terça-feira, 18 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Francisco Plata

As Testemunhas do Nawal

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com Francisco Plata

_ Quando você conheceu Carlos Castaneda?

_ Meu primeiro contato físico não foi com Carlos, e sim com Dom Juan. Tudo começou no ano de 73, graças a uma amiga minha chamada Zuleica. Em certa ocasião, estivemos conversando sobre a técnica de T’ai Chi Chuan, pois eu dava aulas dessa arte. Ela gostou muito do que eu lhe disse, e, em reciprocidade, me falou do primeiro livro de Carlos – a quem afetuosamente chamava Carlitos – que acabava de sair em inglês. O tema me interessou, ela me emprestou o livro, eu o li de uma vez só e assim conheci as ideias do nawal.

Naquela época, eu havia percorrido sociedades, grupos esotéricos e escolas de todo tipo; havia lido um bom número de livros sobre ocultismo e magia, mas em nenhum deles encontrava um paralelo com o que eu estava vivendo. Então conheci o livro de Carlos, e este sim se ajustava a minhas experiências pessoais! Fascinou-me de imediato.

Zuleica era amiga de uma curandeira, a mestra Magdalena, que era uma vidente extraordinária; assim que o via, sabia tudo sobre você e suas curas eram quase milagrosas. Por exemplo, cada vez que morria sua mãe, que já era muito idosa, ela ia para o outro lado e a trazia de volta. Assim fez umas cinco ou seis vezes, até que um dia a mãe lhe pediu:

“Deixe-me ir, minha filha, porque quero seguir meu caminho.”

Só então a deixou partir.

Segundo soube, a mestra Magdalena era muito amiga de Dom Juan Matus; já ouvi dizer até que era sua comadre.

Três anos mais tarde, em 73 ou 74, Carlos deu uma série de conferências na casa de Milosh. Este homem, de sobrenome Trnka, era um acupunturista de origem checa que se interessava muito pela cultura pré-hispânica e o mundo mágico. Como já era seu amigo, ele me ligou e me disse, com seu sotaque checo:

“Mestrrrre, venha parrra cá, porrrque Carrrlitos vai virrr.”

Assim o conheci. No total, foram seis reuniões de três ou quatro horas cada uma.

_ O que você se lembra desses encontros?

_ O primeiro que salta à memória é a facilidade com que Carlitos prendia sua atenção em uma conversa muito interessante, ao mesmo tempo amena e divertida. Por outro lado, transparecia a enorme profundidade do ensinamento do qual ele era herdeiro.

Na realidade, os ensinamentos de Dom Juan não podem se separar da tradição atualmente representada pelos concheros do México. Os concheros são a sobrevivência da religião asteca; chamam-se assim porque tocam a concha, um alaúde cuja caixa de ressonância é feita de uma concha de tatu. Em seus cantos, eles falam de como nasceu sua tradição; afirmam que a “pedra fundamental” foi levantada na cidade de Tlaxcala. Isso se refere à adaptação que fizeram no início do século XVI das tradições pré-hispânicas. Não significa que trocaram uma religião por outra, e sim que se adaptaram estrategicamente à realidade da colônia.

Os sábios e sacerdotes indígenas foram tão inteligentes que desde o primeiro momento encontraram na religião cristã os elementos que eram comuns à sua própria tradição, e mudaram os símbolos. Em grande parte, o que Carlos fez foi tomar esses símbolos e decodificar o conhecimento que protegiam, dando-lhe uma forma abstrata, de acordo com a nossa época. Entretanto, você deve levar em consideração que o que ele maneja não é o saber cultural pré-hispânico, mas o conhecimento dos bruxos de sua linhagem. A cultura é uma coisa, a sabedoria dos nawais, outra. É o mesmo que acontece entre nós. Imagine se todo mundo conhecesse a obra de Einstein! Não, em todas as culturas, só uns poucos são capazes de compreender o saber esotérico. Os nawais sempre foram uma elite, e, além de tudo, escondida.

Com este assunto ocorre o mesmo que com os aprendizes: a técnica dos nawais é transmitir a informação em dois níveis de consciência, dos quais um permanece oculto e o outro se faz público. Depende do aprendiz recuperar a totalidade do ensinamento mediante exercícios de introspecção e alinhamento.

Carlos assegurou que, depois daquele famoso salto no abismo, ele não se lembrava de grandes porções do que lhe havia ensinado Dom Juan; as partes mais importantes se apagaram de sua memória. Nem sequer tinha certeza de que o que havia acontecido com ele era verdade ou somente imaginação. Acrescentou que ele vinha ao México precisamente para recuperar o ensinamento.

Um exemplo de sua relação com a tradição é a regra.

A regra é o aspecto central do nawalismo,

pode-se definir como o mapa das ações dos grupos de bruxos.

Em uma das reuniões, Carlos nos confessou como havia conseguido recordar esse tema. Aconteceu que ele teve que vir para tramitar a publicação de seu primeiro livro em espanhol. Aproveitou para dar uma entrevista coletiva, na qual grudou nele um repórter que queria aprender tudo, e ia para todo lado com ele. Este o levou para conhecer os dançarinos concheros, que estavam ensaiando. Nesse momento, o Espírito se manifestou:

Um dos louvores dizia: “Que viva, que viva o senhor Santiago, porque ele é o mensageiro dos quatro ventos!” Carlos conta que, quando ouviu isso, teve um choque, sua memória profunda se abriu e começou a recordar: veio-lhe o ditado completo da regra.

Sentindo-se muito emocionado e sumamente agradecido, decidiu dar várias palestras, e assim o propôs a Andrés Segura.

_ Pode nos explicar um pouco mais sobre a regra?

_ Os bruxos afirmam que tudo o que ocorre no Universo tem regras; é assim que as coisas funcionam. Aplicadas às atividades que eles fazem, essas regras formam a teoria do grupo do nawal – um grupo de práticas xamânicas – cujo propósito é dar um salto coletivo para a liberdade.

Mas há muitas outras aplicações da regra, milhares. Por exemplo, na medicina tradicional vemos que as pessoas se afetam mais facilmente segundo a direção de sua energia: os homens de ação ficam doentes do coração e do intestino delgado; os eruditos, do estômago e do baço, e por aí vai. A regra é a base de todas as artes tradicionais, a acupuntura, o Feng Shui, as artes marciais... Podemos encontrá-la em todos os livros oraculares do mundo, tais como o Tarot, o I Ching, as runas, o Tonalámatl (calendário pré-hispânico)... De modo que a regra não é algo exclusivo dos nawais nem do México: é um assunto universal.

A regra do nawal afirma que os bruxos se organizam em grupos, em múltiplos de quatro, orientados para as quatro direções. É a organização mais natural para que a energia flua. Eu tive conhecimento dessa ordem muito antes de saber de Carlos. Através de uma investigação “histórica” (digo histórica entre aspas, porque melhor dizendo é mítica), percebi que os mestres orientais trabalhavam em grupos estruturados. Por exemplo, você tem aí os dezesseis Arhan (Arhat?) do budismo, as quatro bestas de quádruplo rosto na visão de Ezequiel, os quatro grupos de quatro cavalos com as cores das quatro direções que viu o xamã norte-americano Alce Negro quando foi iniciado. A lei do quatro aparece uma e outra vez em todas as tradições.

Naquela época, eu aplicava a regra de forma intuitiva. Agora que tenho os livros de Carlos, então digo, ah, pois é o grupo (partida)! O ensinamento do nawal, ainda que não tenha modificado essencialmente o curso de minha vida, me serviu de modelo. Seus livros vieram colocar a nota final em uma série de investigações que eu havia empreendido de forma muito pessoal.

Mas é um erro conversar sobre este assunto. A regra é algo que tem que se experimentar. E não estou certo de que alguém que não seja um nawal possa entendê-la totalmente. Isto não minimiza a importância dos guerreiros dentro de um grupo. Tal como indica o texto de Armando Torres, cada um dos participantes é tão valioso como qualquer outro para conseguir o objetivo final, que é o passo para a liberdade. O valor de cada guerreiro consiste em reconhecer-se e aceitar-se tal como é, segundo sua forma energética, e ao mesmo tempo reconhecer e aceitar os demais. Só assim podemos funcionar como indivíduos e como conjunto.

A importância da regra está em vivê-la, não em como é recebida. Há muitas tradições no mundo. Carlos a recebeu em forma oral, segundo a tradição de sua linhagem. Outros a recebem através de um sonho, experimentando com os aliados das plantas ou lendo-a em um livro. Qualquer um que estude a fundo e seriamente as artes tradicionais da terra (chamadas “o caminho com coração”) cedo ou tarde encontrará as diretrizes da energia e começará a viver de acordo com elas.

O objetivo da regra, a longo prazo, é formar um supergrupo (superpartida) e disseminar novas linhagens, para impedir que o conhecimento se extinga. Isto significa que esse desenho não só descreve um diagrama da energia, como também um processo, ou seja, um caminho de evolução. Não basta saber como se organizam os dezesseis modelos luminosos do grupo e que relações têm entre si; também é preciso entender como se sucedem os grupos, porque este é o único modo de enlaçar o tonal dos guerreiros com o tonal dos tempos.

Para isso existem os nawais de três pontas, como foi o caso de Carlos. No livro de Armando é muito clara a função destes nawais; eles não vêm para trabalhar com guerreiros diretamente, e sim para ser sementeiros de novos nawais, semeadores de grupos.

Quando Carlos afirmou: “Eu não sou um nawal tradicional de quatro pontas, só tenho três pontas”, o que significa isso? Para qualquer um que tenha uma formação em simbolismo numérico, a implicação é óbvia. Um nawal de quatro pontas está submetido à sua própria estrutura, pois o quatro é um número muito estável. Temos as quatro paredes de uma casa, os quatro lados de um terreno, as quatro pernas de uma mesa... O quatro delimita e define, e por isso mesmo, põe fim. Então, não é um número dinâmico, não se presta à transmissão a longo prazo.

Um nawal de quatro pontas pode trabalhar com guerreiros em múltiplos de quatro, porque os galhos de sua energia se orientam para as quatro direções. Mas um nawal de três pontas se complica, já que o três é um número muito dinâmico, de mudança. Os chineses o chamam san cai, “os três poderes”, e afirmam que está presente quando vai acontecer algum fenômeno. As coisas precisam de três passos para dar resultados; então, o três é um número de resultados, não tem estabilidade.

Eu me inteirei há anos da regra para os nawais de três pontas, tanto do que foi publicado quanto de outras partes. Em 1994 fui convidado a participar de uma reunião na qual se tocou nesses assuntos. Propunha-se que Carlos trabalhasse exclusivamente com líderes de grupos, naguais, e estes por sua vez com seus guerreiros. Entretanto, depois não se falou mais nesse assunto.

_ Como se formam os grupos de guerreiros?

_ Ser guerreiro é sempre(?) uma escolha(?) pessoal. O primeiro é acumular energia. A viagem para o infinito exige inteireza, em sentido literal e metafórico. Inteireza do corpo físico, da energia e do caráter. Para poder funcionar no mundo mágico, devemos ter completo e forte o ovo luminoso, e isto só se consegue recompondo a energia que foi dissipada durante anos de trato com o mundo.

_ Como remendar os buracos da nossa luminosidade?

_ Fazendo-nos conscientes dessa necessidade. Se você não percebe que tem um problema, não o supera.

