.

"Em certa ocasião conheci um guru californiano que se achava grande coisa. Ele me admitiu como seu discípulo e me deu a tarefa de pedir esmolas em uma praça pública. Considerando que era uma experiência nova para mim e que provavelmente tiraria uma lição importante de tudo isso, eu me encorajei e cumpri o proposto. Quando voltei para vê-lo, disse a ele: 'agora faça isso você!'. Ele ficou furioso comigo e me expulsou da turma”.

"Em outra de minhas viagens, fui ver um conhecido mestre hindu. Eu me apresentei em sua casa bem cedo e formei fila com outros curiosos. Mas o cavalheiro nos deixou esperando durante horas. Quando apareceu, no alto de uma escada, ele tinha um aspecto condescendente, como se nos estivesse fazendo um grande favor em nos admitir. Começou a descer os degraus muito meritoriamente, mas seus pés se emaranharam em sua grande túnica, caiu no chão e quebrou a cabeça. Morreu ali mesmo, diante de nós".

Em outra ocasião, Carlos nos falou que o demônio da auto-importância não afeta somente aqueles que se acreditam mestres, mas que é um problema geral. Um dos seus estandartes mais firmes é a aparência pessoal.

"Esse era um ponto pelo qual eu sempre me senti incomodado. Don Juan costumava atiçar meu ressentimento zombando de minha estatura. Ele me dizia: 'Quanto mais baixinho, mais egomaníaco! Você é pequeno e ruim como um percevejo, não pode fazer outra coisa senão ser famoso, porque do contrário você não existe!' Afirmava que o mero fato de me ver lhe dava vontade de vomitar, pelo que estava infinitamente agradecido comigo: 'cada vez que você vem eu me renovo!'

"Eu me ofendia com seus comentários, porque tinha a certeza de que exagerava meus defeitos. Mas um dia eu entrei em uma loja de Los Angeles e pude entender que ele tinha toda a razão. Ouvi um indivíduo que dizia ao meu lado: 'Shorty!' (pequeno). Eu me senti tão irritado que, sem pensar duas vezes, virei e lhe dei um forte soco na cara. Depois eu soube que o homem não tinha dito isso para mim, mas porque tinha recebido um troco menor”.

"Um dos conselhos que nos deu Don Juan foi que durante nossa formação como guerreiros nos abstivéssemos de empregar o que ele chamava 'ferramentas para a perpetuação do eu.'

Incluía nessa categoria objetos tais como os espelhos, exibição de títulos acadêmicos e os álbuns de fotos com história pessoal. Os bruxos do seu grupo tomavam esse conselho literalmente, mas os aprendizes não se importavam. Porém, por alguma razão, eu interpretei seu comando de forma extrema desde então eu nem permito ser fotografado”.

"Certa vez, enquanto eu proferia uma conferência, expliquei que as fotos são uma perpetuação do auto-reflexo e que minha relutância tinha como objetivo manter uma cômoda incógnita ao redor de minha pessoa. Depois eu descobri que certa senhora que estava entre os assistentes e que se dava ar de guia espiritual, havia comentado que, se ela tivesse a minha cara de garçom mexicano, ela tampouco se deixaria fotografar”.

"Ao observar as manhas da importância pessoal e o modo homogêneo com que contamina todo o mundo, os videntes dividiram aos seres humanos em três categorias, para as quais don Juan pôs os nomes mais ridículos que pôde achar: os mijos, os peidos e os vômitos. Todos nós nos ajustamos em um deles”.

"Os mijos se caracterizam por seu servilismo; eles são aduladores, pegajosos e enjoados. É o tipo de gente que sempre quer lhe fazer um favor; cuidam de você, o previnem, paparicam.

Eles têm tanta compaixão na alma! Mas desse modo eles mascaram um fato real: eles não têm iniciativa própria e por si só nunca chegam a nada. Eles precisam de um comando alheio para sentir que estão fazendo algo. E, para sua desgraça, eles dão por certo que os outros são tão amáveis quanto eles; por isso sempre são feridos, decepcionados e chorosos.

"Os peidos, por outro lado, são o extremo oposto. Irritantes, mesquinhos e auto-suficientes, constantemente se impõem e interferem. Uma vez que agarram você, não o deixam em paz. Eles são as pessoas mais desagradáveis com quem você pode se encontrar. Se você está tranquilo, chega o peido e o enrola em seus jogos, usando-o de toda forma possível. Eles têm um dom natural para serem os manda-chuvas e os líderes da humanidade. São os que chegam a matar para conservarem o poder.

