sexta-feira, 21 de março de 2025

As 4 Faces da Deusa: Tantra e Sexo, por Nuvem que Passa.




Quando vamos abordar a questão do feminino temos que levar em consideração muitos aspectos.

Por esta razão nos artigos anteriores procurei localizar o tema dentro de um contexto mais amplo, demonstrando que estamos dentro de uma cultura de valores patriarcais.

Essa cultura patriarcal é um fenômeno histórico, que se desenvolve no tempo e no espaço numa interação dialética entre vários fatores, fatores esses que, a meu ver, estão relacionados em diversos graus de complexidade.

Quando as novas gerações em seu processo de amadurecimento absorvem os valores que lhe são transmitidos pelas gerações no poder, via de regra, o fazem por imposição.

Sendo mais claro.

Raramente permitem a uma criança que escolha de fato sua linha de pensamento, sua forma de ser.

O que acontece é que a criança vai absorvendo e reagindo aos estímulos externos.

O modo de viver do pai e da mãe, do ambiente familiar, a classe social, as condições de vida e a linha religiosa que o grupo familiar segue vão dando a criança referenciais sobre como deve agir no mundo.

Há um discurso educacional, informal no lar e formal na escola, mas este discurso está muitas vezes em grande contradição com os atos que as pessoas praticam.

Assim a criança aprende que mentir é errado, mas a medida que cresce surpreende seus pais em mentiras e há ainda contradições mais fortes, como a mãe que certa vez vi gritando para a filha: “Não grita!”.

No ambiente escolar temos ainda problemas mais sérios pois ainda é raro o número de escolas que, de fato, são centros de “educação”.

A maioria pode ser enquadrada como centros de condicionamento.

A questão da sexualidade é um tema polêmico pois é uma das áreas onde o ser humano mais encontra bloqueios.

Não podemos nos esquecer que a cultura dominante sempre considerou o sexo sinônimo de pecado.

A educação sexual na civilização dominante é tremendamente artificial e tardia, na maioria dos lares não há um diálogo aberto e franco quanto a esta temática. A relação entre emoção e sexo é apenas uma das facetas desta multifacetada questão.

No ato sexual encontramos o homem novamente preocupado em exercer seu poder dominador e com os modismos recentes há agora uma exigência do homem para que a mulher sinta prazer, uma cobrança, pois sente o macho que sua condição de conquistador estará ameaçada se não conseguir produzir prazer na parceira.

As muitas faces da dominação masculina.

Antes era pecaminoso e vergonhoso a mulher sentir prazer, agora ela “tem” que ter prazer para o parceiro sentir-se o poderoso sedutor.

Assim, o homem cobra da mulher o prazer, o gozo para garantir que seu papel é perfeito, ele não apenas possuí a mulher, mas é tão poderoso que a faz sentir prazer.

Esse é o enfoque para muitos.

“Eu dou prazer a minha parceira”.

Aliás, os termos associados ao ato sexual denotam bem como ele é encarado. “Possuir uma mulher”, “fazer amor”; são dois termos que revelam a profunda incompreensão por detrás da sexualidade. Pensem nos outros!

Não podemos deixar de lembrar que existe um componente biológico, instintivo no sexo, regulado por hormônios e mecanismos outros puramente ligados a continuidade da espécie.

Como tantrista gostaria de abordar a sexualidade neste artigo.

O renascimento do feminino pode nos levar a um novo enfoque da questão sexual.

Novamente gostaria de lembrar que considero o renascer do feminino como algo muito importante não só às mulheres, mas também a nós homens que podemos recuperar o contato com nossa anima em toda sua amplitude e assim recuperar nossa condição de homens, perdida quando a civilização dominante nos limitou a sermos machos.

Mas o homem ao dominar o mundo impôs também quais seriam os arquétipos permitidos a mulher, assim a mãe se tornou a via predominante, ao lado da virgem.

A mulher pode então ser mãe, ou ser pura e virgem, mas é desprezada, de forma explicita ou implícita se ousa aderir a outros arquétipos, não oficiais.

Antes de mais nada o que é o Tantra?

Sob este termo existem linhas tão contraditórias que seria bom começarmos por estabelecer o que entendemos por Tantra.

Ao contrário das religiões que conhecemos, alguns ramos orientais não colocam o sexo como algo pecaminoso ou maligno.

Consideram que o sexo, como algo dotado de poder, pois é capaz de gerar uma vida, coisa que você nunca conseguiria rezando, por exemplo.

Como dizia um ocultista que conheci, com seu jeito irreverente:

- “Reze trinta terços ao lado de uma mulher e ela quando muito dormirá, mas uma única relação sexual concluída e o milagre da vida se manifesta.”

Para entendermos o Tantra temos de compreender certos paradigmas das culturas que o adotam.

A visão do ser humano é um dos pontos fundamentais.

Para o mundo racionalista o ser humano é um conjunto de átomos que se organizaram em moléculas que se organizaram em organelas, que se organizaram em células, que se organizaram em tecidos, que se organizaram em órgãos que se estruturaram num organismo.

No artigo anterior citamos a visão mecanicista ainda dominante no pensamento científico, dentro da qual somos apenas máquinas complexas, compostas de partes que se juntam e criam um corpo.

Assim faz parte dos instintos, uma espécie de “programa” dessas máquinas, estabelecer um conjunto químico de estímulos e respostas que levam um homem a procurar uma mulher e a liberar dentro dela seu sêmen para que os genes se encontrem e a vida continue.

Essa abordagem nada tem a ver com a visão de outros povos que consideram presente no ser humano um outro aspecto, algo que podemos chamar de espiritual, embora este termo também tenha sido muito deturpado.

Note que as religiões mais conhecidas apenas citam que existe um algo a mais no ser humano, confusamente chamam esse algo a mais de “alma” ou “espírito” e o contrapõe ao corpo.

Nas religiões oficiais a alma é algo que pode se salvar ou se perder pela eternidade se o seguidor acata ou não as verdades prontas que a religião lhe dá.

“Aceite sem questionar nossas verdades e será salvo, questione e penará no fogo eterno.”

No fundo esse é o regulamente implícito na maior parte das religiões.

Ainda, para uma grande maioria dos seres, mesmo entre os tidos por “esotéricos” o corpo é o veículo impuro e imperfeito onde a alma está “presa” neste mundo de dor e sofrimento.

Assim negar o corpo e seus “desejos” impuros é o objetivo mais ou menos confesso de muitos, e, por extensão, o sexo faz parte das impurezas a serem “sublimadas”.

Para os xamãs e certos ramos do misticismo oriental somos muito mais que isso.

Somos um todo complexo, energia em vários graus de manifestação.

Essa energia é dual, não em oposição, mas em complementação.

Assim o corpo físico é a densificação de uma outra realidade, uma realidade que podemos chamar de energética sutil.

Dentro do conceito físico moderno, que matéria é apenas energia condensada, fica mais claro, quer falemos do corpo físico quer de sua contraparte energética, que estamos apenas falando de dois aspectos de um mesmo fenômeno.

Num mundo onde sabemos que a luz e o elétron é um fenômeno complexo que se manifesta ao mesmo tempo partícula e onda fica mais fácil lidar esse aparente paradoxo.

Assim como o gelo e a água num copo são dois estados diferentes da mesma substância o corpo de energia e o corpo físico são dois estados diferentes da mesma energia universal, atuando em meios distintos, mas mutuamente equilibrados.

Mas cada um desses dois planos tem suas leis e suas peculiaridades, entretanto não se opõe, complementam-se.

Em nenhum momento o puro misticismo apoia a divisão esquizofrênica que se estabeleceu entre corpo e espírito.

Para podermos de fato entrar em níveis mais amplos de consciência, nos chamados estados amplificados de consciência, ou ainda, nos estados de consciência intensificada precisamos de energia.

E aqui uma analogia pode nos ser útil.

Os elétrons ao redor dos núcleos atômicos não estão aleatoriamente distribuídos, mas existem áreas que eles tem a tendência de existir.

Essas áreas são chamadas de orbitais.

Para um elétron passar de um orbital mais perto do núcleo para outro mais distante ele precisa ter energia para isso.

Analogamente dizemos que a percepção para ir a níveis mais amplos de consciência precisa ter energia.

Sabendo o imenso poder do sexo fica claro que podemos dele tirar essa energia que necessitamos.

Estamos num campo científico, não o cientificismo estreito, mas ciência no sentido de conhecimento acumulado por observação e experimentação.

As religiões conhecidas são extremamente moralistas e se baseiam apenas em dados morais absolutos para falar de evolução.

A ciência dos iniciados, dos yogues, dos budistas esotéricos, dos lamas e dos xamãs tem um aspecto ético sem dúvida, mas vai muito mais além.

Sabe que estados mais amplos de consciência são atingidos por trabalhos específicos que envolvem a ampliação da energia pessoal.

Dois caminhos existem àquele que deseja ir a estes níveis mais amplos de consciência, não ocasional e acidentalmente, mas de fato nele mergulhar e aí viver.

Um é o celibato.

É um caminho válido para alguns e caracteriza-se pelo abrir mão da sexualidade, levando assim a energia a fluir para dentro e a sustentar os novos estados perceptivos.

