Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda
Texto de Arturo Gutiérrez
Um duplo é o próprio bruxo, desenvolvido através de seu sonhar. Um duplo é um ato de poder para um bruxo, mas somente um conto de poder para você - Porta para o Infinito.
O único que não tem remédio é a morte. Assim recordo as palavras de meu pai. Assim recordo minha vida antes que o Espírito batesse à minha porta. Eu não sabia que existia outra opção, não sabia que existia a liberdade, a viagem definitiva.
Em uma conferência da qual tive a oportunidade de participar, Carlos disse:
“Os bruxos não morrem, se vão em consciência, levam tudo o que são e não deixam nada. Façam como Dom Juan; ele se foi de sandália e tudo.”
Em algum momento de minha vida pensei em encontrar os mistérios da vida no longínquo Tibete; como estava equivocado! Esperava incentivo de Alberto, um velho conhecido que havia estado naquele inacessível lugar; uma vez mais, esse parecia não ser meu destino; em lugar disso, e por alguma estranha razão que escapou ao meu entendimento, Alberto chamou minha atenção para Carlos Castaneda e um grupo de pessoas que o haviam conhecido. Não pude evitar. Estava enganchado. Este grupo se reunia para executar uns poderosos movimentos outrora ensinados por ele.
Agora eu sei, o Espírito havia batido à minha porta.
***
O contato começou com Martha e sua filha Sandra; ela me confessaria ter conhecido Castaneda desde pequena, a quem ela se referia como o nawal, e como este havia expressado seu desejo de ser apresentado à sua filha; esta proposta Carlos lhe havia feito em diversas ocasiões; parece que o nawal havia visto algo nela.
Eu comecei a me interessar; comecei a ler os livros de Carlos Castaneda; Sandra me incentivava muito, tanto é assim que em uma ocasião me compartilhou o sentir do nawal com respeito ao compromisso do guerreiro:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Meu corpo ainda se recorda dos passes mágicos; ainda recordo o intento do grupo; anos depois os movimentos sairiam de seu hermetismo e se tornariam acessíveis ao mundo. Por Martha e Sandra conheci o grupo e Mariví; era ela que marcava a pauta a seguir com os passes mágicos; ela os havia aprendido diretamente do nawal Carlos.
Mariví nos compartilhava a sabedoria do nagual, assim como também nos deixava tarefas a executar por semana; eu a essas alturas me encontrava lendo “O Fogo Interior”, até então o penúltimo livro do nagual, meu intento estava aí, assim como também, uma vez mais, as palavras do nawal:
“Trabalhem e me terão batendo às portas da sua casa.”
***
Minha atenção de ensonho estava no profundo laranja do crepúsculo; uma longa estrada se perdia no horizonte; meu tio ia dirigindo, e somente o insistente chamado do telefone, e a voz que escutei ao atender, romperia com a aparente hipnose do momento:
“Alô, aqui fala o nawal.”
Como esquecer essa voz? Havia começado a me dirigir ao meu tio, disse a ele que tinha que vê-lo. Foi então que minha atenção se desviou para encontrar a maneira de estar com meu tio quando viesse o nawal. As únicas palavras que meu último resquício de atenção resgatou foram “Castelo” e “5 horas da tarde”.
Acordei, sentia-me surpreendido; de alguma maneira tinha a certeza de que este não havia sido um sonho comum.
Não tinha conseguido despertar completamente quando nisso me assaltou a dúvida, raciocinei que não havia maneira de vê-lo nesse mesmo dia, os únicos castelos para mim nesse momento eram os da Europa, e eu vivia na Cidade do México. Era ilógico. Não tinha a mais mínima oportunidade; certamente só havia sido um sonho, de modo que voltei a dormir.
Passaria o resto do dia inquieto por causa do estranho sonho; entretanto, qual seria minha surpresa e profunda desilusão quando, já passado o dia, tive o que agora acredito ser um genuíno e fugaz momento de sensatez ao me dar conta de que sim, havia um castelo no qual eu poderia estar às 5 da tarde: o Castelo de Chapultepec da Cidade do México.
Assim que houve oportunidade comentei meu sonho com Martha e Sandra; finquei pé no detalhe que mais havia chamado minha atenção e havia ficado profundamente impregnado em minha memória: a voz.
Uma parte de mim queria considerar impossível a possibilidade do contato com o nawal; no entanto, o mais curioso foi que tanto Martha quanto Sandra me disseram que a descrição da voz que eu escutei coincidia com o timbre que caracterizava o nawal Carlos.
Por fim, quando conheci pessoalmente o nagual pude corroborar que ele era o mesmo que me visitou em inumeráveis ocasiões em meu sonho.