O passo seguinte é recapitular. A recapitulação é um instrumento maravilhoso, que lhe ensina a recuperar parte do que perdeu e a não permitir que continue perdendo.

A primeira vez que ouvi falar desta técnica foi no âmbito das artes marciais. Nessa ocasião, ensinaram-me a fazê-la respirando em forma vertical, quer dizer, movendo a cabeça lenta e suavemente para cima ao inalar, tendo o propósito interior de recuperar a energia investida nos eventos passados. Ao exalar, ao contrário, a cabeça desce, enquanto você solta o que não é seu.

A princípio, é bom recapitular com disciplina; eu o fiz à moda antiga, dentro de uma cova. Mas uma vez que você pega o jeito, pode fazer até quando está ocupado em outra atividade. Começa com lembranças imperfeitas, mas com o tempo se tornam mais claras e precisas.

_ Como se sabe que o exercício está funcionando?

_ Bem, você se recorda do evento como uma vivência, sente alegria, tristeza, rancor, vergonha, chora, ri, fica vermelho, conforme a situação. Finalmente, nada; a situação se torna totalmente alheia, como se tivesse acontecido com outra pessoa e não com você. Desvanecem-se culpas, ódios e apegos. Resta somente você.

Isso é o começo do que Carlos chama “perder a forma humana”. Há aprendizes que pensam que, ao chegar a esse ponto, se tornarão uns monstros insensíveis, mas não é assim. Pelo contrário, ficamos terrivelmente sensíveis; a diferença é que agora não nos envolvemos.

Uma coisa que descobri enquanto recapitulava é que esta técnica nos ajuda a recuperar a vida no ensonho. Sim, há uma vida paralela da qual nos esquecemos por completo quando despertamos. Uma das tarefas do bruxo é recuperar essa outra vida. A recapitulação se faz perfeita quando aprendemos a recordar dentro do ensonho, porque, desse modo, a outra vida se faz contínua e manipulável.

O exercício da recapitulação tem que ser complementado com outros, que têm o propósito de dar flexibilidade e movimento à energia. Para isso existem os exercícios de T’ai Chi Chuan ou Chi Kung. Por exemplo, veja Milosh; ele tomou como apostolado curar utilizando a acupuntura: costumava sair aos sábados para ir a povoados próximos e colocar suas agulhas nas pessoas. Depois voltava para casa, ia dormir à noite, e acordava na terça-feira! É que estava tendo um desgaste energético enorme. Então, o doutor Kim, mestre em acupuntura, recomendou a ele e a seus companheiros, discípulos da mestra Magdalena, a prática do T’ai Chi Chuan. Eles se dedicaram a buscar alguém que lhes pudesse ensinar esta arte e foi assim que se depararam comigo.

Quando conheci Carlos, fui apresentado como mestre de T’ai Chi. Passaram-se os anos e apareceu seu sétimo livro, “O Fogo Interior”. Ao abri-lo, vejo que começa com um agradecimento – algo que não era de seu costume – a um mestre que lhe deu um caminho alternativo de exercícios para recuperar sua energia. Recordo que, ao ler isso, comentei com meus alunos:

“Que acham? Carlitos está fazendo T’ai Chi.”

Eles zombaram de mim. Mas em pouco tempo – coisa de três semanas ou um mês depois – Carlos deu uma palestra no Palácio de Minería. Chegou, sentou-se e anunciou que responderia perguntas. Sabendo que esse era seu costume, já tinha a mão levantada e lhe fiz a primeira:

“Ouça, Carlos, por que tem essa dedicatória no seu último livro?”

Respondeu-me: “Boa pergunta!”

Disse que Dom Juan deixou-lhe uma série de tarefas que exigem uma enorme quantidade de energia e, para cumpri-las, ele consumiu toda a energia de que dispunha. O pior é que não encontrava maneiras para repô-la, porque Dom Juan só lhe havia ensinado a economizar, não a ganhar. Então, dedicou-se a buscar um método que o ajudasse a resolver seu problema; praticou yoga, meditação, lamaísmo, quarto caminho, buscou por todos os lados até que encontrou um mestre que lhe ensinou uns velhos exercícios orientais, com os quais se recuperou.

E mais não disse, mas no decorrer da palestra, cada vez que se virava e me via, fazia um sutil movimento de T’ai Chi. Isso foi tão evidente para meus alunos, que todos perceberam e admitiram: “É verdade, ele está fazendo T’ai Chi!”

Nesse encontro aconteceu um fato que gostaria de contar. A maioria dos presentes era fanática por Carlos. Depois de duas horas de estar contando suas aventuras com Dom Juan, levanta-se uma senhora na primeira fila e pergunta, com sotaque espanhol:

“Diga, Carlos, quem é esse Dom Juan de que você tanto fala?”

_ E a dança conchera, tem os mesmos efeitos que o T’ai Chi?

_ Não. A dança foi delineada com uma função específica. Dá uma grande energia, mas não do mesmo tipo. A dança é um complicado ritual que lhe abre as portas do mundo mágico e o leva à segunda atenção, ao ensonho. Nós ríamos muito porque Andrés, capitão de concheros, passava o tempo todo dormindo pelos cantos. Quando havia uma reunião ou conferência, ele adotava “a pose” – uma posição de poder – e fechava os olhos; quem não o conhecia achava que ele estava dormindo. Havia inclusive os que se aborreciam com ele; Milosh sempre lhe dizia: “Andrrrés, não vou lhe convidarrr mais, porrrque você fica dorrrmindo pelos cantos!”

Mas não era assim. Ele era um grande mestre dessa arte e conseguia mover seu ponto de encaixe para o ensonho, participando das reuniões nesse outro estado de consciência. A prova disso é que, quando diziam algo com o qual não concordava, pulava e se punha a defender seu ponto de vista, como se o tempo todo houvesse estado muito consciente da conversa.

_ E a Tensegridade, tem o mesmo efeito que o T’ai Chi?

_ Veja, o ensinamento de Carlos é muito especializado. Supõe-se que, quando você chega a ele, é porque já percorreu boa parte do caminho, incluindo ter aprendido técnicas paralelas para compactar sua vitalidade. Recordo que, certa vez, na Casa Chata do antigo Colégio de Medicina, uma moça lhe perguntou:

“Carlos, como podemos recuperar a energia?”

Ele confirmou o que já nos havia dito em outras ocasiões:

“Dom Juan não me ensinou a recuperá-la. De modo que vocês devem economizá-la.”

Entretanto, depois ele mesmo apareceu com uma série de movimentos que, afirmou, eram a herança da linhagem, e que têm uma função parecida com a do T’ai Chi e outras artes orientais. A princípio lhes chamou simplesmente de passes mágicos, mas, quando a coisa se popularizou, deu-lhes um nome elegante: Tensegridade.

Minha visão pessoal é que a Tensegridade se compõe de movimentos de artes marciais adaptados. Muitos dos passes praticados pelos seguidores de Carlos atualmente são derivações. Mas os primeiros exercícios, aqueles que ele nos ensinou diretamente, são movimentos básicos de Chi Kung.

Não me atrevo a julgar Carlos, não sei se seu objetivo era que a Tensegridade se transformasse nesse exagero de movimentos que estamos vendo nos seminários. Mas me lembro que, em uma de suas últimas intervenções públicas, afirmou que as práticas massivas são somente um passo inicial, antes de enfrentar o verdadeiro desafio dos bruxos.

A Tensegridade”, disse, “foi delineada para nos dar energia, a fim de enfrentarmos as coisas realmente pesadas. É algo suave, mas é um começo.”

_ O que você opina sobre as plantas de poder?

_ O ser humano é algo muito especial porque, por um lado, tem umas possibilidades assombrosas, mas, por outro, estamos muito mal equipados por natureza. Essa falta de equipamento nos obriga a buscar coisas que nos ajudem. É tão simples como o seguinte: tenho frio e tenho que usar roupas, mas os animais não têm necessidade disso. Nós aprendemos a usar o que nos rodeia, e principalmente as plantas.

Os antigos videntes descobriram que havia três tipos principais de plantas; um deles são as plantas de poder, chamadas assim porque movem o ponto de encaixe, permitindo que se focalize outros mundos de energia. À medida que faziam experimentos, descobriram que as plantas nos põem em contato com o mundo mágico, mas que em nenhum caso podemos controlá-las cem por cento, só o que podemos é fazer uma aliança com elas.

É por isso que os xamãs tradicionais têm uma forma muito peculiar de agir com as plantas de poder, que aparece claramente referida nos livros de Carlos: eles se guiam por augúrios; usam-nas quando há sinais claros, e se não há sinais, não as usam.

O problema gerado ao redor das plantas tem a ver com o movimento da Nova Era, que incentivou o aparecimento de todo tipo de tendências místicas. Uma delas foi o uso de psicotrópicos, o que motivou que o uso xamânico das plantas terminasse sendo uma moda. As modas passam rapidamente, mas a tradição não passa.

Neste momento e lugar, diria a você que as plantas só devem ser usadas com um guia, com um mestre adequado e com um augúrio. Se você chega a elas com o mesmo espírito com que lê um livro, para saber se lhe serve ou não, é provável que não vá longe. A única opção que tem, quando lhe falta um guia, é que você mesmo seja um xamã, mas esses casos são raros.

Creio que a opinião de Carlos, baseada em sua extraordinária experiência, é suficientemente clara nesse assunto. As plantas têm poder, e esse poder tem que ser respeitado. O uso ligeiro pode nos conduzir muito longe de nossa meta, e até pode nos deixar em um âmbito do qual já não tornamos a sair, porque o trabalho com as plantas, ou melhor dizendo, com os aliados das plantas, tem uma consequência cara: consome a nossa energia.

_ De qual aspecto da obra de Castaneda você gostou mais?

_ O que sempre me causou impacto e continua causando é a impecabilidade de Dom Juan. Definitivamente, ele é o modelo a seguir. Onde vamos encontrar alguém assim? É muito difícil.

Da última vez que escutei Carlos, ele contou algo a respeito: disse que Dom Juan era um cíclico. Explicou que no mundo há seres que reproduzem a mesma estrutura de outros que existiram anteriormente, porque têm a mesma configuração luminosa, a mesma aparência, como se a história se repetisse. Esclareceu que “eram iguaizinhos, não reencarnações”.

Também nos disse que os cíclicos têm a possibilidade de obter consciência de seus predecessores. Por isso Dom Juan acumulava uma sabedoria imensa, era um clone de sábios da antiguidade

Isso foi a última coisa que o escutei dizer.

_ O que Castaneda queria dizer quando se referia a “antigos” e “novos” videntes?

_ Creio que essa é uma classificação pertinente à linhagem de Carlos e Dom Juan. Nessa linhagem há uma diferença enorme entre o modo como os antigos viam o mundo, e o modo como o veem na atualidade. Não só mudou a linguagem como também a forma mesma de trabalhar com a energia. Mas não se confunda com os termos. Os antigos videntes ainda existem; eu fui aluno de pessoas assim, pessoas que faziam práticas antigas. Mesmo em plena Cidade do México sobrevive esta casta de bruxos; não é uma questão de época, mas de atitude.

Os velhos videntes, como dizia Dom Juan, estão obcecados com assuntos como extrair poder, viajar para outros mundos, manipular um monte de aliados... São os bruxos dos contos, transformam-se em animais para atacar suas vítimas. Os bruxos modernos percebem que isso é um desperdício de esforço, cálculo e tempo. Eles se perguntam: O que eu busco realmente? Qual é meu objetivo na vida, onde quero chegar? Eles se propõem a ousadia de passar para o infinito, e para isso, não posso estar fazendo bonequinhos de cera ou costurando olhos de lagartixas!