Entretanto existem aqueles que mesmo sem abrir mão da sexualidade continuam no caminho da ampliação da consciência.

A estes o Tantra é a ferramenta adequada para que possam aprender a canalizar sua energia ao invés de desperdiçá-la inconscientemente.

O Tantra tem sido usado atualmente por muitos como desculpa para uma sexualidade desequilibrada por parte de indivíduos que possuidores da preguiça e da arrogância típica não desejam fazer nenhum trabalho sobre si mesmos e acreditam que a evolução acontece por inércia.

O aspecto sexual é um dos lados desse complexo caminho.

A meditação, os pranayamas (exercícios respiratórios) e outros tantos exercícios, além de um profundo trabalho psicológico são partes importantes e inseparáveis do Tantra, sem os quais teremos apenas desequilíbrio.

Não há como aprender Tantra em livros.

Como todo os conhecimentos profundos e dotados de grande poder o Tantra exige estudo e supervisão.

Aprender Tantra por livros é tão tolo e perigoso como se alguém tentasse aprender a nadar em um rio de forte correnteza a partir de um curso por correspondência.

Fomos criados em uma civilização muito desequilibrada e é óbvio que nossa psique ficou muito afetada por isso.

Portanto temos que trabalhar com nossa própria realidade interior antes de dar qualquer passo nesse caminho.

Certo dia, quando estava no começo de meus estudos, preparávamos um canteiro para plantar.

Cavamos um buraco e peneiramos toda a terra antes de montar o canteiro.

Quando estávamos colocando o adubo orgânico a pessoa que nos orientava nos alertou para o fato de que se não houvéssemos antes peneirado a terra, liberado das ervas que não serviam aos nossos propósitos, aquela adubação estaria na verdade fortalecendo da mesma forma as ervas medicinais que plantávamos e as ervas que iriam sufocá-las.

Essa imagem volta agora a minha mente intensamente quando abordo a questão de prepararmos nosso terreno psíquico antes de o adubarmos com a potente energia sexual.

Como homem não compreendo o treinamento feminino para o Tantra, embora saiba que é profundamente diferente do nosso.

Mas sei que nesta primeira fase ele é idêntico.

Homens ou mulheres temos que começar nosso trabalho pelo psicológico.

Temos que remover aquilo que não somos, que foi imposto pelo condicionamento desequilibrante que chamamos de educação.

Homens ou mulheres somos entidades complexas, essências adormecidas envoltas por personalidades que se desenvolveram em respostas aos estímulos do meio.

Se concordamos que o meio é desequilibrado diferente não pode ser o estímulo que dele recebemos e menos pior não é o efeito.

Fica pois o alerta aos que dominados por uma imaginação doentia veem no Tantra uma nova forma de satisfazer suas taras sexuais.

Para um tantrista a mulher é o mistério supremo.

Gosto de comparar o Tantra ao surf.

No surf convencional você está ali, esperando antes da rebentação sua onda.

De repente ela vem, te leva, você faz parte da onda, flui com ela, mais e mais e mais e de repente ela se vai e acaba.

É uma rápida queda.

Como no sexo, quando vem a ejaculação.

Mas no Tantra é como se a onda não acabasse, mas em uma possibilidade espiral se tornasse mais e mais ampla, engolfando sua percepção num êxtase sublime, onde a mente concreta se cala, onde somem as fantasias e cada célula do corpo entra numa ressonância orgástica incapaz de ser expressa em meras palavras, estas toscas ferramentas nas quais nos apoiamos para descrever o que vai tão além delas.

Nada mais distante da vida que a fantasia.

Quando fantasiamos ao invés de estarmos presentes aqui e agora estamos jogando pela janela este dom maravilhoso, mágico que é o momento presente, único, irrecuperável.

Também no Tantra a fantasia inexiste.

É a contemplação entre os amantes, o observar do que são de fato, o brilho do olhar trocado, progredindo para as carícias, que vão pouco a pouco alimentando o fogo alquímico do sexo.

A mulher tem uma característica que noto é ignorada por grande parte delas.

Enquanto nós homens desde a puberdade até a andropausa somos sempre férteis, as mulheres todo mês tem um período no qual não são férteis.

Isso é muito revolucionário.

Vocês mulheres tem um período no qual estão livres do domínio biológico do instinto, não há um estímulo hormonal gritando:

“ Misturem os genes, continuem a espécie.”

A profundidade dessa informação não foi ainda suficientemente compreendida pela maioria.

Eu posso apenas dizer o que vejo nas mulheres xamãs com as quais convivo, que sabem ser a famosa T.P.M. (tensão pré menstrual) apenas um sinal da imensa porta que pode se abrir para todas as mulheres nesse período.

O nível de poder que observo nas minhas companheiras nesse período é algo que não posso descrever aqui, apenas citar, numa pálida alusão a este ser maravilhoso chamado mulher que felizmente pude aprender a respeitar e amar me libertando do condicionamento desta cultura decadente que ainda nos domina.

Portanto para um verdadeiro tantrista a mulher é o mistério supremo.

É a face amante da Deusa, que nos permite ir além de nossos limites, que nos nutre de uma nova energia, a qual não temos como encontrar em outra fonte.

Se a face mãe da Deusa nos amamentou quando éramos indefesas crianças é a amante que nos dá esse novo alimento que nos torna homens de fato, orgasticamente felizes.

A felicidade é profundamente ligada a realização orgástica, mas a realização orgástica não é apenas sexual.

Sugiro uma leitura atenta da obra de W. Reich para os que desejam ir mais fundo nessa questão partindo do enfoque psicanalítico.

Reich é importante porque ele é um cientista, que esteve dentro da psicanálise tradicional e depois foi se ampliando, indo mais longe, constatando e descobrindo o lado concreto do processo, o corpo, a energia, os “nós” que o corpo pode apresentar interrompendo o fluxo equilibrado da energia da vida.

Reich e Osho foram dois grandes nomes que abordaram a sexualidade de forma ampla e aberta e ambos foram mortos por esta coisa terrível, esse sindicato das sombras que mantém o poder nos Estados Unidos da América.

Nossa relação com a energia pessoal é muito equivocada.

Se não temos energia nos sentimos enfraquecidos, sem resistência.

Mas quando a energia está presente muitos se sentem agitados, sem saber o que fazer com ela.

Quantas vezes ouvimos frases do tipo: “Preciso descarregar um pouco, estou com muita energia.”

E para muitos o sexo é essa via de descarregar.

Note assim que tais pessoas praticam o sexo no sentido oposto do tantrista.

Eles se “descarregam” com o sexo, enquanto um Tantrista carrega-se.

Este carregar é importante e aqui está uma das chaves que os Xamãs vêm quando tentam entender a subjugação da mulher pelo homem.

Grande parte dos homens não conhece o prazer além do prazer animal, puro instinto.

Como já citei atrás o homem tem uma constância do período fértil.

É a velha justificativa masculina para o comportamento volúvel e infiel que a grande maioria apresenta.

Eu entendo bem isso...

Assim muitos homens vão ao sexo para “descarregar” tensões.

Exercer sua vontade de poder, domínio ou manifestar outros pontos de desequilíbrio, pois não podemos deixar de considerar uma análise fundamental da sociedade dominante.

Ela é neurótica.

E essa neurose vem implantada em todos os cidadãos e cidadãs ajustados e ajustadas ao sistema.

Ajustados!

Neste sexo feito com muita fome, com sede terrível, num jogo onde fantasmas interiores, fantasias e projeções acompanham o estimular dos corpos em níveis crescentes de tesão quem comparece para a grande fusão, que é o orgasmo, não é a essência mas os egos, as máscaras, as personalidades.

Qual o problema?

Temos também muitas personalidades, a social, a familiar, a do trabalho, a de amantes.

Como somos como amantes?

Temos essa clara noção dessa face do Deus e da Deusa?

Somos o Galhudo, o homem viril e guerreiro que na plenitude de seu poder e de sua vontade se funde à amante, à Terra, à mulher plena que na plenitude de seu poder e de sua vontade é parceira na dança que ambos juntos agora executam?

Esse tipo de consciência, de fusão com o Deus e a Deusa não pode ser alcançado pela personalidade.

Embora uma falsa personalidade possa ser gerada tomar contato com esses arquétipos dessa falsa personalidade é um perigo.

Por isso se recomenda antes de ir para a fase de trabalho no Tantra o estudo atento de si mesmo, para que saibamos como somos de fato e avaliarmos com segurança se temos disciplina e estrutura para o que representa o Tantra.

Pois o subir das energias pela espinha, pelos 3 canais que ali estão, é apenas um aspecto do processo.

Há muito mais que isso.

Depois que o cérebro é ativado é que começa o trabalho mais profundo.

O cérebro também é um útero e se for fecundado pela energia que não mais se perde na ejaculação permite a entrada da consciência em outros níveis, uma volta ao Jardim.

Mas isto são mistérios que palavras não conseguem abranger.

E é importante entender que se não há um trabalho consciente com a energia acumulada é melhor nunca se aproximar do Tantra, pois seria o mesmo que aumentar a pressão dentro de um recipiente frágil.

A explosão seria o resultado final.