***
Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta foi aquele dia. Entretanto, nessa ocasião, a razão impôs suas leis e ganhou a batalha. Hoje, mais de dez anos depois, sinto que de alguma maneira reuni o poder para conectar-me com o mundo do nawal, mas não o suficiente para resistir aos implacáveis embates da razão e atender ao que, agora creio, era um encontro de poder; um encontro com o Espírito.
Uma semana mais de intento, mais relatos e mais passes mágicos. Uma nova faceta do trabalho estava na alimentação; segui certos conselhos que Mariví havia recebido do nawal; finalmente havia um princípio a seguir para poder aspirar às verdadeiras possibilidades do caminho do guerreiro:
Limpa-se o corpo, limpa-se o vínculo com o intento.
***
Recordo que íamos caminhando com um pequeno grupo de pessoas; estávamos com o nagual e o seguíamos. Caminhávamos pelo bosque, até que chegamos à borda de um precipício.
Depois de um momento, chegou a ocasião de saltar; recebemos instruções do nawal com respeito a mover o ponto de encaixe (manipular a atenção e percepção) no sonho. Só lembro de me haver lançado ao abismo e sentir o vazio de ir caindo, toda a minha energia e atenção estavam em manipular minha percepção à vontade e evitar chegar ao fundo do abismo.
Finalmente só recordo obscuridade, após o que recordo haver perdido velocidade na queda até um ponto em que descia suave e estavelmente, cada vez mais devagar, até que finalmente toquei a terra; estava em um novo lugar, e não estava sozinho; parece que havíamos mudado de realidade, havíamos mudado de sonho dentro do sonho.
O último relato que Sandra me deixou foi talvez sem grande significado, mas que sem dúvida teve o suficiente poder para deixar uma profunda marca em minha memória: o penetrante olhar do nagual; o olhar de uns olhos que na verdade diziam ter testemunhado mundos impossíveis de nomear.
***
Estava no bosque, era de dia, e o nawal estava comigo; lembro das sombras das árvores, os troncos e sua folhagem projetados sobre o solo; o contraste entre a luz do sol e as sombras era muito marcante, algo que chamaria a atenção de qualquer um.
Nunca esquecerei essas sombras, assim como tampouco esquecerei como o nawal começou a dizer que fixasse minha atenção nelas; assim o fiz. Nisso aconteceu algo completamente inesperado, as sombras começaram a oscilar de um lado para outro!
“Não perca de vista as sombras”, exigiu, “não perca a atenção!”
Comecei a perder o controle.
“Fixe sua atenção!”, insistiu.
Eu as estava perdendo, havia um extremo sentido de urgência no nawal para que mantivesse essa percepção.
Eu não estava conseguindo executar a simples, mas aparentemente importante manobra perceptiva que o nawal me estava pedindo. Não tive a energia nem o poder suficiente; o nawal se impacientou, e já desesperado me disse que o esquecesse, que esquecesse tudo, que se não conseguia fixar minha atenção que o esquecesse.
Pedi-lhe paciência, disse-lhe que ele poderia entender, que Dom Juan devia ter tido paciência com ele no princípio também. Aparentemente, não foi suficiente meu questionamento.
Naquele momento já havia perdido a atenção. Havia perdido a batalha.
***
Continuei envolvido com a mesma intensidade no caminho do guerreiro, continuei trabalhando sem cessar, no entanto, não importa o que fizesse, o nawal Carlos nunca mais voltou a aparecer em meus sonhos.
O grupo estava por se dissolver. A partir desse momento, a luta seria solitária. Entretanto, houve um último relato que conseguiu sobreviver: a morte de “La Gorda”, guerreira impecável, aprendiz de Dom Juan. Havia decidido separar-se do grupo do nagual Carlos. Havia intentado levar todo o seu corpo para o outro mundo; sofreu uma embolia após o esforço. “La Gorda” havia tido um ataque de egomania antes do intento, diante do que Martha fez um sincero questionamento:
“Se ‘La Gorda’ sucumbiu à importância pessoal e morreu, o que pode nos esperar?”
***
Finalmente, um dia, anos depois, voltaria a saber do nawal Carlos. Fui convidado a uma conferência que daria em um teatro do centro da Cidade do México.
São muitas as coisas de que falou nessa ocasião, mas foram dois os aspectos que mais chamaram minha atenção:
1) a extraordinária vitalidade do nawal;
2) a ênfase que colocou em uma situação que nunca plasmaria em seus livros:
Dom Juan, ao partir com seu grupo, havia ficado preso na segunda atenção; a falta de abstração do grupo o havia puxado, e não lhes havia permitido consolidar a viagem definitiva.
Carlos expressou seu profundo desejo de ajudar Dom Juan quando fosse a sua vez de partir. Um dos presentes lhe perguntou se podíamos ajudar Dom Juan, ao que Carlos respondeu:
“Primeiro ajudem-se vocês, salvem-se vocês.”