Em contraste com os velhos videntes está o enfoque abstrato de Carlos. E também há xamãs que, como eu, tiraram das diversas tradições – a europeia, a oriental, a tolteca – e sintetizaram diversos modos da bruxaria. Eu não posso dar um nome ao que estou fazendo, não posso lhe dizer se pertenço aos antigos ou aos novos videntes. O que realmente percebo é que a humanidade está dando um passo adiante. O fato de que haja existido um Carlos Castaneda, independentemente do modo como tomemos seus ensinamentos, nos indica que é um momento de mudança na história, algo que afeta a humanidade em geral e, obviamente, os bruxos.

_ Esta etapa é comparável com a de Buda, Jesus ou Quetzalcóatl?

_ Eu não me meteria em comparações, cada momento da história é único e irrepetível. Contudo, posso afirmar que houve um momento parecido há mil e poucos anos, na cultura de Teotihuacan; e não somente ali, mas em toda a área mesoamericana. Em torno do ano 900 de nossa era aconteceu uma mudança gigantesca e brutal no ponto de encaixe da sociedade. Teotihuacan foi uma cidade construída com um objetivo muito claro: alcançar a realização total dos seres humanos. O objetivo era que os homens se transformassem em deuses. Por isso se chama Teotihuacan, “a cidade dos que se fazem deuses”. Para chegar a essa meta, foi requerido um longo processo, que frutificou finalmente quando grandes massas da população alcançaram de uma vez a auto-realização, ou a liberdade total, como chamava Dom Juan, e dispararam para outra atenção em um só dia.

Há um signo em Teotihuacan que é muito óbvio: o coração sangrando, emblema da concentração da energia e da passagem entre as dimensões. Mas este símbolo tem um detalhe interessantíssimo: em lugar de estar dividido em quatro lóbulos, tem somente três. A meu ver, é o símbolo do nagual de três pontas, da mudança radical. De algum modo, nossa época reflete as condições daquela. Este é um momento precioso, semelhante ao dos velhos toltecas. É um momento que temos que aproveitar, porque acontece raramente. Estão sendo criadas as condições para que uma enorme quantidade de pessoas possa alcançar a liberdade de uma vez só, de modo que vão preparando as malas!

_ É possível chegar à liberdade como parte de uma massa?

_ A liberdade é um assunto individual. Mas podemos integrar nossos esforços para chegar ao outro mundo como equipe de bruxos. O que verdadeiramente causa impacto aos guerreiros desta época é o evento em si, a ousadia, o arrojo, a maravilha. É como quando você vê um amanhecer ou um eclipse; não importa se outros veem contigo ou se você está sozinho. O fenômeno é maravilhoso por si, porque é algo que raramente vemos. O mesmo ocorre com as épocas de mudança. São fantásticas, somente por existir. De alguma maneira foi isso que sentiu Carlos como nagual de três pontas, o assombro de ser testemunha de um evento não visto durante muitas gerações.

_ Como vê o futuro do castanedismo?

_ O boom produzido por Carlos trouxe como consequência o “nawalismo” da Nova Era. Muitos se aproveitarão deste rio revolto, especialmente do ponto de vista econômico, para engrandecer seu ego. Como tantas outras correntes ideológicas na história da humanidade, isso terá um auge e irá desaparecendo com o tempo. Mas a tradição dos xamãs continuará exatamente como há milhares de anos.

Paralelamente, ocorrerá outro fenômeno, que já começou e que, este sim, é provável que tenha efeitos a longo prazo: o aparecimento de uma igreja nawalista. Isso não será um evento da bruxaria, mas da história da religião.

Como você sabe, no mundo houve grandes xamãs: Buda, Maomé, Jesus. Nenhum deles pretendeu fundar uma religião, só deram uma série de ensinamentos práticos para a elevação da humanidade, segundo a modalidade da época em que viveram. Porém, com o passar do tempo, seus ensinamentos se converteram em dogmas que deveriam ser aceitos para ser parte de um sistema. Com o sistema de Castaneda está acontecendo o mesmo; tem todos os elementos para formar um culto: o mito, a doutrina, as práticas, e até o lado místico. Tem também um aparelho censor: a sociedade Cleargreen, que se auto-qualifica como a única depositária da verdade castanedista. É inevitável que esta tendência siga o curso normal das crenças; de fato, já se começam a perceber os primeiros elementos.

Temos, por exemplo, o decesso do nawal. Eu não recebi a notícia em primeira mão; Eddy me deu-a, a qual lhe chegou por outro amigo. Ele imediatamente ligou para a Califórnia, e lhe avisaram que ele havia morrido de câncer do fígado, sendo depois cremado e suas cinzas lançadas no deserto. Mas, posteriormente, Cleargreen informou que Carlos não morreu, e sim “passou para o lado ativo do infinito”. Como você pode perceber, este é o dogma nuclear de um fenômeno messiânico. Observe este outro detalhe: quando Eddy ligou para averiguar sobre o decesso, Heiko atendeu o telefone (Heiko sempre se havia destacado por ser um buscador sincero). Quando Eddy o chamou pelo nome, aquele respondeu:

“Já não me chamo Heiko, agora me chamo Gavin, e me proibiram de falar com você.”

Isso é um mau sinal. É questão de tempo – quiçá uns duzentos anos, talvez menos –, mas acontecerá. É um fenômeno natural que temos visto ao longo da história. Os grandes mestres nos trouxeram a opção da liberdade, mas os discípulos a converteram em crenças. Carlos advertiu que todos os “ismos” conduzem à coação ideológica, à questão de fé, e que o nawalismo não é uma exceção.

No entanto, também é inevitável que haja pessoas e grupos que mantenham desperto o sentido da busca, à margem de que os tachem de heterodoxos.

Assim como eu peguei um fio do ensinamento e o estou trabalhando à minha maneira, não sou o único; neste momento deve haver milhares de pessoas fazendo o mesmo em toda a Terra.

Tal como diz Armando, o trabalho conjunto de Dom Juan e de Carlos assinala um momento de expansão do conhecimento que pode nos levar a uma revolução da consciência. A difusão do nawalismo através de livros está permitindo o nascimento de novas linhagens. Não sei o quanto precisam estar unidas essas linhagens ou o quanto podem atuar de forma independente; isso é algo que a prática dirá.

O importante de Carlos não é que tenha feito milagres ou que tenha partido para o infinito envolto em um halo de luz, e sim que nos deixou uma opção. Como Moisés(?), que nunca pisou na terra prometida, mas levou todo o seu povo até seus limites, ele nos apontou o caminho para a liberdade. O que acontecerá agora depende de cada um de nós, de nosso esforço e abertura, da decisão que assumirmos.

Tradução: Adriana Northrup

segunda-feira, 17 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Arturo Gutiérrez


As Testemunhas do Nawal[1]

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Texto de Arturo Gutiérrez

Um duplo é o próprio bruxo, desenvolvido através de seu sonhar. Um duplo é um ato de poder para um bruxo, mas somente um conto de poder para você - Porta para o Infinito.

O único que não tem remédio é a morte. Assim recordo as palavras de meu pai. Assim recordo minha vida antes que o Espírito batesse à minha porta. Eu não sabia que existia outra opção, não sabia que existia a liberdade, a viagem definitiva.

Em uma conferência da qual tive a oportunidade de participar, Carlos disse:

“Os bruxos não morrem, se vão em consciência, levam tudo o que são e não deixam nada. Façam como Dom Juan; ele se foi de sandália e tudo.”

Em algum momento de minha vida pensei em encontrar os mistérios da vida no longínquo Tibete; como estava equivocado! Esperava incentivo de Alberto, um velho conhecido que havia estado naquele inacessível lugar; uma vez mais, esse parecia não ser meu destino; em lugar disso, e por alguma estranha razão que escapou ao meu entendimento, Alberto chamou minha atenção para Carlos Castaneda e um grupo de pessoas que o haviam conhecido. Não pude evitar. Estava enganchado. Este grupo se reunia para executar uns poderosos movimentos outrora ensinados por ele.

Agora eu sei, o Espírito havia batido à minha porta.

***

O contato começou com Martha e sua filha Sandra; ela me confessaria ter conhecido Castaneda desde pequena, a quem ela se referia como o nawal, e como este havia expressado seu desejo de ser apresentado à sua filha; esta proposta Carlos lhe havia feito em diversas ocasiões; parece que o nawal havia visto algo nela.

Eu comecei a me interessar; comecei a ler os livros de Carlos Castaneda; Sandra me incentivava muito, tanto é assim que em uma ocasião me compartilhou o sentir do nawal com respeito ao compromisso do guerreiro:

Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.

***

Meu corpo ainda se recorda dos passes mágicos; ainda recordo o intento do grupo; anos depois os movimentos sairiam de seu hermetismo e se tornariam acessíveis ao mundo. Por Martha e Sandra conheci o grupo e Mariví; era ela que marcava a pauta a seguir com os passes mágicos; ela os havia aprendido diretamente do nawal Carlos.

Mariví nos compartilhava a sabedoria do nagual, assim como também nos deixava tarefas a executar por semana; eu a essas alturas me encontrava lendo “O Fogo Interior”, até então o penúltimo livro do nagual, meu intento estava aí, assim como também, uma vez mais, as palavras do nawal:

“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”

***

Minha atenção de ensonho estava no profundo laranja do crepúsculo; uma longa estrada se perdia no horizonte; meu tio ia dirigindo, e somente o insistente chamado do telefone, e a voz que escutei ao atender, romperia com a aparente hipnose do momento:

“Alô, aqui fala o nawal.”

Como esquecer essa voz? Havia começado a me dirigir ao meu tio, disse a ele que tinha que vê-lo. Foi então que minha atenção se desviou para encontrar a maneira de estar com meu tio quando viesse o nawal. As únicas palavras que meu último resquício de atenção resgatou foram “Castelo” e “5 horas da tarde”.

Acordei, sentia-me surpreendido; de alguma maneira tinha a certeza de que este não havia sido um sonho comum.

Não tinha conseguido despertar completamente quando nisso me assaltou a dúvida, raciocinei que não havia maneira de vê-lo nesse mesmo dia, os únicos castelos para mim nesse momento eram os da Europa, e eu vivia na Cidade do México. Era ilógico. Não tinha a mais mínima oportunidade; certamente só havia sido um sonho, de modo que voltei a dormir.

Passaria o resto do dia inquieto por causa do estranho sonho; entretanto, qual seria minha surpresa e profunda desilusão quando, já passado o dia, tive o que agora acredito ser um genuíno e fugaz momento de sensatez ao me dar conta de que sim, havia um castelo no qual eu poderia estar às 5 da tarde: o Castelo de Chapultepec da Cidade do México.

Assim que houve oportunidade comentei meu sonho com Martha e Sandra; finquei pé no detalhe que mais havia chamado minha atenção e havia ficado profundamente impregnado em minha memória: a voz.

Uma parte de mim queria considerar impossível a possibilidade do contato com o nawal; no entanto, o mais curioso foi que tanto Martha quanto Sandra me disseram que a descrição da voz que eu escutei coincidia com o timbre que caracterizava o nawal Carlos.