Para os que criticam os celibatários, inclusive certas correntes que negam a possibilidade de desenvolvimento espiritual por este caminho gostaria de lembrar que a Terra também é mulher e assim é não apenas mãe, mas também amante e um xamã pode dela ter o mesmo que um tantrista tem de uma mulher.

Pelo que sei as mulheres podem também ter no Sol seu parceiro (ver a história de Kunti), mas aqui também entramos no campo dos mistérios.

Não segredinhos tolos, jogos de poder com palavras, mas quando falo mistérios falo de níveis de conhecimento que só podem ser vivenciados, onde todo falar é apenas aludir, nunca explicar.

Isto é dito de forma muito superficial, pois é parte do mistério que os Xamãs dominam.

Mas estou falando do celibatário equilibrado, não do reprimido.

O Tantra pode ser usado como perversão e o celibato como repressão, mas o fato de poderem ser deturpados não torna esses caminhos, quando equilibradamente praticados, menores.

Como tudo pode ser deturpado o Tantra também o pode de forma consciente ou inconsciente.

Uma das afirmações mais polêmicas que os videntes toltecas fazem é de que a mulher não apenas mantém a vida biologicamente gerando e amamentando suas crias.

Quando um homem se relaciona sexualmente com uma mulher no momento da ejaculação ele deixa tentáculos energéticos dentro dela, que o alimentam de energia por 7 anos.

Dado a complexidade deste tema apenas o cito, como alerta para as mulheres que ainda não associaram sua condição de subjugação energética em nossa sociedade com o fato de os homens a possuírem.

A liberdade sexual é algo bem distinto da libertinagem.

Não somos moralistas, repudiamos mesmo essa abordagem, apenas estamos falando de equilíbrio.

A sexualidade é um tema sagrado, no mais puro sentido deste termo.

Estes raciocínios são importantes para aqueles que desejam trilhar um caminho de desenvolvimento mais profundo, iniciático.

Para uma vida “comum” não têm nenhum valor, não estão nessa esfera.

Assim como a disciplina de um atleta é desnecessária a uma pessoa de vida “normal”, mas ainda assim uma caminhada e uma alimentação balanceada ajuda a todos.

Insisto: liberdade é algo bem diferente de libertinagem.

A famosa frase: “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei” tem sido citada como os crentes citam frases da Bíblia.

Fora do contexto onde foi gerada.

Há que existir um “Tu” pleno em vontade, que não é desejo.

E a maioria das pessoas é um amontoado de egos em conflito, de estilos de agir, emocionar e pensar que lhes foi imposto.

Quando estamos num caminho iniciático, como o é o Tantra, outras considerações se fazem presentes que vão muito além do senso comum dominante em nossa cultura consumista.

O poder da mulher é fascinante.

A aparente fragilidade e desequilíbrio que encontramos em muitas mulheres tem a mesma fonte do aparente subdesenvolvimento que as populações negras estão presas em nosso mundo ocidental.

A linha dentro da qual foram criadas leva a este estado.

Há um absurdo citando o atraso das populações negras como karma de lemurianos.

Isso é apenas preconceito disfarçado.

Cada ser é o momento e pode pelo momento trabalhar o que vem até ele nos fluxos do existir.

Mas se é criado dentro de um contexto que não lhe permita o pleno desenvolvimento de suas capacidades e mais, reprime e cria condições para prejudicar esse desenvolvimento é óbvio que a causa desse efeito não precisa ser buscado em passados tão remotos.

O mesmo ocorre com a mulher. Uma mulher é enfraquecida desde cedo, limitada e muitas vezes tem pobres exemplos submissos e frágeis dentro do seu lar para se espelhar.

Como a população negra, ainda se recuperando da condição desumana a qual foi exposta por tanto tempo, isolados de sua linha cultural e doutrinados para se sentirem inferiores.

A analogia devia ser bem meditada sobre quem quer entender técnicas de dominação e limitação do desenvolvimento.

Embora usem agora outras tecnologias será que os donos do mundo nos vêm de forma diferente?

A energia sexual é a mais alta energia que o organismo gera em condições naturais.

A alquimia do Quarto Caminho a chama de “H Si 12”.

Assim é óbvio que este tremendo poder deve ser melhor compreendido.

A tremenda energia envolvida no sexo pode ser canalizada ao invés de ser apenas gasta.

O homem durante a relação sexual vai se estimulando mais e mais, vai sendo estimulado mais e mais até que em um dado momento uma resposta neuro-química libera uma descarga do fluído seminal, onde os espermatozóides são lançados no interior da mulher começando a misteriosa e bela viagem da qual, apenas um dos milhares envolvidos, vai fecundar o óvulo dando início a uma nova vida.

Este é o caminho comum.

Mas aquele que pretende seguir o caminho da iniciação deve saber que terá que ir muito além disso.

A natureza nos preparou para irmos até um certo ponto, onde atingimos um estado de desenvolvimento de acordo com o nosso papel a ser desempenhado dentro do grande organismo cósmico.

Pense nisso, ser parte de um grande organismo cósmico.

É assim que cada xamã ou um iniciado de qualquer caminho profundo se sente.
Se quisermos ir além temos que trabalhar para isso.

Com dedicação e disciplina.

A sexualidade é um campo muito importante dentro deste contexto.

No homem a condição de excitação é observável, pois se caracteriza pela ereção do pênis.

Assim o homem só consegue realizar o ato sexual completo se estiver excitado, mesmo que fantasie para atingir essa excitação quando a parceira não o estimula.

A mulher pela sua condição receptiva pode participar do ato sexual mesmo não estando estimulada.

A famosa cena na qual o homem afoito “possuí” uma mulher, que enquanto geme e pede mais olha no relógio para saber se o ‘tempo’ cobrado já passou, faz parte do folclore cinematográfico de nossa cultura.

Esse aparente domínio do homem sobre o ato sexual também permite a mulher ser vítima de violências inconcebíveis por parte do macho dominador nas mais diferentes culturas.

O homem macho, que é diferente do homem masculino, tem no sexo uma de suas bases de afirmação.

Desde a adolescência é a quantidade de conquistas e não a qualidade que os homens costumam apresentar como prova de sua “virilidade”.

Me lembro de meu próprio exemplo, da necessidade que tinha e a via em meus amigos, de “catar umas minas”.

Era um jogo social, uma atividade em que nos reuníamos em certos lugares determinados, impostos socialmente também, depois armávamos o que ia rolar e íamos caçar.

No outro dia na piscina do clube, na casa de alguém ou num bar era o momento dos comentários sobre o que tinha ocorrido, o que tinha “ rolado”.

Noto em grande parte dos homens com os quais convivo que não houve um amadurecer dessa fase.

Pelos papos, pela forma que colocam suas “conquistas” fica claro que ainda abordam o tema sobre o mesmo enfoque.

Aliás. insisto sempre que poucos homens abandonam a adolescência, pois as questões que observamos ser o centro de gravidade nas questões masculinas são as mesmas desde a adolescência, apenas mudando matizes, mas permanecendo na mesma cor.

E é a maturidade que marca o momento no qual a qualidade vale mais que a quantidade.

Assim tenho percebido como tantrista que a mulher foi tragada pela famosa revolução sexual e como em outros campos acredita que sua liberdade é apenas imitar o homem em seus desatinos.

Depois de se sentir o prazer tântrico o outro nível se torna muito insonso.

A feminilidade não é fragilidade, muito pelo contrário, é um outro nível de manifestação de um poder sublime.

Uma mulher plena que tive o verdadeiro prazer de conhecer certa vez me deu um exemplo da força feminina, comparando-a a luz do sol.

O mesmo poder que mantém planetas girando ao seu redor é capaz de atravessar a vidraça sem quebrá-la e tocar suavemente a face da criança que dorme.

É esse poder que sentimos acordar no sexo tântrico, quando nos unimos num nível muito profundo a parceira, quando nossas almas comungam e nossos corpos se fundem.

Quando junto com o prazer das zonas erógenas se estimulando, cada célula do corpo descobre ser também erógena, cada respiração, cada murmúrio é ampliar o prazer que cala a mente, traz paz ao coração e na coluna ereta, que não é reta, pois o próprio mundo é curvo, flui o poder seminal.

Olhos se tornam também fogueiras, onde mergulhamos no mistério do feminino, que pode ser citado, mas só é compreendido se experimentado.

E não tenho dúvidas que muitos homens ainda fazem a guerra por nunca terem sido amados por nunca terem sido felizes, em seu desequilíbrio é como se vingam de nós que o somos.


Guerrero/Nuvem que passa


Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Soledad Ruiz.

As Testemunhas do Nagual

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com a xamã, curandeira, mestra e atriz de cinema Soledad Ruiz. Conta-nos como conheceu Dom Juan Matus anos antes de conhecer Carlos Castaneda, de quem foi amiga íntima desde os anos 70.

A princípio se mostrou reticente, porém, quando ouviu que era um trabalho para preservar a memória de Carlos, concordou, mas fez um estranho comentário: “As histórias não importam, o que importa é o Espírito”.

Seu testemunho começa quando em certa ocasião ela foi, junto com outro discípulo, visitar sua mestra, Magdalena Ortega, que era uma bruxa espetacular, tinha grandes poderes e realizava verdadeiras façanhas, mas essa é outra história.

