quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Bruxaria, Magia e Xamanismo - parte 4 - por Nuvem que Passa

Percepção versus Descrição

Quando olhamos para o mundo a nossa volta notamos que ele tem um contexto, uma historicidade. Refiro-me ao mundo social, ao mundo tal qual vemos em nossas relações cotidianas. As pessoas em nossas vidas teceram eventos, conosco e em suas próprias esferas, que criam uma historicidade, um conjunto de fatores que nos ajuda a ‘localizar’ pessoas e eventos na nossa percepção. É uma grande magia isso que fazemos, tecer eventos na vasta e emaranhada teia da existência e dar uma solução de continuidade a isto, criando o que chamamos de ‘realidade sensível’.

É muito importante libertarmos nossa memória das falsas histórias e falseados mitos que nos impuseram. Tal liberdade não é atingida apenas pelo intelectual. 

Temos que usar MAGIA para podermos ir além. Precisamos de ritos que reatualizem o mito que perdemos, nosso mito original, que foi oculto de nós pelo falso brilho da personalidade que em nós criaram. Não somos apenas o que fizeram de nós.

Somos entidades perceptivas, percebemos.

Aquilo que é percebido nos foi ensinado.

A percepção em si não, mas a interpretação sim.

Peirce¹ nos oferece uma abordagem segundo a qual em um primeiro instante temos a percepção plena do evento, sem o ‘enformamento’ das palavras, do conceitual. Depois vamos conceituar, vamos significar. A secundidade, o momento no qual usamos os signos linguísticos para nos comunicarmos com nós mesmos, o diálogo interno que nos leva a compreender e sentir o mundo tal qual o fazemos, é também um limite.

Linguagem implica código, algo que compara o que é sentido-percebido, com o conjunto de memórias já existentes. Assim, os Caminhos profundos insistem que, na memória, no já vivido, não há o novo. 

O novo só pode ser criado na magia do instante presente.

Por isso a ‘iluminação’, o ‘despertar’, o Satori é sem palavras. Na percepção há só presença, já na interpretação, vamos usar palavras-conceitos para designar, aludir, apontar para o que desejamos expressar.

O diálogo interno de uma época possui matizes comuns, bandas de variação mensuráveis entre os membros de uma mesma nação. Mas, no mundo em que estamos, diferentes formas de ser em várias nações foram sistematicamente destruídas. Etnias nativas inteiras foram cruelmente dizimadas ou escravizadas. E ainda hoje, pastores e diversos pregadores das religiões que servem aos conquistadores continuam escravizando os povos nativos em corpo e alma.
Temos esse condicionamento como herança, por isso é tão importante a quem vai trilhar o Caminho da MAGIA, do XAMANISMO ou da BRUXARIA ter sua jornada pessoal de poder, onde encontra consigo mesmo, com suas fraquezas e forças e descobre-se um ente perceptivo livre de qualquer condicionamento, de qualquer rótulo que lhe queiram dar.

Em todos os caminhos temos que ter a coragem de morrer para o velho para renascermos de nós, por nós e para nossa meta. Quando um certo momento chega, se torna redundante continuar a usar termos como ‘magista’, ‘xamã’ ou ‘bruxo(a)’, pois vamos compreender o que está além das palavras, coisas que só com o brilho do olhar, o tom de voz, o vento presente e respiração sincrônica se pode transmitir de verdade. No mais, como fazemos aqui, é só aludir, só apontar para algo que nos toca vindo da ETERNIDADE. Algo que a civilização de escravos(as) foi levada a esquecer mas que nós lembramos. E buscamos agir com o que lembramos e aprendemos.

Assim, MAGIA, XAMANISMO e BRUXARIA são caminhos de liberdade que nos auxiliam a recuperarmos a nós mesmos, caminhos onde o PODER é acessível. Mas não somos ‘donos(as)’ desse poder! Somos apenas acessíveis a Ele. Esses caminhos foram perseguidos e são ainda hoje desmerecidos e injuriados. Por que o sistema que cria escravos teme tanto tais caminhos?

São caminhos onde a realidade é outra. Vasta como uma cebola de incontáveis camadas em que tudo a que nos referimos como realidade são apenas camadas. São caminhos que redespertam em nós nosso poder interior e o brilho de nossos olhos quando estamos de fato vivos e não sobrevivendo. Isso sempre incomodou aqueles que pactuam com a morte para ter poder sobre os vivos.