"Entre essas categorias estão os vômitos. Neutros, nem se impõem nem se deixam guiar. São presunçosos, ostentosos e exibicionistas. Dão a impressão de que são grande coisa, mas não são nada. Tudo é alarde. São caricaturas de pessoas que pensam ser muito, mas, se você não lhes presta atenção, eles se desfazem em sua insignificância".

Alguém da plateia lhe perguntou se pertencer a uma dessas categorias é uma característica obrigatória, quer dizer, uma formação concreta em nossa luminosidade.

Respondeu:

"Ninguém nasce assim, nós nos fazemos assim! Caímos em um ou outra dessas classificações por causa de algum incidente mínimo que nos marcou quando éramos crianças, como pode ser a pressão de nossos pais ou outros fatores imponderáveis. A partir daí, e conforme crescemos, vamos nos envolvendo de tal modo na defesa do eu, que chega um momento em que nós já não nos lembramos do dia em que deixamos de ser autênticos e começamos a atuar.

Assim, quando um aprendiz entra no mundo dos bruxos, sua personalidade básica está tão formada que já nada pode fazer para desfazê-la e só lhe resta rir de tudo isso”.

"Mas, apesar de não ser nossa condição congênita, os bruxos podem perceber o tipo de importância que nós nos concedemos através de seu ver. E isso é possível porque modelar nosso caráter durante anos produz deformações permanentes no campo energético que nos cerca".

Carlos continuou explicando que a auto-importância se alimenta da mesma classe de energia que nos permite "ensonhar". Portanto, perdê-la é a condição básica do nawalismo, porque libera para nosso uso um excedente de energia, porque sem essa precaução, o caminho do guerreiro poderia nos converter em umas aberrações.

"Isso é o que aconteceu a muitos aprendizes. Eles começaram bem, acumulando sua energia e desenvolvendo suas potencialidades. Mas eles não perceberam que, à medida em que conseguiam poder, eles também nutriam em seu interior um parasita. Se nós vamos ceder às pressões do ego, é preferível que o façamos como homens comuns e normais, porque um bruxo que se considera importante é a coisa mais triste que há.

"Considerem que a importância pessoal é traiçoeira; pode se disfarçar debaixo de uma fachada de humildade quase impecável porque não tem pressa. Depois de uma vida inteira de práticas, basta um mínimo descuido, um pequeno deslize e ali está ela, novamente, como um vírus que foi incubado em silêncio ou como essas rãs que esperam durante anos debaixo da areia do deserto e com as primeiras gotas de chuva despertam de sua letargia e se reproduzem”.

"Tendo em conta sua natureza, é o dever de um benfeitor esporear a importância do aprendiz até que esta exploda. Não pode ter piedade. O guerreiro deve aprender a ser humilde pelo caminho mais árduo ou não terá a menor oportunidade frente aos dardos do desconhecido”.

"Dom Juan fustigava seus discípulos até a crueldade. Ele nos recomendava uma vigilância de vinte e quatro horas diárias para manter distância dos tentáculos do eu. Claro que não lhe dávamos a devida atenção! Salvo Eligio, o mais adiantado dos aprendizes, todos os outros se entregavam de um modo vergonhoso às nossas tendências. No caso da Gorda isso foi fatal".

Contou a história de Maria Helena, uma discípula adiantada de don Juan que havia desenvolvido um grande poder como guerreira, mas que não soubera controlar os maus hábitos de sua etapa humana.

"Ela pensou que tinha tudo sob controle e não era assim. Ainda lhe restava um interesse muito egoísta, um apego pessoal, esperava coisas do grupo de guerreiros e isso acabou com ela”. "A Gorda se sentia ofendida comigo porque me considerava incapaz de dirigir os aprendizes até a liberdade e nunca me aceitou como o novo nagual. Uma vez que a força diretiva de DJ desaparecera, ela começou a reprovar minha insuficiência, ou melhor, minha anomalia energética, sem levar em consideração que isso era um comando do espírito. Pouco depois, ela se aliou com os genaros e as irmãzinhas e começou a se comportar como se ela fosse a líder do grupo. Mas o que terminou de exasperá-la foi o sucesso público de meus livros”.

"Certo dia, em uma explosão de auto-suficiência, reuniu a todos, prostrou-se diante de nós e gritou: 'Bando de idiotas! Eu me vou!”.