_ Naquele tempo eu já havia lido o primeiro livro de Carlos que acabava de sair em inglês e comentei a respeito com minha mestra e ela me contou que era comadre de Dom Juan Matus. A princípio não quis acreditar e ela, que era uma tremenda vidente, deve ter percebido, pois replicou: “Algum dia eu a apresentarei a ele.”

Em certa ocasião, fomos visitá-la eu e outro de seus alunos. Ela nos disse que Dom Juan estava para chegar com outras pessoas que, suponho, eram seus aprendizes. Enquanto os esperávamos, disse-nos:

“Vou lhes dar uma tarefa: que reconheçam dentre todos os que chegarem qual deles é Dom Juan. Depois escrevam justificando sua conclusão e voltem amanhã.”

Ordenou que não falássemos entre nós sobre nossas impressões até nos encontrarmos com ela no dia seguinte.

Os visitantes chegaram tarde e se justificaram dizendo que haviam se perdido. Do quarto ao lado escutamos como a mestra lhes dava uma amistosa repreensão. Quando entraram na sala, observamos que eram cinco ou seis pessoas de idade avançada, nos levantamos para sair e ela nos apresentou por nossos nomes: “Ela é Soledad, ele é Milosh”, mas não mencionou os nomes dos visitantes.

Assim que os vi, pensei: “Dom Juan deve ser o que está sentado na poltrona”. Nós os cumprimentamos com movimentos de cabeça e ficamos parados, enquanto eles comentavam o engraçado da situação, pois haviam caminhado longo tempo de um lado para outro sem encontrar a casa. Isso aconteceu porque a mestra vivia em Amsterdam, uma rua circular que em outros tempos tinha sido o Jockey Club da Cidade do México.

Nós os observamos durante um breve momento, depois nos despedimos e fomos embora. No dia seguinte regressamos à casa da mestra para comentar nossa dedução.

Eu descobri Dom Juan por uma só razão: o olhar. Seu olho esquerdo estava desviado, e afirma-se que essa é uma característica dos xamãs, mas é óbvio que o fato de não a ter não significa que a pessoa não seja xamã. É só uma convenção. Disse a mim mesma: que vou escrever? De modo que não levei a minha tarefa. Em compensação, Milosh preencheu três páginas completas com suas razões chegando à mesma conclusão que eu.

Ao escutar nossas deduções, a mestra me disse: “Sim, você atinou, esse era Dom Juan. Você também, Milosh.”

Depois nos perguntou como o vimos vestido. Eu lhe respondi: “Tinha um estilo camponês, com calças de gabardine, uma camisa comum e uma chamarrita.”

Nesse momento Milosh e eu nos demos conta de algo extraordinário: ele o havia visto de outro modo, com um terno elegante. Ficamos assombrados, perguntando-nos como podia ser isso.

Afirma-se que um dos poderes que pode ter um xamã é deixar-se ver como quer que o vejam.

Foi somente anos depois que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Castaneda.

Carlos se interessava muito pela tradição indígena do México. Eu o conheci por esse motivo. A primeira vez que me encontrei com ele foi em 1974, em um estúdio de dança na colônia Del Valle compartilhado por uma bailarina de dança moderna e um capitão de dança conchera tradicional chamado Andrés Segura.

Andrés tinha uma mesa de tradição chamada Santo Niño de Atocha. Um dia me convidou para uma sessão de cantos, e ficamos tocando a concha e cantando louvores, como é habitual nas cerimônias dos dançarinos. Nisso chegou Carlos Castaneda, que se integrou à atividade e ficou escutando muito atento os louvores. Depois conversamos com ele e ele fez muitas perguntas sobre aspectos da tradição, e finalmente nos convidou para comer no restaurante chinês da Zona Rosa.

Em determinado momento, contei a Carlos que havia conhecido Dom Juan um par de anos antes, graças à mestra Magdalena. Ao escutar isso, seus cabelos se eriçaram, olhou-me com um interesse extremo e me disse: “Olhe, posso lhe fazer uma visita em sua casa?”

Eu, que estava enfeitiçada por seu livro que acabava de sair em espanhol, respondi: “Encantadíssima!”

Ao observar meu entusiasmo, ele acrescentou: “Pois, se você quiser, vou esta noite mesmo!”

Eu lhe perguntei: “Você se importa se eu convidar três amigos que estão muito interessados nos assuntos da tradição?”

Ele concordou com a ideia, de modo que liguei rapidamente para meus amigos e os avisei. À esposa de um deles eu disse: “Fulana, em troca do convite, faça as tortas, porque acredito que vamos ficar até tarde e pode nos dar fome. Eu faço os refrescos.”

Assim fizemos.

Carlos chegou cerca de 9 horas da noite e foi-se às 2 da madrugada. Ficou fascinado com as tortas e comeu o quanto pôde.

Na noite seguinte voltou, não sei se para conversar ou pelas saborosíssimas tortas. Durante três dias seguidos veio cada noite e nos falou de coisas incríveis. Quando teve que regressar a Los Angeles, combinamos de nos ver de novo quando ele retornasse.

Assim começou nossa relação. Ele vinha ao México, dava suas conferências, e ao terminar, à hora que fosse, ia para minha casa. Ele era um grande conversador, suas histórias eram infinitas, de durar a noite toda. Às 2 ou 3 da manhã comíamos um pão com iogurte, mudava o tema por um instante e conversávamos sobre coisas triviais. Logo voltávamos ao assunto. Quando o dia clareava, ele olhava seu relógio e exclamava: “Oh! Já me vou!”

Às vezes me avisava de Los Angeles: “Soledad, vou ao México e busco você para nos vermos à tal hora.”

Entre nós se desenvolveu uma relação sumamente fraternal, inclusive, me fez uma dedicatória em um de seus livros – creio que “O Presente da Águia”: “À única irmã que o poder me deu.”

Contou-me seus antecedentes, disse que era brasileiro. Por alguma razão que não quis contar, seus pais não o criaram, seu avô o recolheu sendo ainda muito criança e o levou para a Argentina. Dali foi para Los Angeles.

Contou-me anedotas do avô, de como, quando tinha 12 anos, ele o incitou a conhecer mulheres, dizendo-lhe que já estava na idade, embora fosse ainda um garoto.

Um dia, ao voltar de uma aventura com uma mulher, se queixou: “Ai, vovô, aquilo das mulheres cheira muito mal!”

O avô gritou: “Idiota, esse é o odor da vida!”

Confessou que primeiro as mulheres lhe davam nojo, mas depois se tornou o mais mulherengo. Contou-me uma enorme quantidade de aventuras que havia tido com mulheres. Um dia começou até a me galantear. Eu lhe disse: “Cuidado, Carlos, que entre nós isso seria um incesto!”

É que nos tratávamos como irmãos. Na verdade eu o amava muito, com um amor fraternal.

Um dos nossos locais de encontro eram os caríssimos restaurantes aos quais me convidava. Ele gostava de comer muito bem. Pedíamos não sabe quantas coisas, e comíamos tudo! Depois, nos entretínhamos tentando adivinhar que mensagem nos diziam os objetos que estavam sobre a mesa.

Algo que tenho que destacar é que jamais, em nenhuma das tantas conversas que tivemos, ele adotou uma atitude de superioridade. Não se sentia nada excepcional, apesar de sê-lo. Nunca se fez de sábio, de audaz. Ao contrário, sempre exclamava: “Rechórcholis! Mas... em que é que eu fui me meter?”

Contava-me como, no início de seu aprendizado, fazia papel ridículo constantemente, devido à sua importância pessoal, e de como Dom Juan lhe baixava a crista. Uma das histórias que sempre repetia com prazer, morrendo de rir de sua própria estupidez, é aquela de quando se atreveu a comparar-se com Dom Juan:

“Tive a audácia de lhe dizer que éramos iguais, mas no fundo eu me sentia superior. Imagina: um chaparro (baixinho e rechonchudo) horroroso pretendendo que não era igual a Dom Juan porque tinha um título acadêmico! Como me ocorreu dizer-lhe isso? Ele me respondeu: ‘Não, não somos iguais em nada, eu sou um homem de conhecimento e você é um idiota.’ Não sabe a vergonha que senti!”

Como recurso para controlar sua importância, Carlos zombava de si mesmo, de sua estatura e aparência. Ríamos durante horas com ele, observando as maneiras cômicas como fazia sua própria caricatura.

Outra coisa que se notava nele é que sentia uma enorme responsabilidade por ser o transmissor de todo um sistema de ideias, estava preocupadíssimo com isso.

O que mais me causa impacto no ensinamento de Carlos não é sua descrição do Universo, porque cada um tem a sua, segundo suas próprias faculdades de percepção. O que eu considero de grande efeito social e religioso é o tema dos temores, de como o homem se impõe limites a partir do medo do fracasso, da morte, da solidão ou da pobreza. Estes são nossos verdadeiros inimigos, limpar a vida dos medos é um avanço extraordinário.

Carlos constantemente me falava de suas dificuldades, do enorme desafio que significava para ele aceitar plenamente o sistema de pensamento que lhe propôs Dom Juan. Uma vez me disse que os medos sociais, sobretudo o de não ser reconhecido e querido pelos outros, são algo de verdadeiramente demolidor, porque nos impedem de nos reconhecermos como infinito: “Quando você deixa de ter esses medos, pode lançar-se no abismo, se for necessário, porque já nada lhe importa.”