Por fim, quando conheci pessoalmente o nagual pude corroborar que ele era o mesmo que me visitou em inumeráveis ocasiões em meu sonho.

***

Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta foi aquele dia. Entretanto, nessa ocasião, a razão impôs suas leis e ganhou a batalha. Hoje, mais de dez anos depois, sinto que de alguma maneira reuni o poder para conectar-me com o mundo do nawal, mas não o suficiente para resistir aos implacáveis embates da razão e atender ao que, agora creio, era um encontro de poder; um encontro com o Espírito.

Uma semana mais de intento, mais relatos e mais passes mágicos. Uma nova faceta do trabalho estava na alimentação; segui certos conselhos que Mariví havia recebido do nawal; finalmente havia um princípio a seguir para poder aspirar às verdadeiras possibilidades do caminho do guerreiro:

Limpa-se o corpo, limpa-se o vínculo com o intento.

***

Recordo que íamos caminhando com um pequeno grupo de pessoas; estávamos com o nagual e o seguíamos. Caminhávamos pelo bosque, até que chegamos à borda de um precipício.

Depois de um momento, chegou a ocasião de saltar; recebemos instruções do nawal com respeito a mover o ponto de encaixe (manipular a atenção e percepção) no sonho. Só lembro de me haver lançado ao abismo e sentir o vazio de ir caindo, toda a minha energia e atenção estavam em manipular minha percepção à vontade e evitar chegar ao fundo do abismo.

Finalmente só recordo obscuridade, após o que recordo haver perdido velocidade na queda até um ponto em que descia suave e estavelmente, cada vez mais devagar, até que finalmente toquei a terra; estava em um novo lugar, e não estava sozinho; parece que havíamos mudado de realidade, havíamos mudado de sonho dentro do sonho.

O último relato que Sandra me deixou foi talvez sem grande significado, mas que sem dúvida teve o suficiente poder para deixar uma profunda marca em minha memória: o penetrante olhar do nagual; o olhar de uns olhos que na verdade diziam ter testemunhado mundos impossíveis de nomear.

***

Estava no bosque, era de dia, e o nawal estava comigo; lembro das sombras das árvores, os troncos e sua folhagem projetados sobre o solo; o contraste entre a luz do sol e as sombras era muito marcante, algo que chamaria a atenção de qualquer um.

Nunca esquecerei essas sombras, assim como tampouco esquecerei como o nawal começou a dizer que fixasse minha atenção nelas; assim o fiz. Nisso aconteceu algo completamente inesperado, as sombras começaram a oscilar de um lado para outro!

“Não perca de vista as sombras”, exigiu, “não perca a atenção!”

Comecei a perder o controle.

“Fixe sua atenção!”, insistiu.

Eu as estava perdendo, havia um extremo sentido de urgência no nawal para que mantivesse essa percepção.

Eu não estava conseguindo executar a simples, mas aparentemente importante manobra perceptiva que o nawal me estava pedindo. Não tive a energia nem o poder suficiente; o nawal se impacientou, e já desesperado me disse que o esquecesse, que esquecesse tudo, que se não conseguia fixar minha atenção que o esquecesse.

Pedi-lhe paciência, disse-lhe que ele poderia entender, que Dom Juan devia ter tido paciência com ele no princípio também. Aparentemente, não foi suficiente meu questionamento.

Naquele momento já havia perdido a atenção. Havia perdido a batalha.

***

Continuei envolvido com a mesma intensidade no caminho do guerreiro, continuei trabalhando sem cessar, no entanto, não importa o que fizesse, o nawal Carlos nunca mais voltou a aparecer em meus sonhos.

O grupo estava por se dissolver. A partir desse momento, a luta seria solitária. Entretanto, houve um último relato que conseguiu sobreviver: a morte de “La Gorda”, guerreira impecável, aprendiz de Dom Juan. Havia decidido separar-se do grupo do nagual Carlos. Havia intentado levar todo o seu corpo para o outro mundo; sofreu uma embolia após o esforço. “La Gorda” havia tido um ataque de egomania antes do intento, diante do que Martha fez um sincero questionamento:

Se ‘La Gorda’ sucumbiu à importância pessoal e morreu, o que pode nos esperar?

***

Finalmente, um dia, anos depois, voltaria a saber do nawal Carlos. Fui convidado a uma conferência que daria em um teatro do centro da Cidade do México.

São muitas as coisas de que falou nessa ocasião, mas foram dois os aspectos que mais chamaram minha atenção:

1) a extraordinária vitalidade do nawal;
2) a ênfase que colocou em uma situação que nunca plasmaria em seus livros:

Dom Juan, ao partir com seu grupo, havia ficado preso na segunda atenção; a falta de abstração do grupo o havia puxado, e não lhes havia permitido consolidar a viagem definitiva.

Carlos expressou seu profundo desejo de ajudar Dom Juan quando fosse a sua vez de partir. Um dos presentes lhe perguntou se podíamos ajudar Dom Juan, ao que Carlos respondeu:

“Primeiro ajudem-se vocês, salvem-se vocês.”

Como esquecer esse dia? Um belo dia, soube por uma pessoa de uma notícia impossível de ignorar. Disseram-me que a haviam tirado das notícias e do jornal, busquei e só o que encontrei foi um inevitável sentimento de desconcerto:

O famoso e renomado escritor Carlos Castaneda morreu em 27 de abril de 1998 em estranhas circunstâncias.

Imediatamente, busquei refúgio em uma explicação com sentido; quis esclarecer se havia ido em consciência, se havia podido partir na viagem definitiva, ao que me disseram que não, que realmente havia morrido. A partir daqui não posso dizer mais; um profundo e arrasador sentimento inundou todo o meu ser.

Uma noite, tempos depois de meu último sonho com o nawal Carlos, decidi continuar com meu intento. Nessa noite, terminei de executar os passes mágicos, recapitulei e me dispus a dormir.

***

Estava no deserto, sozinho, era uma espécie de chaparral, parecia ser de noite; de repente percebi que em frente a mim se encontrava uma figura sentada com as pernas cruzadas, a uns cinco metros; por sua forma de vestir parecia um índio e usava um sombrero, não dava para ver seu rosto porque tinha a cabeça baixa, mas quando a levantou recebi um enorme impacto, não havia rosto algum!

Só a escuridão ocupava o espaço onde supostamente devia haver um rosto, enquanto todo o resto era visível de maneira normal; parecia que não queria ser reconhecido.

Tinha esta cena à minha frente quando nisso escutei como se dirigiu a mim:

“Eu sou o ser que o mundo conheceu como Dom Juan.”

Apenas me havia dado conta disso quando ele levantou seu braço direito e o estendeu até mim como se fosse elástico, aproximou-se tanto que sua mão ficou a cerca de um metro, mostrando-me o dorso desta com os dedos esticados; foi nesse instante que minha atenção se fixou em pequenas plantas e ervas que trazia em sua mão, como se as houvesse distribuído entre seus cinco dedos.

Em seguida começou a me dizer o seguinte:

“Esta planta serve para isso, esta para aquilo, esta para isso, esta para aquilo, e esta para isso.”

Havia me indicado e apontado com a outra mão as plantas e ervas conforme falava delas. Depois continuou dizendo:

“Tudo isso é o que no mundo ocidental equivale e se conhece como a estrela de cinco pontas.”

Isso foi tudo. A partir dessas enigmáticas palavras minha atenção começaria a minguar até perder-se completamente no reino da inconsciência.

Acordei completamente sobressaltado, sem dúvida podia ter sido outro produto de meu inconsciente; entretanto, havia um detalhe: a informação parecia ser muito específica, e eu até aquele momento de minha vida não tinha conhecimento algum do que era a estrela de cinco pontas. Nesse mesmo dia e o mais rápido que pude decidi averiguar o que pudesse acerca de, até aquele momento, tão misterioso símbolo.

Após a busca pude encontrar algo, um folheto explicativo do pentagrama, mas qual não seria minha surpresa quando li que o pentagrama é conhecido como a estrela de cinco pontas, e que seu significado é o homem auto-realizado, assim como o domínio do homem sobre as forças da natureza!

***

O segredo de um guerreiro é que ele crê sem crer. Mas obviamente um guerreiro não pode só dizer que crê e deixar assim. Isso seria muito fácil. Somente crer o exoneraria de examinar sua situação. Um guerreiro, quando tem que envolver-se com o crer, o faz como uma escolha, como uma expressão de sua mais íntima predileção. Um guerreiro não crê, um guerreiro tem que crer - Porta para o Infinito.


Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que o nawal Carlos e Dom Juan mantiveram a consciência de si ao partir. Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que algo extraordinário me sucedeu.

Se alguma vez minha vida se modificou, foi naquela época. Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta, foi naqueles dias. Assim que hoje, anos depois, só posso intentar unir-me em Espírito à ideia e ao propósito que o nawal Carlos e seu grupo compartilhavam:

Explicar o mundo que Dom Juan nos fez herdar é nossa expressão final de gratidão para com ele, e de nosso propósito de continuar buscando o que ele buscava: a Liberdade.

***

Você está em um ponto terrível. É tarde demais para se retirar, mas cedo demais para agir. Tudo o que pode fazer é testemunhar. Está na miserável posição de uma criatura que não pode regressar ao ventre da mãe, mas tampouco pode sair e agir. Tudo o que uma criatura pode fazer é testemunhar e escutar os estupendos relatos de ação que lhe contam. Você está agora nesse ponto preciso. Não pode regressar ao ventre de seu velho mundo, mas tampouco pode agir com poder. Para você só há testemunhar atos de poder e escutar contos, contos de poder - Porta para o Infinito.

[1] Tradução: Adriana Northrup

domingo, 16 de março de 2025

Seres Cíclicos, por Armando Torres

Pouco antes de conhecer Carlos, influenciado por minhas leituras orientais, eu havia sido partidário da doutrina da reencarnação. Parecia uma alternativa plausível à convicção cristã na ressurreição dos corpos. Porém, em uma conferência, ele observou que os dogmas do cristianismo e das religiões do oriente eram suspeitosamente parecidas, porque partiram de um denominador comum: o medo da morte.

 Seu comentário me lançou na perplexidade. Esse era um enfoque totalmente novo para um assunto que sempre me havia fascinado.

Quando perguntei sua opinião, Carlos tentou desviar meu interesse para outro tópico, como se não valesse a pena falar daquele assunto. Mas depois, mudando de tática, falou que todas as minhas crenças sobre a sobrevivência da personalidade eram o resultado de sugestões sociais.

“Foi dito a você que nós temos tempo, que há uma segunda oportunidade. 

Mentiras!”.

“Os videntes afirmam que o ser humano é como uma gota de água que se desprendeu do oceano da vida e começou a brilhar por conta própria. Esse brilho é o ponto de aglutinação da percepção. Mas, uma vez dissolvido o casulo luminoso, a consciência individual se desintegra e se faz cósmica, como poderia regressar? Para os bruxos, a vida é única. E você espera que se repita?”.

"Suas ideias partem da exagerada opinião que você tem sobre sua unidade. Mas, como todo o resto, você não é um bloco sólido, é fluido. Seu 'eu' é uma soma de crenças, uma lembrança, nada concreto!"

Perguntei a que se devia então que as religiões propagassem outros tipos de doutrinas.

Respondeu:

"Isso é fácil de entender; são respostas ao medo ancestral do ser humano. Cada cultura gerou suas próprias proposições explicativas, mas só os videntes foram mais além das crenças, corroborando esses aspectos das emanações da Águia por si mesmos".