"Ela conhecia o exercício do fogo interior, por meio do qual podia mover seu ponto de aglutinação até o mundo do nagual para se reunir com don Juan e don Genaro. Mas naquela tarde ela estava muito agitada. Alguns dos aprendizes tentaram acalmá-la e isso a enfureceu ainda mais. Eu não podia fazer nada. A situação havia sobrepujado meu poder. Depois de um esforço brutal e nada impecável, acometeu-a uma embolia cerebral e caiu morta. O que a matou foi sua egomania".

Como moral desta história estranha, Carlos acrescentou que um guerreiro nunca se deixa levar até a loucura, porque morrer de um ataque de ego é o modo mais estúpido para se morrer.

"A importância pessoal é homicida, trunca o livre fluxo da energia e isso é fatal. Ela é a responsável pelo nosso fim como indivíduos e chegará o dia em que nos elimine como espécie.

Quando um guerreiro aprende a deixar sua auto-importância de lado, seu espírito se abre, jubiloso, como um animal selvagem que é liberado de sua jaula e posto em liberdade”.

"A importância pessoal se pode combater de diversos modos, mas primeiro é necessário saber que está aí. Se você tem um defeito e o reconhece, já é meio caminho andado!”.

"Assim, antes de mais nada, deem-se conta disso. Peguem uma cartolina e escrevam nela:

'A importância pessoal mata', e pendurem-na no lugar mais visível da casa. Leia essa frase diariamente, tente se lembrar dela no seu trabalho, medite sobre ela. Talvez chegue o momento em que seu significado penetre em seu interior e você decida fazer algo. O dar-se conta é por si mesmo uma grande ajuda porque a luta contra o eu gera seu próprio impulso.

"Ordinariamente, a importância pessoal se alimenta de nossos sentimentos, que podem ir do desejo de estar bem e ser aceito pelos outros, até a arrogância e o sarcasmo. Mas sua área de ação favorita é a compaixão por si mesmo e pelos demais. De forma que para espreitá-la, temos, acima de tudo, que decompor nossos sentimentos em suas mínimas partículas, descobrindo as fontes das quais se nutrem”.

"Os sentimentos raramente se apresentam em uma forma pura. Eles se disfarçam. Para os caçar como coelhos, nós temos que proceder sutilmente, com estratégias, porque eles são rápidos e não se pode entrar em acordo com eles”.

"Podemos começar com as coisas mais evidentes, como por exemplo: por que me levo tão a sério? Quão apegado estou? A que dedico meu tempo? Estas são coisas que nós podemos começar a mudar, acumulando energia suficiente para liberar um pouquinho de atenção. E isso, por sua vez, permitirá que entremos mais no exercício”.

"Por exemplo, em vez de passar horas a fio vendo televisão, indo fazer compras ou conversando com nossos amigos sobre coisas transcendentais, nós poderíamos dedicar uma pequena parte desse tempo para fazermos exercícios físicos, recapitular nossa história ou então ir sozinhos a um parque, tirar os sapatos e caminhar descalços na grama. Parece algo simples, mas com essas práticas nosso panorama sensorial se redimensiona. Recuperamos algo que sempre esteve aí e que tínhamos dado por perdido”.

"A partir dessas pequenas mudanças, podemos analisar elementos mais difíceis de detectar, nos quais nossa vaidade se projeta até a demência. Por exemplo: quais são minhas convicções? Eu me considero imortal? Sou especial? Mereço que me considerem? Este tipo de análise entra no campo das crenças, a mera fortaleza dos sentimentos. Assim devem empreender essa análise através do silêncio interno, estabelecendo um fervoroso compromisso com a honestidade. Caso contrário, a mente fará uso de todo tipo de justificativas".

Carlos acrescentou que estes exercícios devem ser feitos com um sentido de alarme, porque, verdadeiramente, trata-se de sobreviver a um poderoso ataque.

"Percebam que a importância pessoal é um veneno implacável. Nós não temos tempo e o antídoto é a urgência. É agora ou nunca!”.

"Uma vez que vocês tenham dissecado seus sentimentos, devem aprender como canalizar seus esforços mais além da faixa do interesse humano, até o lugar da não piedade. Para os videntes, esse lugar é uma área de nossa luminosidade tão funcional como é a área da racionalidade. Nós podemos aprender a avaliar o mundo de um ponto de vista desapegado, da mesma que nós aprendemos, quando crianças, a avaliá-lo a partir da razão. Só que o desapego, como ponto de enfoque da atenção, está muito mais próximo da realidade energética das coisas”.