Por essa época, ele acabara de passar por uma experiência na qual foi empurrado por seu mestre para um abismo. Falava muito desse tema, de perder o medo e lançar-se ao infinito, notava-se que tinha ficado realmente muito abalado.

Contou-me que ele só se lembrava do momento em que o empurraram, mas não do que se passou depois. De repente, se vê em seu apartamento em Los Angeles, começa a olhar para todos os lados e pensa: “Sei que cheguei, mas... como cheguei?”

Repara que tem um papel no bolso da camisa, pega-o, e é o bilhete não utilizado do avião! Na época em que me contou essa história assegurou-me que não se lembrava de nada do que tinha acontecido com ele durante a viagem entre Oaxaca e Los Angeles.

Outra das coisas que me impressionavam nele era seu sentimento de orfandade. Em suas conversas pessoais deixava sair muito esse assunto, me contava que sofria muitíssimo por não ter mais Dom Juan vivo. Na realidade, ele nunca pôde superar sua partida, me disse isso até o final.

Sou testemunha de sua fascinação pela tradição pré-hispânica. Tínhamos vários pontos de afinidade, mas o principal é que eu era conchera. Ele sabia que eu tinha fontes sobre o conhecimento antigo diferentes das dos antropólogos. Creio que encontrava inspiração em minha atividade como dançarina, ou talvez buscasse corroboração na tradição sobre o conhecimento que lhe transmitiu Dom Juan.

Com frequência me perguntava o que era que sabiam os concheros sobre a tradição tolteca. Eu lhe dizia o que me haviam contado: que os toltecas foram os civilizadores originais, e que não foram uma raça, e sim um grupo de sábios que chegaram a certas descobertas sobre o homem, seu destino e a natureza da percepção.

Carlos me interrogava, extraía os detalhes da tradição como com lupa, não me perguntava qualquer coisa, só os detalhes finos. Uma vez me perguntou como é que os dançarinos de agora sabemos sobre os toltecas. Respondi que toda essa informação foi recebida através da tradição oral.

Certo dia chegou em minha casa e me contou uma história verdadeiramente fantástica: que ia até a Guatemala com outros companheiros, e que fariam a viagem a pé e não levariam dinheiro.

Fiquei um pouco preocupada, e perguntei-lhe se estavam devidamente equipados para a expedição. Respondeu-me que não necessitavam levar nada com eles, porque a Terra os abrigaria e lhes daria de comer.

Quando regressou da aventura, contou-me que estiveram três meses caminhando até a Guatemala e que tudo correu bem, foi muito emocionante. Efetivamente, a Terra se encarregou deles.

Não sei por que foram, mas acredito que buscassem um contato com a cultura maia, porque a relação entre as tradições do norte do México e os maias é muito profunda. Não me estranha que ele e seus companheiros tenham ido fazer uma oferenda à Terra no mundo maia.

Carlos não se relacionava com a mestra Magdalena diretamente, mas através de Dom Juan e dos velhos. Eu tive a oportunidade de estar onze anos perto dela. Contou-me que os bruxos têm suas hierarquias, que uns estão a cargo de outros, e cada xamã tem seu protetor. Geralmente, esses protetores não pertencem a esta realidade, mas sempre há um benfeitor vivo.

Ela tinha a ver com muitos xamãs que às vezes lhe pediam dinheiro para ajudar aos pobres.

Algo interessante é que tanto Dom Juan como a mestra declaravam que eles eram católicos convictos. Dom Juan era desses que vão à igreja todo domingo.

Carlos me contou que uma vez Dom Juan o levou à igreja e ele ficou esperando no átrio, porque tinha certo preconceito contra a religião. Quando se reuniram novamente, ele lhe perguntou:

“Ouça, Dom Juan, você se confessou?”

“Sim”, ele respondeu, “eu me confesso, comungo e tudo o mais.”

A mestra me explicou um dia essa relação com a igreja. Disse: “Como pessoa social, sou católica, mas como bruxa sou livre, não tenho religião.”

Disse-me que a religião tem uma grande energia, então não há porque rechaçá-la. Quando um bruxo se ajusta aos costumes de seu meio – sempre que esses costumes não sejam contrários à economia de energia – então não se desgasta lutando contra a corrente, não tem remorsos, é tão livre que até pode ir e comungar.

Também me explicou que os bruxos veem Deus como energia, não como um ser antropomórfico que nos vigia dia e noite para ver quando é que a gente vai dar uma mancada. A energia não é castigo. Isso de “Deus me castiga” é uma falsa ideia do Criador.

Na tradição do México se diz que Ometeotl se esparramou a si mesmo e gerou a dualidade, ou seja, o princípio masculino e feminino da criação, e daí veio o Homem. 



Os antigos sabiam da divindade o que sabemos hoje. Temos o conceito de Moyocoyani, “aquele que inventa a si mesmo”; quer uma melhor definição de Deus? Isso é saber como está organizado o Universo!

A mestra me levava à missa frequentemente e me dizia:

“Eu cumpro com a mais alta missão da igreja, que é fazer caridade. Não cobro por curar, portanto, ganhei o direito de comungar sem me confessar.”

Um dia em que eu estava caminhando por Mérida, vi uma igreja que tinha a porta aberta e entrei para ver o que havia. Nesse momento ia saindo um sacerdote. Estávamos sós, não havia ninguém na nave. O sacerdote se aproximou e me perguntou: “Você quer se confessar?”

Respondi: “Francamente, padre, quer que eu diga a verdade? Sou curandeira, não acredito no pecado.”

O padre ficou me olhando um pouco e disse: “Está bem, filha, não é necessário que se confesse.”

No caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.

Deve começar com a premissa de que está doente e de que é possível curar-se, primeiro de todos os males corporais e depois dos males mentais.

Tem que começar limpando as tripas de tantas porcarias e isso se faz através do uso de sete plantas mágicas com as quais se preparam chás, lavagens intestinais e vomitivos.

Depois vem os temascales, onde se purifica o corpo através de sudoração e banhos de ervas e flores.

Junto com uma gama de exercícios físicos estão as massagens e os alongamentos, que servem para manter o corpo ágil e em boa forma.

A mestra deve ter visto que Carlos precisava de ajuda porque uma vez me disse:

Diga a Carlos que ele deveria aprender a curar. É que a cura é uma porta para o mundo oculto. E no caminho do curandeiro a pessoa deve começar curando-se a si mesma.”

Fui até Carlos e lhe transmiti seu recado. Acrescentei: “Acho que seria muito bom que você se encontrasse com ela para que ela o instrua em sua forma de curar.”

Mas notei que lhe dava medo essa possibilidade, porque tinha obsessão pelo assunto de que as pessoas chupam a nossa energia, e na cura há uma grande transferência de energia do curador para o paciente. Ele estava sempre se precavendo quanto a isso, não gostava de reuniões com muita gente e fugia das fotos, dizia que o sugavam.

Eu lhe respondia: “Sim, é verdade que nos chupam, mas nos renovamos descansando e comendo, não é preciso ter medo disso.”

Apesar da minha insistência, ele não quis ir com a mestra, acho que sentiu medo.

Um dia veio ao México e me disse: “Vou à península escandinava” – não me recordo por qual motivo. “O que querem as bruxas de presente?” Referia-se à mestra e a mim.

Respondi: “Não sei, o que você quiser.”

Ao regressar, trouxe-nos de presente uns perfumes maravilhosos, de uma qualidade verdadeiramente insólita, e umas toalhas. Eu levei à mestra Magdalena a parte que lhe cabia. Ela pegou seus presentes e me disse: “Diga a ele que eu lhe agradeço pelo perfume, mas as toalhas vou preparar para ele.”

Quem sabe o que fez com as toalhas, mas um dia as deu para mim e pediu que as entregasse a Carlos. Mas ele não quis pegá-las de volta, notei em seus olhos que tinha medo. Ainda as tenho aqui.

A velha Florinda e a mestra Magdalena não se davam bem. O motivo era que a mestra queria que Carlos se tornasse curandeiro, e Florinda se aborreceu por isso.

Em minha opinião, ela sentiu ciúme de que a outra se metesse com seu discípulo. Carlos me contava que se sentia sufocado pela forma dominante e dura com que Florinda controlava tudo.

Como fui eu que levei a mensagem da mestra, Florinda também se aborreceu comigo, não me queria para nada. Carlos me disse que ela o havia repreendido muito e me culpou de querer mudá-lo de caminho.

Uma noite sonhei com a velha Florinda e ela me tratou duramente, brigou comigo, recriminando-me por eu ser aprendiz de Magdalena.

Eu lhe respondi: “Olhe, senhora, eu não quero mudar Carlos em nenhum sentido, só dei o recado, nem sequer me atrevo a propor nada. Que culpa tenho eu? Quem tem essas ideias é a mestra Magdalena, então, qualquer assunto, fale com ela.”

No dia seguinte vou ter com a mestra e lhe pergunto: “Ouça, Florinda falou ontem com a senhora? Porque ela veio para cima de mim e eu a mandei falar com a senhora!”