Ele me explicou que existem no universo feixes de energia aos quais todos estamos enganchados como se engancham as contas de um rosário entre si. Nós somos cíclicos; somos o resultado de um selo luminoso e toda vez que nasce um novo ser, encarna nele a natureza desse padrão. Mas a corrente que nos une não é de natureza pessoal, não implica a transferência de memória ou de personalidade, nem nada do estilo.

"Para sobreviver à morte é necessário ser bruxo. Ao satisfazer a Águia com uma réplica vivencial, os bruxos conseguem manter acesa a chama de sua consciência individual por eternidades. Mas isso é um feito. Por um acaso a maior realização de um guerreiro deve ser um presente?"

Comentei que recentes estudos tinham demonstrado que algumas pessoas, em circunstâncias muito especiais, podiam se lembrar de eventos de uma vida passada.

Afirmou que essa era uma interpretação errônea dos fatos.

"É certo que qualquer um pode sintonizar determinadas emanações de vivências que aconteceram em outros tempos e sentir que viver não uma, mas muitas vidas. Mas isso é só um alinhamento entre milhões de possíveis alinhamentos".

Encontros com o Nagual, por Armando Torres

sábado, 15 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Mariví de Teresa

As Testemunhas do Nawal[1]

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com Mariví de Teresa


_ Aceitei esta entrevista porque chegou o momento de devolver o que recebi, romper o silêncio e falar do bem que ele nos deixou, do verdadeiro benfeitor que foi para milhares de pessoas que, como eu, até agora têm permanecido caladas.

_ Em sua opinião, por que tem havido silêncio entre os chegados a Castaneda depois de sua partida?

_ Ele nos ensinou que um bruxo não tem nada a defender, e, portanto, tampouco tem muito a dizer. Esse é o sentimento que temos. Mas, ao mesmo tempo, não podemos nos calar. Um bruxo não deixa dívidas de gratidão pelo caminho.

Olha, esta que você vê aqui morreu; o nawal a matou. Minha única razão de seguir neste planeta é limpar meu vínculo com o espírito, e por isso me interessa reconhecer o que devo ao nawal.

_ Além do sentimento de gratidão, há alguma outra razão que a motivou a pôr por escrito suas experiências junto a Castaneda?

_ Sim, os augúrios.

Eu não havia decidido escrever sobre isso até que vi augúrios suficientes para fazê-lo, abrir completamente o que aprendi e vivi.

O primeiro foi quando, sem que o esperasse, tive que falar de Carlos Castaneda. Acabava de chegar a Barcelona e não tinha essa conferência em mente, assim que, quando me pediram, repliquei: “Estão malucos? Não posso, que vou dizer? Não sei de onde vocês tiraram que vou dar uma palestra!”

Finalmente, dei a palestra, e nesse momento soube que minha tarefa era transmitir. Disse para mim mesma: “É tempo de dizer a verdade!”

Outro sinal foi o livro de Armando Torres e as revelações que ele faz ali sobre a regra do nagual de 3 pontas. Esse é um tópico muito profundo. Ele deixou fragmentada a informação sobre a regra entre diversas pessoas.

_ O que é a regra?

_ Ele a descrevia como um mapa, um conjunto de índices, um sistema. Em uma conferência que nos deu na Casa Amatlán, disse-nos:

“A regra é uma série de tarefas, um compromisso que se deixa aos guerreiros de um grupo. Tudo que eu escrevi é a regra.

“A regra se faz evidente para os que lutam pela liberdade através da impecabilidade, já que obrigatoriamente se põem em contato com ela e conseguem ser impecáveis quando vêem que esta se cumpriu.”

_ Qual foi o terceiro augúrio?

_ O terceiro augúrio foi certa informação que tive sobre o passado do meu país.

_ Você disse que Carlos lhes deixou um quebra-cabeças?

_ Sim, essa era sua forma de agir, algo característico dos nawais que têm a constituição energética como a que ele tinha. São transmissores por excelência. E esse é o modo como o espírito dispôs que se transmita o conhecimento.

Carlos era muito específico, a cada um de nós encarregou de coisas, e inclusive nos fez pronunciar um voto de silêncio. Quando lhe perguntei o porquê dessa atitude, me respondeu: “É que há coisas que não se pode dizer até que chegue o momento.”

Não se trata de dar importância ao segredo, e sim de um senso de oportunidade. Seu trabalho não foi o trabalho de um homem. Ele foi o instrumento de uma linhagem de conhecimento que retrocede até tempos muito antigos, por isso o chamamos o nawal.

A linhagem acumulou muita sabedoria através de experimentação e revelações, e cada nawal deve transmitir a porção que corresponde à sua própria época.

A Carlos coube viver em um momento de crise, de mudança. Então, teve que encontrar estratégias para nos legar a extraordinária informação que possuía.

Nunca nos dava o mapa completo, dava as peças para que a gente armasse e descobrisse suas indicações. E a porção de cada um era feita na sua própria medida, era o seu pedaço do quebra-cabeças.

Como ele nunca nos explicou esse assunto, nós pensamos que o que tínhamos era tudo. Não foi senão quando se passaram os anos e alguns de nós começamos a intercambiar informações, que descobrimos que o nawal havia preparado um plano, algo gigantesco, que vai muito além do seu grupo. Ainda é muito cedo para ter uma visão global desse plano, mas percebo alguns de seus elementos.

_ Explique-nos mais sobre esse plano.

_ A questão é fazer as perguntas apropriadas. Por que se forma um grupo de guerreiros? Qual a sua função e como se desenvolve? Por que Dom Juan o configurou tal como o fez, incorporando elementos não indígenas?

_ Que sentido tem a configuração energética de Carlos? Por que a cada um dos grupos, e a cada entidade dentro de um grupo, se dá um ensinamento particular, uma informação, uma tarefa? Aonde leva tudo isso?

_ Só posso falar do meu espaço, posso contar-lhe sobre as peças do quebra-cabeças que me entregaram. Levei dez anos de trabalho árduo para identificá-las e armá-las, porém só assim pude entender muitas coisas.

_ É casual o fenômeno Carlos Castaneda, ou foi uma convocação da energia?

_ Este tempo é o tempo do ser humano, acabaram-se os gurus, os guias. É tempo da espécie despertar.

O nawal de 3 pontas é um cíclico, e aparece com uma corte de cíclicos. A energia dispôs assim, é um comando.

Os cíclicos estão a serviço do nawal, se metem no tonal dos tempos, não porque gostem mas porque este é seu caminho para a liberdade.

O cíclico vem para encontrar-se consigo mesmo, e ao ver-se se reconhece, porque já se deixou aí, há cinco, dez mil anos. Esclareceu: “Não são reencarnações. Não como a gente a considera, não há nada linear aí.”

Alguém numa conferência lhe perguntou sobre o México e ele respondeu: “Não perguntem para mim! O que vocês podem me dizer sobre o México? É seu, cabe a vocês decifrá-lo!”

Carlos insistia em encontrar a explicação dos cíclicos de seu grupo nas pedras talhadas do México.

Disse:
 

“Quando chega a clareza, morre sua personalidade individualista,
e você entende que não é importante,
e sim uma energia com uma função.
Quanto mais importante se sente, mais se afasta de sua função.”


Inclusive mandou fazer umas camisetas com a legenda: “A importância pessoal mata!” 

Disse-me: “O estresse é uma necessidade imperiosa de sustentar uma imagem de si e de sua realidade, e provoca infartos. 


A importância pessoal mata!”


O desafiante da morte é a pedra angular desta etapa cíclica. Sempre foi, porque ele vive aí, na eternidade do ciclo. Ele é o impulso.

O passado é o tempo linear: se damos meia-volta, podemos entrar no tempo que vem, que não é retilíneo, é curvo, um aqui e agora permanente. Aí não há passado.

Às vezes, a forma como Carlos nos dizia as coisas era tão incompreensível (pensando de maneira linear), que tínhamos que reunir energia para recordá-las. Tive que lutar durante todo esse tempo para entender uma boa parte dos ensinamentos que me deu. Tem sido um trabalho difícil.

O plano do nawal não é só um desenho estratégico aplicado a nossa mente linear. É antes de tudo um desenho energético, que tem efeitos em muitos níveis. Explicar um tema dessa natureza não é possível; é como tentar explicar o sabor de uma manga a quem nunca a provou.

Para cumprir com a tarefa que ele encomendou a cada um de nós, temos que transformar o intelecto em vivência. Mover nosso ponto de encaixe para testemunhar o abstrato e tentar convertê-lo em palavras cotidianas não é possível.

A linguagem é muito limitada e se presta a um sem-fim de interpretações errôneas. Por outro lado, uma vivência produz clareza, e é o único modo de entender realmente. O problema está precisamente na clareza, porque é muito atraente, você quer estar aí todo o tempo, mas não tem jeito, a luta é permanente.

A clareza produz um falso senso de saber, de segurança, do que se aproveita a importância pessoal para nos fazer crer que somos mais importantes que os outros. 

Para os que tratamos diretamente com o nagual, a clareza é um perigo, sentir que você sabe tudo, que percebe o plano. Não está certo! Apenas percebemos pontas, não vemos o conjunto completo.

_ Pode nos falar de sua tarefa em particular?

_ Ele nos deixou uma tarefa. Disse-nos: “Não fiquem sentadas, digam às mulheres que deixem de sustentar o mundo do macho.”

Ordenou-me que levasse às mulheres a mensagem de que podem livrar-se da carga do homem, e que, para isso, não têm que imitá-lo. Dizia: “As mulheres não tem porque jogar com o intelecto, quando têm um órgão tão extraordinário como o útero, um órgão que percebe as coisas de maneira direta.”

Dizia que a mulher é como uma pirâmide invertida: recebe tudo de cima e só se apóia em um ponto sobre a terra. O homem, ao contrário, é como uma pirâmide plantada na terra, tão fixo em suas rotinas, que apenas recebe uma gotinha do alto. É por isso que os homens necessitam construir pontes com as palavras; as mulheres recebem tudo diretamente. Então, as mulheres não têm porque depender dos homens.

_ De que modo se conecta o despertar das mulheres com o plano do nawal?_ A bruxaria é um assunto feminino, um assunto de energia, e as mulheres são a fonte. Desse modo, quando nós nos dermos conta de nosso potencial, as peças do quebra-cabeças dos bruxos se armarão por si mesmas.

Minha certeza é que, se a mulher não despertar, nossa espécie vai desaparecer. Isso é uma certeza absoluta, não tem questionamento para mim!

_ Mudando de assunto, o que pode nos dizer sobre os detratores da mensagem de Carlos?

_ Em geral, são pessoas que se sentem defraudadas.

É como se o nawal lhes houvesse prometido algo e não houvesse cumprido. São pessoas despeitadas. O que têm é pura importância pessoal.

Já lhe disse que o ensinamento não era linear, tínhamos que fazer um grande esforço para entender, um esforço de bruxos. E aos homens, em particular, isso é quase impossível. Daí que muitos se queixaram ou duvidaram dele, e alguns até tentaram sujar seu nome.