"Sem essa precaução, a convulsão emocional resultante do exercício de espreitar a nossa auto-importância pode ser tão dolorosa que o aprendiz pode ficar louco ou ser levado ao suicídio. Quando ele aprender a contemplar o mundo a partir da não compaixão, intuindo que por trás de toda a situação que implique um desgaste energético há um universo impessoal, o aprendiz deixa de ser um nó de sentimentos e se torna um ser fluido”.

"O problema da compaixão é que nos obriga a ver o mundo através da auto-indulgência.

Um guerreiro sem compaixão é uma pessoa que conseguiu se colocar no centro da frieza e ele já não se compadece no "pobrezinho de mim". É um indivíduo normal, só que, como não tem piedade por suas fraquezas nem pelas das demais pessoas, conseguiu aprender a rir de si mesmo.

"Um modo de definir a importância pessoal, é entendendo-a como a projeção de nossas fraquezas através da interação social. É como os gritos e atitudes prepotentes que adotam alguns animais pequenos para dissimular o fato de que na realidade eles não têm defesas. Somos importantes porque nós temos medo, e quanto mais medo, mais ego.

"Porém, e afortunadamente para os guerreiros, a importância pessoal tem um ponto fraco:

ela depende do reconhecimento para subsistir.

Como a pipa, ela precisa de uma corrente de ar para ascender e ficar no alto, caso contrário, cai feito pedra e se quebra. Se nós não damos importância à importância, esta se acaba.

"Sabendo isto, um aprendiz renova suas relações. Aprende a escapar daqueles que o consentem e frequenta a esses a que nada humano lhes importa. Busca a crítica, não a lisonja. De vez em quando começa uma vida nova, apaga sua história, muda nome, explora novas personalidades, anula a sufocante persistência de seu ego e leva a si mesmo a situações limite nas quais o autêntico é forçado a assumir o controle. Um caçador de poder não tem piedade, não busca o reconhecimento ante os olhos de ninguém”.

"A não compaixão chega de surpresa. A ela se intenta pouco a pouco, durante anos de pressão contínua. Mas acontece de repente, como uma vibração instantânea que quebra nosso molde e nos permite olhar para o mundo a partir de um sorriso sereno. E pela primeira vez em muitos anos, sentimo-nos livres do terrível peso de sermos nós mesmos e vemos a realidade que nos cerca. Uma vez aí já não estamos sozinhos, um incrível empurrão nos espera, uma ajuda que vem das entranhas da Águia e nos transporta por um milissegundo a universos de sobriedade e sensatez”.

"Ao não termos compaixão, podemos enfrentar com elegância o impacto de nossa extinção pessoal. A morte é a força que dá ao guerreiro valor e moderação. Só olhando através de seus olhos nos damos conta de que nós não somos importantes. Então ela vem viver ao nosso lado e começa a nos transmitir seus segredos”.

"O contato com sua transcendência deixa uma marca indelével no caráter do aprendiz.

Este entende de uma vez por todas que toda energia do Universo está conectada. 

Não há um mundo de objetos que se relacionam entre si através de leis físicas. O que existe é um panorama de emanações luminosas inextricavelmente ligadas, no qual nós podemos fazer interpretações na medida em que o poder de nossa percepção o permita. Todas as nossas ações contam, porque elas desencadeiam avalanches no infinito. Por isso nenhuma vale mais que outra, nenhuma é mais importante que outra”.

"Essa visão corta de uma vez só a tendência que nós temos de ser indulgentes com a gente mesmo. Ao ser testemunha do vínculo universal, o guerreiro cai presa de sentimentos desencontrados. 

Por um lado, júbilo indescritível e uma reverência suprema e impessoal por tudo que existe. Por outro, um sentido de fim inevitável e tristeza profunda que nada tem que a ver com a auto-compaixão, uma tristeza que vem do seio do infinito, uma rajada de solidão que nunca desaparece”.

"Esse sentimento depurado dá para o guerreiro a sobriedade, a fineza, o silêncio de que ele precisa para intentar aí onde todas as razões humanas fracassam. Em tais condições, a importância pessoal fenece por si mesma".

Encontros com o Nagual, baixe o livro AQUI!

Quando começamos a destruir o mundo?