Ela me tranquilizou: “Não se preocupe, essa velha não vai voltar a falar com você. Eu a pus em seu lugar!”

E assim foi, nunca mais me perturbou. Mas Carlos me ligou para dizer que Florinda havia exigido que ele não falasse mais comigo, de modo que durante um tempo teríamos que permanecer separados. Isso me doeu muito.

Anos mais tarde, Florinda, a jovem, veio ao México para dar uma palestra em um salão, lá por Las Lomas. Uma amiga minha soube e me avisou. Quando terminou, Florinda me disse: “Venha cumprimentar Carlos, que está na casa de Grinberg!”

Respondi: “Olhe, Florinda, há algo muito obscuro entre mim e ele”, e contei a história de minha desavença com a velha Florinda.

Mas ela me assegurou: “Por sorte, Soledad, esse problema já passou. Florinda se foi e acabou a bronca. Venha comigo, eu levo você até Carlos.”

Respondi: “Louvado seja Deus! Que bom!”

Assim o fizemos. Eu ia com um pouco de medo, mas quando chegamos à casa de Jacobo, Carlos me deu o abraço mais longo que já recebi em toda a minha vida. Foram uns dez minutos. Ele colocou seu rosto bem junto ao meu e disse aos presentes:

“Vejam minha irmãzinha, não é verdade que somos iguaizinhos?”

A última vez que o vi foi na palestra que deu na Casa Tibet. Cheguei um pouco tarde, ele já havia começado. Sentei-me no fundo da sala para não chamar atenção, mas escutava e via bem.

Quando terminou, o vi sair de braço dado com Carol Tiggs, caminhando com passinhos muito curtos, como um débil ancião. Ela o amparava, porque ele já não podia andar sozinho. Causou-me muito impacto seu estado, porque eu o havia conhecido como um jovem em todo o seu esplendor.

Abracei-o com muito entusiasmo, e senti que se desfazia em meus braços. Perguntei-me como era possível que em tão pouco tempo Carlos houvesse passado de sua plenitude a um nível energético tão baixo.

Como se lesse minha mente, ele respondeu:

“Sabe, tenho um problema muito sério: tenho um pé aqui e outro sabe lá onde. Soledad, fui muito longe e não pude reunir minhas partes. Por isso estou tão mal.”

Explicou-me que sua enfermidade era na realidade um problema energético, pois em um de seus ensonhos se atolou por aí e não pôde juntar de novo sua totalidade. Em tom amargurado, queixou-se:

“Imagine! Eu, que sempre fui tão independente, agora necessito que me ajudem, tem até que me dar banho!”

E acrescentou: “Se conseguir reunir minhas partes novamente, regressarei ao México e ligo para você. Senão, Soledad, nos veremos no além. Lembre-se que eu e você temos um encontro no outro mundo.”

Era verdade, alguns anos antes nós havíamos marcado um encontro em um mundo que não é humano. Selamos o pacto com um pequeno ritual que teve lugar na sala da minha casa.

Nunca mais veio ao México. Diz-se que morreu de câncer do fígado, mas creio que essa explicação foi para cumprir com as formalidades.

Minha conclusão sobre Carlos é que, mais do que contar fatos sobre sua vida privada, vale a pena ressaltar sua monumental importância para o México. Ele é o pesquisador que mais divulgou nossas tradições no mundo inteiro, seus livros foram traduzidos para todos os idiomas importantes e são estudados por suas gigantescas contribuições culturais e espirituais. O México tem uma imperecível dívida de gratidão para com ele.

Tradução: Adriana Northrup

quinta-feira, 20 de março de 2025

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda: Martha Venegas

Entrevistas com parceiros de Carlos Castaneda

Entrevista com Martha Venegas

_ Como você chegou ao nawalismo?

_ O que me levou às investigações místicas e filosóficas é entender o que estamos fazendo aqui, porque estamos no mundo. Quando era muito jovem, eu queria estudar psicologia, porque pensava que essa matéria continha respostas para minhas inquietudes; mas, por alguma razão, terminei estudando Ciências da Comunicação.

Conheci o nawal através de um amigo comum, Fausto Rosales, editor da Editora Diana, que Carlos chamava afetuosamente de “meu sobrinho”. Fausto é um tipo tremendo: com ele as coisas devem ser claras, por isso o estimo tanto. Um dia me chamou e me disse: “Venha, vou lhe apresentar Carlos Castaneda!”

Eu havia ouvido falar dele como um escritor interessante, mas não como nawal. Fui sem nenhuma expectativa ao University Club, onde Carlos estava participando de um coquetel com diversos intelectuais. Desse primeiro encontro não tenho uma impressão clara. Não me lembro exatamente o que falou, só me lembro que estava presente uma das bruxas, Florinda Donner.

A segunda reunião a que assisti foi diferente. Então já havia começado a ler sua obra, e descobri que ali se encontravam respostas para as minhas inquietudes. Desse modo, me dei a tarefa de anotar tudo o que dizia. Nesta ocasião, explicou como se movia o ponto de encaixe, quer dizer, o centro onde se focaliza a percepção. Disse que todos estamos conectados com os filamentos do ser cósmico que chegam até nós, e que podemos nos mover de um grupo de filamentos a outro, se aprendemos a deslocar o ponto de encaixe. Esse deslocamento pode ocorrer, seja dentro da faixa que é acessível ao homem, ou além dela.

Explicou:

“Se se move para a direita, você se torna um nazista!” – começou a marchar pelo palco como um militar, em ângulos retos. Com isso queria dizer que o movimento da percepção à direita, à área do Tonal, solidifica nossa interpretação do mundo, enchendo-nos de convicções e fazendo-nos crer em “verdades” definidas; em conseqüência, terminamos nos comportando como verdadeiros fanáticos. “Mas se seu movimento é para a esquerda, então você se torna místico!” – ajoelhou-se no chão e começou a rezar, como se estivesse possuído de êxtase religioso.

Fiquei assombrada com sua explicação. Sempre havia acreditado que os santos e os místicos eram produto de uma vida de treinamento, de ver Deus e perceber a unidade da criação, agora compreendia que se tratava de uma escolha deliberada. Percebi que nada é verdade ou mentira; o ponto de encaixe determina o que você é, e, se aprende a movê-lo, aprende a fluir entre diversas realidades.

Estamos adaptados a interpretar que existem causas externas que nos levam a determinadas atitudes, mas não é verdade, basta um simples movimento da atenção para entrar em outro canal e captar uma gama completamente nova de percepções. É como se nos conectássemos a uma antena. Você tem aí em seu aparelho de televisão 160 ou 600 canais, e tudo depende de que conheça suas opções para que as troque. Agora vou ver Deus, e me sintonizo com o molde do homem. Mas se me dá vontade, posso ir a outra visão, outra posição do ponto de encaixe.

Os seres humanos passamos a vida inteira aferrados a um canal, digamos, ao canal das estrelas, devorando espetáculos que não nos acrescentam nada. Por que não mudar? Por que não nos darmos um descanso, mostrar-nos outras possibilidades? Você pode escolher quem quer ser.

_ Como era o caráter de Carlos?

_ A princípio, o que mais me impressionou nele foi seu histrionismo. Recordo que fiquei pensando: “Que senhor tão simpático! Se não fosse nawal, teria sido um excelente comediante.” É que o cara era genial no palco. Para fazer didático o ensinamento desempenhava papéis, fazia várias vozes e atitudes, fazendo-nos rir o tempo todo com suas brincadeiras e imitações dos outros. Envolvia-nos com personagens, situações, quase que a gente podia viver as histórias dos bruxos através do que falava. Não lhe importava deixar de lado a postura de mestre e tornar-se qualquer outra coisa.

Outra coisa que me impressionou é que ele não se escondia atrás de uma máscara de guru nem se dava importância alguma. Qualquer um podia abordá-lo e falar de qualquer coisa, que ele sempre respondia, com um sorriso nos lábios. A princípio, dava ampla margem às pessoas, tomava seu tempo para responder tudo o que quisessem perguntar. Era como se percebesse sinais do Espírito nas perguntas, agarrava um tema e fluía por ali.

Como não correspondia ao protótipo do mestre importante e inacessível, as pessoas ficavam desconcertadas com ele. Em certa ocasião, organizei uma conferência na Casa de Cultura de Coyoacán, a umas cinco quadras da minha casa. Avisei a um amigo meu, dono de uma livraria: “Fulano, venha, porque Carlos Castaneda vai dar uma conferência em tal lugar.”

O homem não acreditou, zombou de mim e disse: “Isso não pode ser! Castaneda jamais daria uma conferência pública!”

Pensou que o nawal era um desses guerreiros míticos que não se põem ao alcance das pessoas.

A princípio, era muito picaresco. Constantemente estava desafiando a moral convencional, falava de sexo e de plantas, e era muito aberto em sua linguagem. É que ainda estávamos nos anos 70, um momento desafiador da sociedade.

Depois, sua linguagem se fez mais formal. Foi como se lhe houvessem dito: não fale de certas coisas! Então adotou outra estratégia, passou do expansivo ao concreto, seu tom se tornou mais equilibrado e começou a desestimular o uso de plantas.