Dividir para governar tem sido a meta destes conquistadores. Povos nativos sendo destruídos porque realizaram alianças equivocadas, líderes inescrupulosos e manipuladores, sequiosos de poder momentâneo, levaram seus povos a minar a força dos vastos impérios como o Andino. A praga comportamental que se abateu sobre a humanidade em ação. Impérios! Gerando ódios que enfraquecem as nações quando estas mais precisam ser fortes. Assim o ocaso do Mundo Ancestral veio e a longa noite começou. Mas a noite segue seu curso e há algo de alvorada no ar

Hoje a espécie humana tem seu estilo de diálogo interno moldado pelo fenômeno da interação entre culturas diversas, via meios de comunicação para as massas ou ainda pela internet.

Portanto, avaliar a MAGIA, o XAMANISMO e a BRUXARIA a partir de nossa época é delicado. Ainda estamos recuperando a amplitude perceptiva necessária para realmente entender os profundos caminhos que se escondem atrás de tão incompreendidos rótulos. Estes caminhos carregam mensagens secretas que sobrevivem apesar de toda a perseguição. Elos com outros povos e mundos que, ao contrário do que a falsa história conta, não foram destruídos ou sumiram, mas apenas mudaram para outra camada da ‘cebola’. A partir da qual nos chegam sinais constantes.

Mas tais sinais são deturpados pelos conquistadores. Histórias despropositadas encobrem a real origem de tais sinais. Nossos ancestrais não foram destruídos, partiram e nos acenam de outras ilhas de realidade entre o vasto Mar da Consciência. Os carcereiros tentam nos iludir;: - Não é nada! É Vênus brilhando. É um balão meteorológico. Estais louco! Vamos te dar remédios para que voltes ao ‘normal’! Estas e outras formas são meios efetivos de impedir que percebamos a realidade mais ampla e os sinais que nos chegam. Nascemos neste mundo onde nossos ancestrais foram escravizados. Ambos, tanto o conquistador como os conquistados, são escravos do mesmo sistema que usa os conquistadores para estender seus domínios para onde ainda se é livre. E da fusão do conquistador com o conquistado surgimos nós, híbridos, aqui, cheios de potencial mas em grande parte ignorando tudo isso.

O positivismo e outras escolas, que se declaram únicos caminhos para a compreensão efetiva da realidade, são resultantes da ERA Industrial e de uma abordagem supersticiosa da realidade. As limitações da ciência positivista ainda não foram completamente superadas, nem tão pouco os paradigmas de religiões, ainda dominantes, que foram desenvolvidas em suas formas atuais pelas elites governantes dos conquistadores e que querem agora ter sua própria historicidade, vil, mascarada, pois, em realidade, sempre foram instrumentos da conquista.

Mas então cerraremos fileiras com os ateus, os agnósticos, os que em nada creem? Estaremos com os cínicos, que descrentes de tudo negam a própria felicidade para apenas com sarcasmo aplaudir a destruição do mundo deixando que a indolência lhes encha de intelectualizados argumentos para não agir? Somos meros acidentes cósmicos de algo sem nenhum sentido? O que é crer para nós?

Confiar cegamente em um pai/mãe psicológico que sane nossas carências e oculta de nós o fato de nossa solitude frente a incomensurável eternidade que envolve a nós, efêmeras criaturas?

Os(as) Xamãs, Bruxos(as) e Magistas de todas as eras que nos antecederam foram sempre homens e mulheres que souberam se ligar a outra linhagem de conhecimento, tão sistêmica como a ciência, ampla como a filosofia, mística e profundamente artística. Tinham uma abordagem da REALIDADE bem distinta, mas totalmente pragmática e efetiva, isto é, seu conhecimento se traduzia em ATOS de PODER e não apenas em elucubrações teóricas. Tal Arte-Ciência tinha no ser humano seu instrumento de prospecção e avaliação de outras realidades perceptivas.

Em tais caminhos é o ser humano que se amplia e se desenvolve para investigar outros mundos. Não com naves pretendemos ir a outros mundos. Não queremos minerar outros mundos, queremos aprender mais.

XAMÃS, BRUXOS(AS) e MAGISTAS vão a outros mundos pela força de seus conhecimentos. Conhecimento que faz parte da herança ancestral presente em um caminho pleno. Conhecimentos que em câmaras de torturas a Inquisição quis roubar-nos.

Foi com o que escorreu pelo vão dos dedos ao apertar com força a substância viva do conhecimento que protegia os capturados que se construiu esta civilização industrial, que explora e subjuga a Natureza, nossa Mãe de fato, não de crença. Esta civilização que aí está é fruto de um conjunto de atitudes tomadas por todas as pessoas que dela fazem parte.