Entre o grupo de seus conhecidos, os que mais o detrataram foram aqueles que esperavam ser reconhecidos dentro do grupo como líderes, como futuros continuadores do nawal. E Carlos não jogava esses jogos. Ele atendia aos desígnios do espírito, e não à importância pessoal das pessoas. Isso é o que eu vejo na maior parte dos detratores: desejos não cumpridos. “Não viu como sou maravilhoso! Não compreendeu meu valor, minha capacidade organizadora, meu grande conhecimento!”

Claro que, quando uma pessoa fica aborrecida, o que se aborrece é sua importância pessoal. Em geral, considero que os críticos de Carlos respondem a estereótipos implantados. Uma prova disso são esses detratores que, sem tê-lo conhecido ou sequer lido seus livros nem praticado nada, se dedicam a difamá-lo.

_ A que se refere quando fala de “estereótipos implantados”?

_ A nossos moldes mentais. Todos os seres humanos temos uma visão do que deveria ser um mestre, um guru. Cristo, Buda, Gandhi, Madre Teresa. Esses são os arquétipos que nos venderam, e os trazemos como se estivessem geneticamente gravados em nosso disco rígido.

Então, quando vem um que é diferente, um que promove a liberdade, que se ri de si mesmo, denuncia a importância pessoal e lhe dá uma visão completamente fora de seus esquemas e expectativas, é muito difícil escutá-lo. Você se sente tentado a exagerar ou inventar defeitos, a julgá-lo da sua perspectiva.

De um guru estamos dispostos a reverenciar até a sombra, mas a um nawal que oferece a liberdade chamamos de farsante, um manipulador que nos lava o cérebro e rouba a energia! 

Essa voz que nos faz idolatrar ou execrar provém da mente do voador, a mente que o obriga a ser tímido e não se atrever, para que ao final termine bailando com algum guru.

_ Você acha que não precisamos de mestres?

_ Não, não necessitamos de explicações, nem mestres. Tudo o que precisamos é de uma oportunidade e coragem. Oportunidade de conhecer os postulados dos bruxos, e coragem para deixarmos de olhar e ver, para não ficarmos atados à história pessoal e soltarmos as amarras da percepção, e assim chegar a perceber.

O mito é uma formação arquetípica que assinala uma direção

Por isso é tão estúpida a detração que alguns fazem do ensinamento do nawal. Os detratores buscam uma explicação linear, uma forma de acomodar as coisas no seu limitado inventário pessoal. E, nesse empenho, acabam com uma possibilidade infinita.

Os detratores vão atrás de uma razão, porém o ensinamento do nawal não explica nada, exige que entendamos com outras partes do nosso ser. Por isso, ele não é um mestre, no sentido convencional da palavra. Ele mesmo advertiu: “Acabaram-se os guias”.

_ Entretanto, ele era seu mestre.

_ Não é a mesma coisa um guru e um nagual. Um guru é alguém atraente, você se sente encantado de estar com ele. Ao contrário, todos nós queríamos fugir do nawal. Era muito duro! Pobrezinhos de nós!

A relação entre mestres e discípulos é reflexo da importância pessoal. Portanto, o que faz um mestre, geralmente, é sustentar essa relação, e o faz baseando-se em milagres, explicações, exigências, e sobretudo adulando a importância pessoal do discípulo.

Em compensação, o nawal o fustiga a cada momento, mas, ao mesmo tempo, o deixa livre. Cada vez que me via, Carlos fazia em pedacinhos minha importância pessoal. Este nawal me chutava o traseiro a cada trinta segundos. Por outro lado, com os gurus me sentia tão especial, pertencia ao grupo dos eleitos.

O que dói quando nos batem é a estupidez. Como sua importância vai gostar que você limpe o vínculo com o espírito se a primeira coisa que tem que fazer é descartar sua própria importância? Mas o guerreiro se regozija com isso.

Carlos me dizia o tempo todo: “Você tem que polir seu vínculo!”

Quando sai o medo e chega a clareza, morre a personalidade individualista e você compreende que não é importante, é só uma energia com uma função.

Quanto mais importante você se sente, mais se afasta de sua função real.

_ Sabe se existem outros nawais além do Castaneda?

_ Eu lhe perguntei isso em uma ocasião e me respondeu: “Sim, tem louros, altos e de olhos azuis. E a você coube um preto, feio e baixinho. Odeie-se!”

Explicou-me que houve muitos nawais na história, e não só no México. Perguntei: “E Jesus, também era nawal?” E ele respondeu: “Veja que classe de nawal ele era, que a partir dele se conta o tempo!”

Deu-me exemplos sobre a atividade dos nawais conhecidos e desconhecidos no desenvolvimento da sociedade humana.

_ Qual é a sua impressão pessoal sobre Carlos Castaneda? Era um homem de poder ou uma pessoa comum e corrente?

_ Fazia manipulações na nossa energia, movia nosso ponto de encaixe. Moveu meu ponto de encaixe em várias ocasiões e, para mim, essa é a prova do seu poder pessoal. Mas o que mais lhe agradeço é ter-me dado uma direção. Carlos era contra os milagres. Fazer milagres teria sido corroborar nossas crenças e converter-nos em entidades dogmáticas de um novo ensinamento.

Pelo contrário, fustigava nossos estereótipos mentais para pôr abaixo todas as crenças, para nos desestruturar, e nunca se aproveitava desse vazio para nos impor sua interpretação do mundo. Enfatizava que buscássemos nossa própria visão. Disse mil vezes: “Não acreditem em mim! Façam, comprovem! Tudo o que eu lhes digo é para convidá-los à ação, para que confirmem algumas das propostas dos bruxos através da experiência.”

Em uma ocasião, ao observar a forma como a maioria dos seus seguidores acolhia seus ensinamentos, comentei: “Nawal, isso está se tornando a Santa Igreja Castanedense.” Fez um gesto de desgosto e respondeu: “Todos os ‘ismos’ são iguais e vêm da mente do voador. Não sejam tão idiotas de converter um ensinamento que lhes propõe a liberdade em um dogma a mais!”

_ Quer dizer que as propostas de Castaneda só devem ser tomadas com um sentido prático?

_ Exatamente!

As propostas do nawal só devem ser tomadas em um sentido prático; no entanto, somos compelidos a interpretar, não podemos evitá-lo. A questão é não tomarmos nossas leituras como dogmas, e sim como unidades operacionais que nos orientam para a verificação.

Recordo que uma vez estivemos falando sobre a forma como a interpretação se cola em tudo que fazemos. Perguntei por que levamos essa imposição social a momentos tão íntimos quanto o sonho ou a viagem com plantas de poder.

Respondeu: “Isso é porque é uma ordem da Águia que transmitamos nossas experiências. Para transmitir temos que interpretar, senão vem abaixo todo o sistema de ensinamentos. Não veja isso como uma maldição. A interpretação é uma dádiva para interagirmos e nos comunicarmos. Mas temos que perceber que, acima de nossa interpretação, está nossa capacidade de escolher, escolher acreditar para em seguida verificar. Esses são os dois passos: primeiro, um ato de vontade, seguido de uma corroboração experimental. E se ainda lhe restarem forças para intentar o caminho dos bruxos, então se deixe ir no que escolheu acreditar, em um ato de loucura controlada.”

_ O que é a loucura controlada?

_ É a liberação de nossas percepções. Uma coisa é acreditar impulsionado pelo temor, sugestão ou esperança, outra é escolher sua crença, de um modo livre e soberano.

A diferença entre o ensinamento do nawal e os dogmas que as religiões nos impõem é que ele o dirigia todo ao objetivo de sermos livres. Ao referir-se ao modo como os pastores conduzem seus rebanhos para objetivos muito distantes do nosso verdadeiro destino, dizia: “Estes fdp nos apresentaram um deus derrotado!

O que ele fez realmente por mim foi me dar a opção da liberdade, dizer-me que isso é possível, que não tinha que me contentar com os contos escravizantes que me fizeram a vida toda. Ele me mostrou que a liberdade é literal, um estado de ser, um ato de vontade definitivo.

Dizia, quando falávamos do céu: “Não quero ser livre amanhã, quero aqui e agora.”

_ Como podemos alcançar a liberdade?

_ Sacrificando as cadeias que nos atam às coisas: os apegos, os medos, a importância e a história pessoal, o desejo de reconhecimento, tudo isso.

Somos livres por natureza: assim que descartamos as imposições, recuperamos nossa liberdade.

No caso de Carlos, ele teve que aprender a se fazer invisível. Dona Florinda – a velha – lhe deu uma ordem direta: disse-lhe que tinha que passar desapercebido, pois o sucesso de seus livros o estava colocando em uma situação comprometedora (o sucesso tira a liberdade, pois põe a pessoa na mira para que todos atirem: por isso um nawal precisa ser invisível).

Então ele adotou o nome de Joe Cortez e foi trabalhar em um restaurante como cozinheiro especialista em fazer ovos. Ali ocorreu uma história que revela sua verdadeira personalidade.

Uma garçonete que lá trabalhava era fanática por Castaneda e morria de vontade de conhecê-lo. Um dia ela chegou muito emocionada, dizendo que lhe haviam informado que Castaneda ia passar por ali e teriam oportunidade de conhecê-lo. Era um segredo, porém o boato havia corrido.

De repente passou uma limusine com um tipo louro de olhos claros que dava cursos sobre nawalismo e usurpava a personalidade de Carlos. Ela gritou: - “Olha, é Castaneda!” - e saiu correndo até o carro. Mas o sujeito nem a olhou, desprezou-a. A moça voltou chorando para junto de Joe Cortez, que a abraçou e consolou: “Fique calma, não se preocupe. É que essa gente famosa nem liga para nós, os pobres.”

Essa moça nunca soube que Joe era o verdadeiro Castaneda.

_ Como Carlos reagiu ao fenômeno de seus duplos?

_ Ele nunca se importou que outros o suplantassem. Ria muitíssimo com isso. Estávamos jantando com Florinda Donner e comentei que havia gente verdadeiramente gananciosa e Florinda disse a ele que não o permitisse. Foi quando ele trouxe a público um artigo no qual advertia contra aqueles que usurpavam sua personalidade para ganhar dinheiro.

Numa ocasião em que estava com seu editor, de repente lhes avisam: “Chegou o Sr. Castaneda.” O editor lhe disse: “Carlos, não diga nada, vamos ver quem é.” Ele respondeu: “Ok, vou cuidar das suas plantas e, enquanto isso, você o recebe.”

Assim foi. Entrou o suposto Castaneda, que era um tipo alto, bonito e bem vestido, e se apresentou: “Prazer, sou o doutor Carlos Castaneda.” Logo perguntou, referindo-se a Carlos, que continuava trabalhando a um canto: “E este, quem é?” O editor respondeu: “Não se preocupe, é meu jardineiro. Por certo, é um grande fanático pelos seus livros, vai ser uma honra para ele ser apresentado ao senhor.”

E, virando-se para Carlos, gritou: “Olha, Joe, lhe apresento o doutor Castaneda!”

Ao escutar isso, Carlos se levantou das flores, lavou as mãos e foi correndo conhecer seu duplo. Deu-lhe a mão e disse: “Muito prazer, senhor Castaneda, sou seu admirador.”

O outro interrompeu: “Senhor, não: doutor Castaneda, doutor em antropologia.”

Carlos respondeu: “O senhor me desculpe, doutor, é que estou muito emocionado.”

“Me disseram que é fanático pelos meus livros, você leu todos?”

“Sim, alguns.”

“E compreendeu?”

“Ah doutor, bem mesmo não entendi, mas gosto muito como o senhor escreve.”