Teve que mudar, pois se havia formado um equívoco em torno dele. Muita gente o buscava, não por conhecimento, mas pelo mito do herói. O que queriam era um modelo de vida, alguém que lhes dissesse o que fazer em cada momento. A maioria dos que acudiam a suas conferências não lhe fazia caso quando falava sobre ser impecável, em compensação, tomavam ao pé da letra sobre o peyote. Chegou um momento em que Carlos se sentiu responsável.

_ Como foi que você se tornou a organizadora dos eventos no México?

_ Velasco Piña disse que sou a mulher-ponte, pois estou sempre conectando pessoas. Essa era minha função nos grupos naguais, avisar a todos: “Aí vem Carlos!” Assim nos reuníamos.

Começou pouco depois de tê-lo conhecido. Um dia chegou Fausto e me disse: “Carlos vai vir e preciso que você me ajude a conseguir dois lugares para dar suas conferências. É que estou muito ocupado e não tenho tempo, agradeceria muito se você o fizesse.”

Me senti muito orgulhosa com seu encargo, pois pensei que o estava ajudando deveras. Mas agora, quando penso nisso, acho que ele estava me pondo à prova para ver se eu atendia aos requisitos.

Fui correndo falar com minha amiga Maru, que tinha uma casa lá por Pedregal, com um auditório com uma tela grande. Ela não sabia bem quem era Castaneda, pois o nawalismo não era sua linha, mas ficou encantada de nos emprestar o lugar. Reuniram-se entre 100 e 150 pessoas.

Nessa oportunidade, Carlos deu uma conferência esplêndida. Falou da importância pessoal. Disse que, para um guerreiro, perder a importância era como bater no cachorro do índio.

Através de suas gesticulações, pudemos compreender o sentido desta metáfora: o índio está no extremo da escala social; pois bem, o cachorro do índio está ainda mais abaixo, e uma vez que você bate nele, ele já não pode se degradar mais! Assim é quando você perde a importância, como Jó quando perdeu tudo: está no chão, não é ninguém; nada pode lhe ofender, porque já passou por tudo; não há dor nem aborrecimento, só o que você pode fazer é dar-se conta ou morrer.

Falou também das cogidas aburridas. Afirmou que o pai e a mãe nos deixam impressos para toda a vida. Disse que ele era produto de uma cogida aburrida, mas eu não acredito, porque derramava uma energia inexplicável.

Deu como exemplo de uma vida perdida a de seu avô, um tipo peculiar, folclórico. Notei que gostava muito dele, parece que foi importante em sua vida. Em certo momento se emocionou e exclamou: “Não quero morrer como ele, babando no colchão!”

Depois dessa conferência, foi para o jardim e conversou longamente com algumas pessoas.

O medo terrível que eu sentia quando tinha que organizar uma conferência era que ele me deixasse plantada depois de ter reunido as pessoas. É que muitas vezes ele dizia que ia mas não chegava.

Algo assim aconteceu uma vez na Universidade Nacional Autônoma, em um centro dirigido por sacerdotes dominicanos. Haviam-se reunido umas 300 ou 400 pessoas; estavam todos os grupos de praticantes do México. Os minutos começaram a passar e as pessoas foram se desesperando. Então chegou correndo um amigo, todo afobado, e nos disse que o nawal acabava de ligar para avisar que não ia vir. Depois subiu à tribuna e anunciou: “Carlos Castaneda pede desculpas a vocês, mas teve uma diarreia e não vai poder dar a conferência.”

As pessoas ficaram frustradas e, para entretê-las um pouco, alguém subiu ao púlpito e começou a falar sobre a obra do nawal. Mas as pessoas não se interessaram muito e começaram a ir embora.

Eu não sabia o que pensar, mas disse para mim mesma: “Não vou até ver o que Carlos vai fazer.” É que já era escolada no assunto e conhecia o truque.

Quando restavam menos da metade das pessoas, aparece Castaneda todo sorridente, pede desculpas e explica que o problema era que havia muita gente reunida, e, como ele não gostava de usar microfone, teve que esperar que alguns se fossem para que sua voz pudesse ser escutada por todos. Acrescentou que, para sentir-se à vontade, precisava de uma audiência íntima.

Essa explicação não me convenceu: era óbvio que o nawal estava manobrando para escolher os que verdadeiramente deveriam escutá-lo. O que deteve os que ficaram, uma vez que fomos advertidos que o evento estava suspenso? Creio que foi o Espírito.

Nessa conferência, talvez porque o auditório estivesse formado principalmente por estudantes, colocou muita ênfase na responsabilidade que temos que ter para encarar a segunda atenção, sobretudo quando através de plantas. Desaconselhou expressamente seu uso, aduzindo que Dom Juan só lhe deu porque ele era muito fixo em suas rotinas.

Pouco depois se deu meu afastamento de Carlos, foi algo físico, não espiritual, e se deveu a um mal-entendido, ou pelo menos foi o que achei. Em uma ocasião correu a notícia de que o nawal tinha vindo ao México e ia dar uma conferência. Manuel Zurita, que era chamado de “o Proibido”, ligou para perguntar se eu sabia de algo. Respondi que não, que quando averiguasse lhe diria.

Por esses dias, minha filha Sandra estava trabalhando no gabinete de um conhecido jornalista, em umas pesquisas sobre fenômenos paranormais. Sem nenhuma razão aparente, eu fui visitá-la justo no momento em que Fausto ligou para avisá-la que Carlos ia falar na Editora Diana. Eu não tinha por que ter ido lá, foi uma casualidade que interpretei como um augúrio, de modo que peguei o telefone e perguntei a Fausto: “Que acha de eu convidar algumas pessoas amigas, como Toni Karam, Mariví de Teresa e Manuel Zurita?”

Respondeu-me com voz alarmada: “Convide quem você quiser, menos Manuel. Por nada deste mundo diga-lhe onde será!”

Como eu tinha ficado de avisar Manuel, liguei de volta e disse-lhe, com toda a sinceridade:

“Olha, não posso lhe convidar, porque vai ser um evento privado e o nawal não quer você lá. De modo que, por favor, não fale sobre essa ligação. Nem posso dizer onde vai ser, porque prometi a Fausto.”

Mas Manuel tinha seus contatos e se apresentou na conferência. Evidentemente, todos acharam que havia sido eu. Dizem que caí em desgraça por isso.

Um dia soube que ia ter uma reunião com Carlos na Casa Tibet. Falei com Miguel, o ajudante de Mariví, para ver porque não me haviam avisado, e ele me disse que eram rumores, que o nawal não ia vir; mas, pelo tom de sua voz, percebi perfeitamente que estava mentindo. O que mais me doeu não foi que me evitassem, mas sim que se tratou de uma conferência aberta, para a qual convidaram até pessoas desconhecidas.

Ainda estou sentida com Fausto porque, por sua causa, Carlos me relacionou com Zurita. Quando falo com ele pelo telefone, digo: “Por sua culpa nunca mais entrei nos grupos!” Mas sei que, na realidade, não é assim.

_ O que você quer dizer?

_ É difícil julgar as razões do nawal. Ele era desapiedado quando tinha que nos dar uma lição, e não gostava que misturássemos seu ensinamento. Em uma conferência, me aproximei para cumprimentá-lo. Ele me abraçou com muito afeto e me disse: “O que aconteceu com você?”

Não entendi racionalmente sua pergunta, mas não me atrevi a perguntar-lhe o que estava vendo. Baixei a cabeça e respondi: “Não sei”.

De algum modo, soube que havia visto uma mudança na minha energia. Quando me fez a pergunta, me vieram à memória certos exercícios que eu estava fazendo com o grupo de Jaime Ribas. Jaime era um instrutor de alquimia; por exigência dele, mudei drasticamente minha dieta e deixei de fumar, o que me fez engordar. Mais tarde, Mariví afirmou que Carlos se aborreceu com isso. Disse-me que a chamou à parte e falou: “Não convide mais Martha para as minhas conferências, porque está muito gorda. Nem Miguel também, porque está muito magro.”

Você pode perceber que esses não são argumentos válidos, e sim pretextos. Neste momento, acredito que o motivo real pelo qual me separou dos grupos é outro, e me custou anos entender.

Carlos cortou vários dos que estávamos mais próximos dele de uma vez. No caso de Manuel, era uma questão de energia. Ele é um homem muito vital, nota-se que teve contato com o Poder. Comigo sempre foi encantador, mas em outros provoca medo, porque seu comportamento é muito desconcertante: seus olhos redondos, como bolas de gude, têm algo de inquietante, como se escondessem algo. Também é um observador muito crítico. Sempre me advertia: “O nagual quer com você!”

Disse-me que, naquela famosa reunião, quando Carlos me abraçou, ele havia visto como puxava minha energia. Entendo porque o nagual não queria vê-lo.

Mas, no meu caso, como no de outros companheiros, o motivo da separação foi nos dar uma lição. Dei-me conta disso um dia, conversando com Fausto sobre um evento relacionado com os huicholes. Conversamos muito e confessei que estava muito afetada pela separação.

Ele fez algumas observações, e de repente ficou óbvio para mim que tudo havia sido parte de um jogo, uma nawalada de Carlos, para que nenhum de nós se achasse mais do que o outro. Nós que andávamos com ele sentíamos que havia um vínculo, que éramos importantes na estratégia. Particularmente os homens não eram nada sóbrios, todos estavam loucos por ele, queriam igualar-se a ele, ser seus continuadores.