Quando começamos a destruir o mundo? Isso não é de agora, é um processo histórico. O mundo vem sendo destruído sistematicamente há muito tempo. Chegamos num ponto no qual podemos destruí-lo milhares de vezes através dos estoques que temos de bombas nucleares. Chegamos a um ponto no qual só não destruímos o mundo de uma vez porque ninguém ganharia com isso, com um guerra nuclear. E o que evita a destruição é o chamado equilíbrio do terror, um equilíbrio tenebroso, feito de ameaça, medo e potencial destruição total . Mas se não destruímos o mundo de uma vez, vamos destruindo-o aos poucos, vamos destruindo a nós mesmos gradualmente, vamos destruindo a Natureza.

Natureza, palavra interessante. Consultando o novo pai dos burros, a IA, descobrimos que natureza vem de nascer ou força geradora, mas depois passou a significar a parte do mundo que não depende do homem. E aí está a nossa pista para respondermos a nossa pergunta inicial: quando começamos a destruir o mundo?

A resposta nos parece óbvia: quando nos distanciamos da Natureza, da força geradora, do poder que gera a vida. Mas não nos distanciamos apenas da natureza externa, o meio ambiente, nos distanciamos da nossa natureza interna, de nós mesmos, de nossa essência, de nosso ser. Ficamos fragmentados, divididos, alienados de nós mesmos. Aí começou o processo de destruição da Natureza, em dois vetores, para fora e para dentro.

Diferentes mitos revelam isso e todos giram em torno do distanciamento do humano de um paraíso, de um éden, da própria divindade e, portanto, de nós mesmos. Quando isso aconteceu? Quando alguém se distanciou da Natureza e se fez senhor de um pedaço de terra, de rio, de lago, de mar e chamou isso de meu? Quando o mundo tornou-se coisa, propriedade e o próprio humano se fez dono, apesar de ser mortal e não ser dono do próprio corpo? Quando houve a separação entre o humano e a Natureza? Quando essa dualidade se estabeleceu? Quando essa ignorância fundamental (avidyã) surgiu?

Também podemos perguntar: como ela surgiu? Ou ainda: quem a fez surgir? E prosseguindo: por que razão ela surgiu? E mais, como desfazer essa ignorância fundamental? Como desfazer essa separatividade entre o humano e a Natureza? Qual a própria natureza dessa separatividade? Ela é mental? É uma ilusão mental tão arraigada que nela se baseia a religião, a ciência e a filosofia do homem moderno ocidental que pensam o humano e a natureza como distintos entre si?

Lembramos de Matrix, o primeiro filme, de 1999, e lá vemos que na luta entre homens e máquinas a própria Natureza é que paga o preço dessa guerra, sendo destruída e o que resta de natureza para ser explorada é o próprio humano que torna-se um recurso para sobrevivência do império das máquinas, que criam um sonho, uma ilusão que é a base da própria Matrix.

Nesse filme há uma reflexão crítica, desafiadora e incômoda feita por um agente da Matrix, sobre a própria natureza dos humanos, que em vez de se comportarem como mamíferos, como seria natural, passam a agir como um vírus, parasitando e destruindo tudo o que tocam. Quando deixamos de ser mamíferos e passamos a nos comportar como vírus? Quando perdemos a nossa natureza primeva, original e adquirimos uma segunda natureza não humana e viral?

Por causa disso as tradições nativas, os diferentes Xamanismos, em especial o Guerreiro, dizem que o ser humano encontra-se doente. Mas qual é a nossa doença? O egoísmo, a auto-importância, a heresia da separatividade, a avidya. Mas como ela surgiu? Como fomos infectados? Como nos curarmos antes que, devido a essa doença, destruamos o mundo inteiro? Como destruir a doença sem matar o doente? Essa é uma tarefa individual, pessoal e intransferível. Uma responsabilidade individual.

Mas diante disso surge uma outra questão: é possível a cura no nível coletivo? E se tal não for possível qual seria a solução? Essa humanidade doente matou ou não deu ouvidos para os diversos homens que propuseram uma cura para a alma humana: Ishô, Buda Shakyamuni, Krishna, entre tantos outros.

Qual o destino de um doente terminal que não quer curar-se e que ameaça com a sua doença todos os seres vivos do planeta?

Modak

Sinal de Fumaça

Lamas e Xamãs (Atualizado e com notas)

           Sempre lembrando…          Não esqueçam de ver o sorriso despreocupado nestas palavras.      Escrever ideias tem a limitação de p...