Depois que o indivíduo se foi, Carlos e seu editor se atiraram ao chão de tanto rir. Quando se recordava do fato, dizia: “Pregamos uma peça no doutor Castaneda!”

_ Você esteve entre os fundadores da Casa Amatlán. Pode nos falar sobre essa experiência?

_ Sim. Em 1992 abrimos a Casa Amatlán junto com outros companheiros que formavam parte do círculo de conhecidos, a fim de propiciar ao nawal um espaço para dar suas conferências. Foi uma experiência única para mim.

Supunha-se que a casa estava sob a condução de Carlos Hidalgo. Mas um dia o nawal me chamou e disse: “Você que tem que abrir a casa, pois Carlitos não vai fazer nada.”

Eu tomei literalmente sua recomendação e em um desses ímpetos de auto-suficiência abri a Casa Amatlán. Quase me mataram a importância pessoal e a prepotência.

O edifício estava em más condições, tivemos que repará-lo e pintá-lo com as mãos. O nawal queria provar-nos. Chamou-me e deu-me suas recomendações: “Sua tarefa é fazer o que menos goste na vida.”

Como o que eu menos gosto é cozinhar, pus um restaurante no andar térreo da casa.

_ E o que faziam nesse lugar?

_ A princípio nos dedicávamos a fazer exercícios elaborados por Carlos para romper nossa importância pessoal. Também convidei diversos amigos que eram conferencistas conhecidos. Ali se passaram coisas estranhas. Lembro que uma sexta veio um amigo chamado Miguel e nos contou a lenda das “Filhas da Grande Flauta”. O nawal costumava nos chamar de filhas da grande flauta mas, como não conhecíamos a história, não sabíamos se estava nos ofendendo ou elogiando. Então pedimos a Miguel, que sabia dessas coisas, que nos contasse a história.

Ele disse que na cadeia montanhosa dos Bacatetes vivem uns seres chamados Surem, e com eles umas entidades femininas que estavam pelos quatro pontos cardeais. Acrescentou: “Conta a lenda que quando a grande flauta fala, a terra treme.”

No momento em que Miguel disse isso, a terra tremeu. Ficamos pasmos.

Ele nos perguntou: “Por que me olham com essa cara de estúpidos?”

Não sabíamos se o terremoto havia sido real ou produto da sugestão. Então ligamos o rádio e escutamos que acabava de haver um tremor de terra com epicentro no estado de Guerrero.

Foi extraordinário. Cada palavra que disse Miguel sobre os Bacatetes, os Surem e as Filhas da Grande Flauta se ia manifestando fisicamente naquela sexta lendária. Éramos vinte pessoas vivendo a experiência. Não foi algo mental.

_ Pode contar-nos mais sobre os Surem?

_ Se lhe conto o que vi, vou parecer demente. Só posso lhe dizer que o mundo está cheio de mistérios. Sei com certeza absoluta que há forças no universo que não são humanas e têm consciência própria.

_ Essas forças podem nos ajudar em nossa evolução pessoal?

_ Algumas estão a favor do espírito humano e outras estão contra. Porém, falar delas como boas ou más não reflete sua verdadeira natureza. Não tenho idéia de como chamá-las. A única maneira que poderia descrevê-las é como ausência de luz, como buracos negros. Um buraco negro não é bom nem mau, é de sua natureza capturar a energia.

Podem nos dar um poderoso empurrão, mas, se nos aproximamos demais, então sua existência vai contra nossos interesses como entidades humanas. Por isso interagir com esse mundo é tão perigoso. O nawal o descrevia de uma forma muito especial: “Somos um galinheiro cósmico no qual outras energias predatórias se alimentam de nós. Por que em um universo predatório seríamos nós a exceção?”

Nós seres humanos nos cremos tão importantes que pensamos estar por cima de tudo. Essa é a arrogância que nos induz a ver as coisas através do filtro racional. Para Carlos, o único modo de lidar com essas forças é como guerreiro. Dizia: 

“É muito fácil ir ao reino inorgânico. O difícil é envolver-se em uma guerra eterna neste universo predatório. 
Se algum dia tiver que ir com eles, vão ter que lutar pela minha consciência.”

_ Quer dizer que o objetivo dos naguais é uma guerra eterna?

_ Definitivamente. No caminho do guerreiro não há descanso, porque não há nada no qual fixar-se. Carlos dizia: “O universo está em constante movimento, porque eu vou estar fixo?”

Em uma ocasião, Eddy e Matias fizeram um plano para comprar um rancho e retirar-se do meio social. Insistiam que se tinha que estar próximo à natureza para calar a mente. Ao saber disso, perguntei ao nawal: “Vejo seus fanáticos retirarem-se do mundo. É necessário isso para se tornar um guerreiro?”

Respondeu-me: “Não. Um guerreiro está onde está o campo de batalha.”

_ Pode nos dizer qual é, em sua opinião, a essência da mensagem de Carlos?

_ A essência da mensagem de Carlos era economizar energia. Quando os níveis de energia sobem, você sabe sem necessidade de palavras. Seu corpo vibra e seu ponto de encaixe se desloca. Isso é entrar no consenso dos bruxos.

Para economizar energia, antes de tudo temos que saber o que é a energia, e isso se consegue economizando-a, e não intelectualizando a respeito. Por isso que é um assunto prático.

Começa-se pouco a pouco, estudando os aspectos de nossa personalidade que mais nos afetam, como as crenças que temos, a importância que nos damos, a imagem que aparentamos ante os outros e a conduta sexual. Depois, começamos a mudar os hábitos, substituímos coisas que nos esgotam por outras que nos renovam. É uma redistribuição consciente dos elementos do nosso tonal.

_ Como Carlos enfocava a questão sexual?

_ Esse é um tema muito difícil de explicar com palavras, porque todo mundo tem idéias muito definidas e quase sempre errôneas sobre o que é a sexualidade e sobre o modo como influi em nossos níveis energéticos.

Em uma ocasião, Carlos nos explicou que a vida sexual de um guerreiro não tem parâmetros rígidos, tudo depende da quantidade de energia que a pessoa tem. Comentou: “Quando falo de sexualidade, todo mundo acha que estou dizendo que não transem. Não falo disso!”, disse, com fúria, “Vocês estão tão fixos em suas rotinas que não querem me ouvir, ouvem o que querem. O que eu digo é: homens, deixem de machismo! Mulheres, deixem de sustentar o mundo do macho! Porque vocês o sustentam, é uma cumplicidade doentia.”

Explicou que a sexualidade tem muitos níveis, e que sua expressão máxima entre os seres humanos é o manejo da energia sexual para o sonho, que é o que caracteriza os bruxos. Deu o exemplo do homem e da mulher nawal, uma parceria que produz harmonia, e, em lugar de entregar-se aos desgastes emocionais que gera o intercâmbio sexual, confabulam para a liberdade. “Já que somos cúmplices na destruição de nossa energia, por que não nos fazemos cúmplices em sua criação e evolução?”

_ Como podemos redistribuir os elementos de nossa personalidade?

_ O único modo de manejar seus elementos é conhecendo-se a si mesmo. Para isso existe uma técnica infalível, e Carlos nos explicou muitas vezes: a recapitulação.

_ Você se refere a recordar nosso passado?

_ Não, recapitular não é deleitar-se em lembrar o que lhe ocorreu, e sim tentar decifrá-lo, encontrar as chaves, para que possa aplicar sua atenção nos pontos onde se fixaram seus hábitos e rotinas. O intento inicial desse exercício é recolher o que lhe corresponde e entregar o que não é seu, ver o que fez com o seu capital energético.

A palavra “capitular” significa ceder uma praça, perder um espaço na guerra. Por isso, recapitular é saber quantas vezes seu ser real cedeu ao domínio da sua domesticidade, quantas vezes você capitulou, se auto-derrotou, onde deixou sua energia, em que eventos, intercâmbios, emocionalidades, compromissos, saber em que se envolve, como cede seu potencial à modalidade da sua época.

A recapitulação é uma técnica tão efetiva quanto dura. Carlos Hidalgo nos contava que havia estado recapitulando e sua vida tinha sido magnífica, uma maravilha.

O nawal lhe respondia: “Você não está recapitulando, está recordando sua vida. Isso não é recapitulação.”

Ninguém desfruta de uma verdadeira recapitulação, porque dói quando vemos as entidades mecânicas e repetitivas em que nos converteram, quando detectamos o animal doméstico que temos dentro. Ninguém se regozija de sua domesticação.

Eu vomitava cada vez que recapitulava. Contei a Carlos: “Nawal, recapitulo e me dá nojo ver plasmada minha estupidez.” Disse-me que isso também acontecia com ele.

_ Qual é o resultado desse exercício?

_ A recapitulação o conecta com a consciência cósmica. Quando recapitula, o que você faz é juntar suficiente energia para poder estar nesse sonho que temos na Terra, e também nesse outro que temos aí, no desconhecido. Se você faz uma leitura intelectual do recapitulado, pode sentir que tudo ocorreu no decorrer do tempo, mas isso é uma reinterpretação. Na realidade, tudo sucede aqui e agora.

Os bruxos sabem que, se abstraímos o tempo da memória, o que sobra é consciência pura. É por isso que a recapitulação se torna uma necessidade imperiosa e um vício para o guerreiro.

A consciência é o veículo universal e a recapitulação uma técnica para ter acesso a ela. Por isso a recapitulação vai muito além de nossa existência pessoal, além dessa vida. É algo que não termina nunca, chega a tudo, depende de quão profundamente você pode mover seu ponto de encaixe. Pode ver o que se passa nesses mundos simultâneos de energia.

Do ponto de vista do indivíduo, recapitular é recordar; mas, como entidades cósmicas, sabemos que é consciência pura e total. Cada movimento do ponto de encaixe o conecta com uma linha, um sulco diferente do tempo, e podemos viajar por aí, se sabemos como conservar o sentido de ser. Por isso o nawal dizia que uma das bruxas tinha seiscentos sonhos. É que ela podia mudar de um mundo a outro, viver intensidades correspondentes a muitos séculos de tempo linear. Ele chamava a esse feito a audácia final, o salto da consciência.

_ Você se refere a que essa bruxa podia reencarnar conscientemente?

_ Não, não tem nada a ver com isso. A ansiedade do ser humano por continuar consciente, unida ao temor de perder os limites da personalidade, nos faz elaborar teorias estranhas, crenças numa sobrevivência linear. É como um cachorro sobre um barril que flutua na água, dando voltas sem parar, mas sem sair de sua situação. O quê, isso é a reencarnação?

Tantos mundos, tantas galáxias, consciências por todo lado, seres orgânicos e inorgânicos por onde queira, que nem imagina... e o cachorro babaca agarrado ao seu barril em um mundinho chamado Terra! Essas crenças repetitivas são reflexo das vidas aborrecidas que levamos. E aí vem o ser humano fazer as mesmas idiotices uma e outra vez, e, ainda por cima, sem se lembrar! Volta à modalidade da época, a viver sistemas.

Olhe onde chega a fixação, que os egípcios mumificavam seus mortos com o intuito de mantê-los atados a este mundo.

_ Se não é através da reencarnação, então como explica que podemos passar de uma existência individual a outra?

_ Isso não é para se explicar, tem que ser vivido. Eu me dei conta disso antes de conhecer Carlos. Uma noite tive um sonho longuíssimo. Amanheceu e disse a mim mesma: “Essa merda não existe! A porra da reencarnação não existe! Existem vidas simultâneas!”