Como esquecer esse dia? Um belo dia, soube por uma pessoa de uma notícia impossível de ignorar. Disseram-me que a haviam tirado das notícias e do jornal, busquei e só o que encontrei foi um inevitável sentimento de desconcerto:
O famoso e renomado escritor Carlos Castaneda morreu em 27 de abril de 1998 em estranhas circunstâncias.
Imediatamente, busquei refúgio em uma explicação com sentido; quis esclarecer se havia ido em consciência, se havia podido partir na viagem definitiva, ao que me disseram que não, que realmente havia morrido. A partir daqui não posso dizer mais; um profundo e arrasador sentimento inundou todo o meu ser.
Uma noite, tempos depois de meu último sonho com o nawal Carlos, decidi continuar com meu intento. Nessa noite, terminei de executar os passes mágicos, recapitulei e me dispus a dormir.
***
Estava no deserto, sozinho, era uma espécie de chaparral, parecia ser de noite; de repente percebi que em frente a mim se encontrava uma figura sentada com as pernas cruzadas, a uns cinco metros; por sua forma de vestir parecia um índio e usava um sombrero, não dava para ver seu rosto porque tinha a cabeça baixa, mas quando a levantou recebi um enorme impacto, não havia rosto algum!
Só a escuridão ocupava o espaço onde supostamente devia haver um rosto, enquanto todo o resto era visível de maneira normal; parecia que não queria ser reconhecido.
Tinha esta cena à minha frente quando nisso escutei como se dirigiu a mim:
“Eu sou o ser que o mundo conheceu como Dom Juan.”
Apenas me havia dado conta disso quando ele levantou seu braço direito e o estendeu até mim como se fosse elástico, aproximou-se tanto que sua mão ficou a cerca de um metro, mostrando-me o dorso desta com os dedos esticados; foi nesse instante que minha atenção se fixou em pequenas plantas e ervas que trazia em sua mão, como se as houvesse distribuído entre seus cinco dedos.
Em seguida começou a me dizer o seguinte:
“Esta planta serve para isso, esta para aquilo, esta para isso, esta para aquilo, e esta para isso.”
Havia me indicado e apontado com a outra mão as plantas e ervas conforme falava delas. Depois continuou dizendo:
“Tudo isso é o que no mundo ocidental equivale e se conhece como a estrela de cinco pontas.”
Isso foi tudo. A partir dessas enigmáticas palavras minha atenção começaria a minguar até perder-se completamente no reino da inconsciência.
Acordei completamente sobressaltado, sem dúvida podia ter sido outro produto de meu inconsciente; entretanto, havia um detalhe: a informação parecia ser muito específica, e eu até aquele momento de minha vida não tinha conhecimento algum do que era a estrela de cinco pontas. Nesse mesmo dia e o mais rápido que pude decidi averiguar o que pudesse acerca de, até aquele momento, tão misterioso símbolo.
Após a busca pude encontrar algo, um folheto explicativo do pentagrama, mas qual não seria minha surpresa quando li que o pentagrama é conhecido como a estrela de cinco pontas, e que seu significado é o homem auto-realizado, assim como o domínio do homem sobre as forças da natureza!
***
O segredo de um guerreiro é que ele crê sem crer. Mas obviamente um guerreiro não pode só dizer que crê e deixar assim. Isso seria muito fácil. Somente crer o exoneraria de examinar sua situação. Um guerreiro, quando tem que envolver-se com o crer, o faz como uma escolha, como uma expressão de sua mais íntima predileção. Um guerreiro não crê, um guerreiro tem que crer - Porta para o Infinito.
Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que o nawal Carlos e Dom Juan mantiveram a consciência de si ao partir. Hoje, mais de dez anos depois, tenho que crer que algo extraordinário me sucedeu.
Se alguma vez minha vida se modificou, foi naquela época. Se alguma vez a magia e o Espírito bateram à minha porta, foi naqueles dias. Assim que hoje, anos depois, só posso intentar unir-me em Espírito à ideia e ao propósito que o nawal Carlos e seu grupo compartilhavam:
Explicar o mundo que Dom Juan nos fez herdar é nossa expressão final de gratidão para com ele, e de nosso propósito de continuar buscando o que ele buscava: a Liberdade.
***
Você está em um ponto terrível. É tarde demais para se retirar, mas cedo demais para agir. Tudo o que pode fazer é testemunhar. Está na miserável posição de uma criatura que não pode regressar ao ventre da mãe, mas tampouco pode sair e agir. Tudo o que uma criatura pode fazer é testemunhar e escutar os estupendos relatos de ação que lhe contam. Você está agora nesse ponto preciso. Não pode regressar ao ventre de seu velho mundo, mas tampouco pode agir com poder. Para você só há testemunhar atos de poder e escutar contos, contos de poder - Porta para o Infinito.
[1] Tradução: Adriana Northrup
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