De repente, o nagual rompeu o laço, fez-nos ver da maneira mais crua que não éramos ninguém, e que o melhor que podíamos fazer era destruir nossa importância pessoal.

_ Como você reagiu à separação?

_ Me doeu muito. Eu estava acostumada aos eventos abertos, que qualquer um podia assistir. Minha visão do nawal era muito livre, nos primeiros tempos Carlos aparecia e ia embora sem compromisso, não havia possibilidade de dizer “quero ser sua aluna”.

De repente se formaram uns grupinhos herméticos, fechados com cadeado. O ensinamento se fez sistemático, e os participantes adquiriram um status social que os diferenciava do resto. Não se podia chegar até eles da rua, praticavam os passes mágicos.

O que mais me doeu foi perder os exercícios. Constantemente me recriminava, dizendo a mim mesma: justo agora, quando Carlos nos traz os exercícios, eu fico de fora! É que até então tudo havia sido conversa e um ou outro exercício isolado, mas agora estavam sendo feitas práticas formais. Tive que me resignar, fui praticar na casa de Mariví, em um grupo secundário.

Depois que caí em desgraça, a organização dos eventos ficou por conta de Mariví. Eu que a tinha apresentado a Carlos.

Foi muito engraçado, porque, apesar de ela ser prima de Carlos Ortiz e já estar há tempos investigando as coisas do Espírito, não sabia nada dos ensinamentos do nawal. Sua aproximação teve a maior transcendência no desenrolar dos acontecimentos. Carlos lhe delegou sua confiança de imediato; encarregou-a de difundir os passes mágicos, sobretudo os passes iniciais, que eram muito fortes.

Os primeiros grupos se reuniam na Quinta Colorada, onde iam praticar os membros do grupo de dança tradicional Citlalmina. Carlos tinha algo a ver com eles, pois lhes dava aulas de Tensegridade.

Devido às minhas boas relações com Mariví, voltei a encontrar-me com ele em 94. Ela havia aberto um café na Casa Amatlán. Eu a apoiei, planejamos as conversas de café, às quais foram convidados muito interessantes, como um ex-sacerdote de Guadalajara e o pessoal de Carlos de León. Foi algo muito animado.

Um dia soube que Carlos estaria ali, de modo que fui. Nessa ocasião, falou de certas práticas para mover a energia. Recordo que utilizou um balde de água para exemplificar o conceito de fluidez. Ao terminar, me cumprimentou afetuosamente, mesmo eu estando proscrita. Entendi que a separação não havia sido nada pessoal.

Meu último encontro foi na reunião do hotel Fiesta Palace. Naquela ocasião, reuniram-se umas 500 pessoas. Enquanto esperávamos que aparecesse o nawal, fui testemunha de algo que não me agradou. Toni Karam subiu ao palco e se dirigiu à multidão, gritando: Intento! Intento! Todos faziam coro com ele. Tive a impressão que isso era fanatismo, pois, pelo que entendi dos ensinamentos, o Intento é algo pessoal.

_ A que se deve a mudança de atitude de Castaneda?

_ Como lhe disse, a princípio era muito aberto. À medida que seus auditórios cresceram, suas respostas se fizeram mais breves e abstratas, e passaram do anedótico ao conceitual. Isso é compreensível, pois, quando você tem sessenta mãos levantadas, fazendo perguntas ao mesmo tempo, não pode conceder a cada um a mesma atenção. Nos últimos tempos, eram as bruxas que respondiam por ele.

Essa mudança se notou em outro assunto, por exemplo, nas estratégias de difusão. Durante muitos anos Carlos recusou o contato com o público. Os que o conheciam nos sentíamos como parte de um movimento underground. De repente ele se abriu à propaganda e começou a falar em grandes foros, cobrando a entrada. Seu nome apareceu por todos os lados. Para o evento do Sheraton, chegou a colocar um enorme outdoor na via pública, cedido por Michael Domit. Também redesenhou os passes mágicos, tornando-os mais leves e suaves, até que terminaram se transformando na Tensegridade.

_ Por que essa mudança de estratégia?

_ Não sei. O que posso dizer é que foi algo muito deliberado.

Naquela época ocorreram coisas estranhas. Por exemplo, justo no momento em que começava a Tensy, Carlos convidou vários companheiros para que se reunissem com ele em Los Angeles. Entre eles estavam Toni, Jacobo, Michael, Carlos e Mariví, entre outros. Ficaram no hotel Claremont, perto da casa do nawal.

Nessa noite, Mariví teve uma revelação. Estava dormindo e sentiu que havia uma presença na casa. Abre os olhos e vê ao pé da cama Carlos e Carol Tiggs, a mulher nagual! Afirma que a tomaram pela mão e a levaram para outro lugar, onde lhe mostraram tantas coisas que regressou completamente alterada.

Eles nunca quiseram falar desse assunto, mas sei que receberam uma informação muito especial; o nawal os iniciou ou algo assim, porque, quando voltaram, Mariví me disse, com a voz trêmula de emoção: “Vivemos algo tão forte, que nos tornamos irmãos! Agora somos uma fraternidade.”

Também me falou sobre um pacto secreto, algo assim como tornar-se cúmplices do conhecimento. Creio que Carlos moveu seu ponto de encaixe coletivamente. Em pouco tempo, cortou-os a todos, com um pretexto qualquer. No caso de Mariví, porque a havia visto fumando em uma reunião. O lugar dela foi ocupado por Marcela Gálvez.

Marcela era uma pessoa muito complicada, sempre com problemas familiares. Pensando que praticar um pouco de Tensy lhe faria bem, liguei para ela e lhe disse para ir ao grupo de Mariví que ela ia gostar.

Ela foi e então a chamaram para as aulas. No início era muito ciumenta e tinha raiva de Mariví por causa do nawal, mas logo começou a escalar degraus e finalmente foi admitida para ter aulas no grupo interno de Carlos, lá em Los Angeles.

Subiu muito rápido. Um dia, fui ao teatro Amália Hernández, onde iam se apresentar o nawal e as chacmoles, e vejo Marcela decidindo quem entrava e quem não, e revistando os convidados para que não passassem gravadores. Sua autoridade se consolidou no evento do hotel Sheraton, onde também desempenhou o papel de chefe de segurança. Esse foi um evento muito grande, chegaram mais de mil pessoas, o que requeria muita organização. Pode-se dizer que ali nasceu Cleargreen, a instituição encarregada de divulgar a Tensegridade.

_ Quando foi a última vez que viu Castaneda?

_ Com a mudança das estratégias de difusão, também mudou meu status. Apesar de não estar mais encarregada dos eventos, fui convidada para apoiar em alguns aspectos, como difusão e contatos de imprensa.

Ainda pude vê-lo no seminário organizado por Michael Domit no Sheraton. Esse foi um desafio muito interessante, porque, depois que Toni Karam levou 500 pessoas ao hotel Fiesta Palace, nós nos propomos levar mil. Além do mais, a maioria desses pertencia às novas gerações, que não sabiam quem era Carlos Castaneda. Michael ofereceu a infra-estrutura e Grisel Vasquez foi a organizadora. Por instruções diretas de Carlos, eles me pediram que os apoiasse com os meios de informação. Foi uma reivindicação para mim.

A última vez que o vi foi no dia 12 de fevereiro de 1996, no evento “Os novos caminhos da Tensegridade”, organizado no Centro Asturino por Guillermo Díaz, dono de uma fábrica de calçados. Sua esposa Lídia foi a porta-voz oficial, junto com Perla e Marcela.

Carlos estava radiante, deu uma conferência preciosa, na qual esclareceu os novos conceitos do ensinamento, respondeu a muitas perguntas e nos disse muitas coisas referentes à continuação do trabalho. Qualificou sua mudança de estratégia como uma evolução natural à qual os praticantes deviam adaptar-se, sem ceder à tendência humana de taxonomizar, quer dizer, atender a minúcias pessoais que não têm nada a ver com o Espírito. É que alguns de seus seguidores estavam investigando detalhes privados de sua vida, como se isso fosse importante.

Disse que quem se dedica a especular sem fazer acaba abandonando a busca, e que, para que as práticas nawais sejam efetivas, o interesse dos participantes deve ser abstrato. Que o centro motor da nossa busca deve ser em todo momento a consciência de uma necessidade de mudança, e não a curiosidade mórbida.

Para mim, esse evento foi muito importante, porque, como encarregada da difusão, me coube organizar uma entrevista coletiva – a única desse tipo que deu em toda a sua carreira. Um detalhe comovedor foi que o dinheiro arrecadado, mais de 150 mil pesos, foi doado a uma instituição de assistência à infância mexicana. Eu estive presente no dia da entrega do donativo.

Depois desse dia, nunca mais o vi.

_ Como recebeu o anúncio do falecimento de Carlos Castaneda?

_ Não acreditei. Não acredito que o nawal tenha morrido.

Tradução: Adriana Northrup

Sinal de Fumaça

A Chave Secreta para o Empoderamento

Saúdo a Fonte Eterna em mim e em tudo. Estou atuando a partir do centro da verdade. Que todos os impedimentos sejam removidos. Imagem gerada...