Não tinha a menor idéia de como explicar isso, até que chega o nawal e começa a me dar as peças do quebra-cabeças.

Um dia, tentando explicar a uma amiga o que eram as vidas simultâneas, conto que é como se a consciência fosse uma só, e a própria consciência como um polvo que tivesse muitos braços.

Cada braço é um sonho, e o guerreiro pode se meter em qualquer dos sonhos através da matriz que lhe permite conectar-se com todos.

Quando recapitula, junta energia suficiente para estar neste sonho ou neste outro, aqui e ali. Tudo acontece aqui e agora, porém, se você faz uma leitura intelectual, pode sentir que aconteceu no passado. Reinterpreta o fato e a reinterpretação dá forma a sua energia.

Você vê o que se passa nesses mundos simultâneos de energia.

É como se a consciência cósmica quisesse viver experiências diferentes simultâneas. Quando um dos braços percebe a existência dos outros, se acendem as fibras luminosas e você salta à terceira atenção. Volta a ser o que era, um navegante do infinito.

Se você abstrai o tempo da memória, sobra a consciência pura.

Estive recapitulando muito quando tive a perna fraturada. Não tinha outra coisa para fazer. De repente, estou sentada na minha cama, durmo, entro em um sonho e me vejo parada em uma esquina de uma cidade antiga que acredito ser Paris, com um carrinho de mercado desses europeus, que têm lona por trás.

Fico em pé, e tenho consciência de estar dormindo no México, e a que lá está também tem consciência de estar segurando o carrinho.

Há uma brutal dissonância cognitiva em ambos os lados, e sei com certeza que minha consciência pode despertar aqui ou ali: agarrando o carrinho nessa esquina, ou deitada em minha cama no México.

Sem saber o que ia ocorrer depois, olho ao redor e decido acordar no México. Abro os olhos e digo: “Merda!” O regresso à cama foi como um golpe.

Pois bem, este ano fui a Graz, Áustria. Uma amiga me pede que a acompanhe a dar uma terapia, entro na casa e começo a sentir uma opressão no peito, uma nostalgia e vontade de chorar espantosas. Começo a buscar referências do que me cria essa nostalgia, se as escadarias recordam minha infância, ou se algo tem a ver com meu passado. Não encontro nenhuma associação com esse sentimento, não havia mais que uma sensação de saudade espantosa.

Ela faz o trabalho e eu entro em meditação, e de repente ela termina o trabalho e lhe digo: “Vem comigo olhar pela janela, por favor, porque se vejo a esquina onde trazia meu carrinho de compras pela mão, me cago aí mesmo!”

Abro a janela e lá está a esquina. Tremendo, digo a ela: “E agora lhe digo, se a meia quadra daqui houver uma loja de produtos naturais, me cago em dobro!”

Descemos, paro na esquina e meu coração começa a bater selvagemente. Olho e lá está a loja de produtos naturais. Começo a fixar asfixiada. É que não se encaixava com aquela realidade. Tinha a vivência de estar em dois lados, e como sou uma cética, minha mente se rebelava contra o que eu experimentava.

Fui com ela e lhe disse: “Peço-lhe um favor, estou a ponto de enfartar, meu ponto de encaixe está sabe-se lá onde. Dê-me um tempo para saber onde estou, em que sonho estou. Deixa eu relaxar, respirar profundamente, tocar bem o solo de Graz, a chuva, definir quem sou aqui e agora.”

Já que consegui recolher minhas fibras de energias outra vez, me senti em minha realidade de sempre e recuperei o equilíbrio que me caracteriza.

Isso para mim é uma comprovação. Não me venham contar teorias nawalescas; eu as vivi na carne. Se não comprovo, não falo.

Moral da história, quem passar por isso tente controlar o medo que causa esse tipo de experiência. Entendam que é parte do mistério do ser humano. O ser humano é um mistério ainda por desvendar; se aceitamos a domesticação até na parte mais abstrata, que é a energética, nos ferramos!

Dêem-se a oportunidade de viver a experiência como parte do mistério da espécie! Não é loucura, é uma característica da nossa existência.

Não se assustar, observar, não tentar racionalizar, fluir com a experiência, tomar medidas elementares, como respirar, aprender a se acalmar, jogar água fria na cabeça, se for necessário. Foi isso que fiz: fiquei na chuva.

Voar é uma capacidade inerente ao ser humano. Uma vez disse Carlos: “O corpo humano é uma nave intergalática.”

A emoção desorganiza a energia, a sobriedade do guerreiro controla a situação. Dê-se uma fração de segundo para tornar a se situar, flua na experiência, se recoloque e diga: “Stop, estou aqui e agora, esta consciência está trabalhando aqui e agora!” Assumir o movimento e a fixação do ponto de encaixe, aprender a aceitar.

O espírito ajuda a idiotas como eu, não posso dizer outra coisa.

_ Como podemos desenvolver essas potencialidades de nossa percepção?

_ Adotando estratégias do caminho do guerreiro. Pode começar fazendo-se consciente de sua história nesse mundo, o que o leva a economizar sua energia, o que por sua vez o lança nos caminhos da consciência impessoal.

Um dos resultados mais emocionantes dessa aventura é que descobrimos que não somos lineares, somos cíclicos.

Em uma ocasião o nawal nos perguntou: “Por que vocês acham que a cultura do México antigo deixou todo seu conhecimento em algo indestrutível, a pedra? As posições do ponto de encaixe são mensagens dos bruxos antigos para si mesmos, mensagens para o futuro, para poder recordar.”

É como deixar para si mesmo uma contra-senha, sua peça particular do quebra-cabeças. Por isso ele associava certas estátuas do México com algumas das pessoas que o rodeavam. Entretanto, ele esclareceu que não devíamos confundir isso com reencarnações.

_ O que você pode dizer sobre a morte de Carlos?

_ O nawal morreu. Partiu para a segunda atenção com toda a sua consciência, porém seu corpo ficou na terra. Fui testemunha de como sua entidade física envelheceu rapidamente, e também de como fez brincadeiras com a idade.

Uma das últimas vezes que o vi, foi em um museu no sul da Cidade do México. Emprestaram-nos um auditório para que desse sua conferência e se reuniram umas duzentas pessoas. Porém Carlos não chegava. Conforme foi passando o tempo, o auditório foi esvaziando, até que no final sobraram oito ou dez gatos pingados. Finalmente, nos expulsaram da sala grande e tivemos que esperá-lo em um salão congelado, com um frio espantoso.

Quando já se haviam passado três horas, os que ficamos pensamos que o encontro era só uma brincadeira de Carlos. Então decidimos ir pecar, ou seja, comer churros com chocolate. E, no momento em que saíamos, apareceu o nawal! Ele fazia sempre essas coisas, para determinar quem realmente tinha que ficar. Vinha com alguém que pouca gente conheceu: o Explorador Negro, a filha de Taisha Abelar.

Assim que o vi, meu coração se oprimiu, e disse a mim mesma: “Meu nawal está morrendo.” Seu rosto estava pálido, seu corpo estava tão deteriorado que era óbvio que não aguentava mais. Fui tomada de uma nostalgia indescritível, era a certeza absoluta de que o nawal estava indo. Nós o cumprimentamos e regressamos ao pequeno compartimento que nos haviam deixado. Ele deu uma conferência muito triste. Ao sair, disse-lhe: “Nawal, já tem um carro novo.” É que eu acabava de comprar um carro. Respondeu: “Quero que amanhã me leve a Tula.”

Na manhã seguinte fui a seu hotel para organizar a ida, e ele me disse: “Organize uma conferência para esta noite.” Minha mente linear perguntou: “Como vou organizar uma reunião para esta noite se ao mesmo tempo estou com ele em Tula?” Mas eu mesma me respondi: “O espírito se encarregará, só necessito de um telefone e vinte minutos.”

Subimos ao seu quarto; comigo iam o nawal, o Explorador Negro e Kylie. De seu quarto fiz várias chamadas, entre outras, a Toni Karam, para que nos emprestasse o espaço para a conferência. Depois fomos jantar em um restaurante próximo e finalmente partimos para Tula.

Segundo Carlos, esta cidade foi criada pelos antigos no sonho. Ele nos levou para ver se captávamos na abstração de Tula o que denominava a façanha final dos guerreiros toltecas, que era se transformar em serpentes emplumadas. Disse-nos exatamente o que se passava com o guerreiro, levou-nos a uma parte da cidade e nos mostrou o lugar onde os antigos intentavam a audácia final, que era burlar a morte de forma definitiva.

À noite regressamos à Cidade do México. Fui para a Casa Tibet ver quanta gente estava reunida. Tremia de medo, porque sabia que, se Carlos nos dava uma tarefa e esta não era cumprida, era uma mancha indelével. A expressão que usávamos era que subiam e baixavam nossos bônus com o nawal. Mas quando cheguei, fiquei impressionada: havia 150 pessoas! Fiquei doida. Foram cinco ligações, e umas pessoas trouxeram as outras, e subiram meus bônus temporariamente.

Carlos chegou e pediu que o ajudassem a descer do carro e o guiassem, porque não estava enxergando bem. Todos notamos que estava muito velhinho, com seu cabelo branco e sua pele pálida. Parecia um homem de 80 anos maltratados.

Nessa conferência atacou os gurus. Durante quatro horas nos falou sobre a egomania dos que se pretendem mestres, o cuidado que devíamos ter ao lidar com eles e os perigos de nos tornarmos um deles.

Também falou do compromisso dos guerreiros e de nos fazermos acessíveis aos comandos do espírito.

Enquanto falava, aconteceu algo extraordinário: começou a ganhar energia, e, diante dos 150 espectadores, rejuvenesceu paulatinamente. A pele foi ficando morena, os olhos brilhantes e a voz forte de um jovem. Foi impactante, um deslocamento do ponto de encaixe.

Ao terminar, me acerquei dele e disse: “Nagual, você entrou com 80 e saiu com 35!” Ele me respondeu: “Você notou? E ainda me falta conseguir que o cabelo se torne preto!”

_ Como você percebe a evolução do nawalismo, cinco anos depois da morte de Carlos?

_ Ele levou em conta a continuação de sua obra. Para esse fim, deixou diversas empresas. Uma delas é a Cleargreen, que tem funcionado muito bem na divulgação da Tensegridade. Cleargreen representa o nawal e a Tensegridade, que, mesmo sendo um aspecto importante do caminho, não é o único.

A tarefa de Carlos vai muito além e depende em grande parte do que façamos conosco como guerreiros. Estamos obrigados a seguir as pegadas abstratas do nawal para pedir sua anuência. Só assim nosso trabalho dará frutos.

Na última vez que o vi, ele se referiu veladamente a esse objetivo final. Havia me chamado para despedir-se, ao vê-lo, senti a enormidade do que ele havia feito por mim e lhe disse: “Obrigada, nawal, não sei como lhe pagar o que me deu.” Respondeu: “Sim, sabe...”

Naquele momento não entendi. Custou-me muito trabalho chegar a saber como poderia pagar-lhe. Mas agora compreendo: o pagamento é ser livre, faça-se livre! A melhor forma de continuar o trabalho de Carlos, e de retribuir tudo o que ele nos deu, é compartilhar com os outros sua mensagem de que podemos ser livres.

[1] Tradução: Adriana Northrup

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