Assim temos vários grupos lutando pelo poder de dizer às pessoas como devem sentir e pensar o mundo. Este estado de heteronomia existencial é estimulado e facilitado de formas as mais diversas, basta notar como o mundo está hoje.

Heterônomo, ausente de si mesmo, fora de eixo, suicida. Sim suicida, pois o que é uma civilização que armazena formas de se destruir? Este tipo de condicionamento gera bons servos ao sistema, mas os critérios cognitivos, os paradigmas da MAGIA, do XAMANISMO e da BRUXARIA são muito distantes desses hoje usados. E não são poucos aqueles que usam essas denominações como rótulos para tentar legitimizar caminhos cheios de caprichos que mais prendem do que libertam.

Existem pseudo-caminhos de magia, de xamanismo e de bruxaria, mas estamos falando aqui de MAGIA, de XAMANISMO e de BRUXARIA e, em tais caminhos, a conquista da autonomia existencial é necessária, é fundamental, pois quem viaja por muitos mundos deve estar sempre pronto a lidar com as mais inesperadas situações. É a habilidade de reagir com tranquilidade e foco em qualquer situação que permite ao(a) magista, ao(a) xamã e ao(a) bruxo(a) serem realmente a expressão do caminho que trilham. Somos unos com o caminho apenas quando o expressamos pela força de nossos atos. A força de nossos atos é medida pela veracidade de nossas vidas, pelo estado de nosso corpo, pela força de nossa mente, pela habilidade de harmonizar as emoções até que surja em nós o sentimento pleno.

A BRUXARIA, a MAGIA e o XAMANISMO são caminhos de essência. Toda vez que alguém trilha por ego, pelos valores mesquinhos e ausentes de significação efetiva da personalidade, cria confusões para si e para outros. Temos um mundo confuso à nossa volta, pois foi gerado a partir da luta entre personalidades em busca do poder, uns sobre os outros, sobre todos. Grupos querendo subjugar grupos, dominar em vez de interagir criativamente.

Nesta guerra de dominação, grupos foram muito além de seus próprios limites naturais e se impuseram como império global e, pouco a pouco, estamos assistindo as nações nativas, fonte de energia sonhadora para o mundo, serem destruídas. O mundo é sustentado pelo sonho dos povos, se padronizarmos demais os sonhos do mundo, ele se desintegrará por excesso de emanações da mesma banda.

De certa forma parece que esta civilização se matará de tédio. Não podemos mais deixar que as civilizações imperialistas dominem nosso sonhar, dominem nossas visões.

Somos herdeiros dos povos nativos, é hora de recuperarmos as antigas visões, é hora de vivermos dentro de nosso modo de vida. Garanto-lhes que é possível. Basta coragem, e foco e o caminho se revelará. Este é o desafio.

Qual é sua VISÃO?

Vive de acordo com seu Coração?

Sua mente é sua auxiliar em investigar o mundo ou uma tirana que lhe impõe uma visão pronta da realidade?

A qualidade das respostas a estas perguntas revela muito sobre tuas chances de compreender de fato o que abordamos aqui. Pois se a MAGIA, o XAMANISMO e a BRUXARIA tem algo a ensinar é para seres inteiros ou que buscam de fato se tornarem plenos.

Existem dois níveis de MAGIA, de XAMANISMO e de BRUXARIA. Em um nível são caminhos para nos reintegrarmos a realidade mais ampla da existência, para nos recuperarmos desse estado robótico sonambúlico em que fomos colocados. Um caminho de reencontro, um religare. Depois que ‘acordamos’, que morremos e nascemos de novo a vida continua. Há todo um novo desafio agora. Lidar com o mundo sem pertencer ao mesmo. Deixar de ser escravo e ao mesmo tempo evitar ser tolo a ponto de se tornar um alvo dos neo-inquisidores, que, muito mais sutis e aparelhados, continuam em ação. É aí então que surge o segundo nível da MAGIA, BRUXARIA e XAMANISMO. Aquele que ensina conhecimentos mais sutis e profundos. A maior parte do material que existe publicado fala da primeira fase do trabalho, do contato com estes caminhos.



Notas

¹ Charles Sanders Peirce (10 de setembro de 1839 – 19 de abril de 1914) foi um cientista, matemático, lógico e filósofo estadunidense, às vezes conhecido como “o pai do pragmatismo”. De acordo com o filósofo Paul Weiss, Peirce foi “o mais original e versátil dos filósofos americanos e o maior lógico dos Estados Unidos”. Bertrand Russell escreveu que “ele foi uma das mentes mais originais do final do século XIX e certamente o maior pensador americano de todos os tempos”. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à lógica, matemática, filosofia e, principalmente à semiótica.


 

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