O conceito de Divindade
Agora abordaremos um dos aspectos mais importantes, uma diferença fundamental entre ‘o caminho’ e tantas outras vertentes do chamado misticismo. É muito importante percebermos como o conceito que temos de divindade interfere na forma de sentirmos e percebermos o mundo.
Geralmente recebemos uma educação religiosa vinda do meio onde fomos criados, isso acontece em uma fase bem imatura da percepção. É comum aprendermos a identificar conceitos complexos como origem, criadores, poderes primordiais com projeções de nossas carências e medos.
Entre a maioria de nós, os conceitos religiosos vieram através de nossos pais e da igreja a qual estavam ligados. Mas esses conceitos têm uma historicidade, foram gerados por situações diversas, por grupos que, em sua luta pelo poder, não tiveram receio em alterar e deturpar conhecimentos, a fim de se manterem no poder.
Estes dados são importantes para melhor compreendermos o deus único, que é considerado resultado de uma evolução que ocorreu quando o gênero homo deixou de ser politeísta e ‘progrediu’ para o sistema monoteísta. Será verdade isto? Os povos ancestrais sentiam a divindade em tudo, suas várias faces, na chuva, no vento, no trovão, na Terra que dá o alimento, no Sol, na Lua. O Uno manifesto no múltiplo.
É muito importante compreender isso. Através de investigações e contatos com tradições nativas percebi que o saber ancestral se manifesta em matrizes com muitas dimensões. Certos povos têm um conhecimento que, quando comparado ao nosso, pode parecer menos sofisticado em alguns aspectos, como os Maias que não usaram a roda, mas que em outros níveis podem extrapolar muitos nossos padrões, como o calendário meso-americano.
O conceito de divindade para os povos ancestrais é bem amplo e variado. Não podemos nos limitar às crenças que algumas parcelas da população adotam, senão corremos o risco de generalizar a forma de lidar com a totalidade de todo um povo. O cidadão simples, o comerciante, o homem e a mulher do povo egípcio, com certeza, tinham uma concepção da divindade bem diferente dos sacerdotes e sacerdotisas dos templos e das escolas iniciáticas que ali existiam.
Da mesma forma, entre todos os povos vamos ter o exoterismo religioso, as crenças e cultos de domínio público, e o esoterismo, reservado a quem fosse iniciado nos mistérios. Os povos ancestrais lidavam com as várias faces da Eternidade, em suas múltiplas manifestações. Mas elencar um deus tribal de um povo¹ e promovê-lo a deus único é evolução? Um deus único exógeno à Terra, que a rege à distância, pelo lado de fora, não inspira nenhuma atitude ecológica ou equilibrada. Coisa que não acontece com os povos nativos e suas superstições. O conceito de deus é algo muito complexo. Quando falamos de um deus criador, ecoamos um paradigma. Em minhas investigações sobre estes caminhos que estamos tratando aqui, encontrei um conceito diferente, uma forma de falar da ETERNIDADE sem limitá-la a padrões antropomórficos ou fazer da mesma uma tela onde projetamos carências e medos.
Em vez de um deus que cria de fora e depois aplica testes além da capacidade dos testados para por fim os castigar e os deixar confusos. Em vez de uma família primordial onde o homem é um fraco, o filho um assassino e na qual a mulher vai atrás da primeira serpente que aparece. Uma família em que tudo dá errado, acarretando um cataclisma que gera a necessidade de se começar o mundo novamente. Em vez desta narrativa existem outras histórias de como o mundo veio a ser o que é.
Existem cosmogonias, antropogêneses e cosmogêneses que abordam outras possibilidades. Um universo que emana, que surge de uma outra realidade pré-existente e em um ciclo infindável. Quanto mais avança a Astrofísica e a Física de partículas, mais as visões de realidade, que surgem dos experimentos realizados, são similares às visões das antigas tradições dos povos ancestrais, e cada vez menos com as histórias moralistas que ensinam nas ‘religiões oficiais’. Um só deus, uma só verdade, um só rei, foram argumentos sempre usados pelos tiranos de várias épocas.
Perceber isto é perceber que a abordagem religiosa da realidade, tal qual a concebemos hoje, é destinada a alienação e controle. Basta ver o fervor com que vários homens e mulheres matam outros em vários países no mundo em nome de suas crenças². A intolerância religiosa não admite a diversidade, todos devem se reduzir a uma nauseante homogeneidade. Como se as células do fígado resolvessem converter as células do coração para que fossem como estas. Depois de cumprida a missão teríamos um corpo com dois fígados, o qual morreria por não ter um coração para fazer circular o sangue.
Esse é o perigo da conversão que é promovida por povos gananciosos que ignoram o fato de que a diversidade sempre foi necessária à vida. Somos seres que fazem parte de um vasto esquema cósmico. Estamos na periferia da galáxia, somos novos e imaturos se comparados às formas de vida que se desenvolveram bilhões de anos antes de nós. Mas mesmo assim temos nosso papel.
O que um indivíduo julga errado e fora de propósito, pode muito bem ser justamente o papel que outra pessoa deve desempenhar. Este é um perigo dos agrupamentos pseudo-iniciáticos. Quando a vontade caprichosa de um(a) líder é seguida. Isso falseia tudo. O trabalho de um grupo é para que cada indivíduo desperte sua essência e este se torne a somatória daquilo que cada um traz em seu interior. Quem auxilia nisso deve agir como um jardineiro: ajudar a desabrochar, mas nunca impor seus próprios modos.
Essa diferença sutil nos leva ao cerne deste trabalho, a concepção de divindade. Se impormos uma forma de perceber o transcendente, que de fato existe, o limitaremos a um conceito, a um dado informacional. Mas se criarmos situações para que quem aprende o vivencie por si mesmo, então teremos outro tipo de aprendizado. Por isso é equivocado tentar colocar em palavras o que está além do falar. Formas-pensamento pertencem ao campo mental, ao inventário do já estabelecido. E o novo é não vivido, tem que surgir pela experiência. Cientes da limitação das palavras, da sintaxe, vamos abordar o fato de que o reconhecimento da divindade e da vida por parte dos caminhos naturais, dos caminhos pagãos e dos caminhos mágicos parte de outra esfera, a da percepção.
Quando crianças, temos sempre a presença de um adulto por perto. Diante do sinal de qualquer perigo um adulto virá nos proteger, nos salvar. Ao crescermos, descobrimos que tal salvamento é relativo, e que papai e mamãe são também crianças. Isso muda tudo! Então surge uma carência, a qual muitas pessoas em vez de superarem, extrapolam e criam um papai do céu e uma mamãe do céu. Os messianismos diversos se utilizam disso como principal engodo, a promessa de que alguém lá fora virá para nos salvar.
Para grande parte das pessoas isso é a divindade. Uma transferência dos sentimentos confusos da relação com pai e mãe para uma pretensa entidade cósmica que nos criou e pode nos julgar, ajudar ou castigar. Esta relação imatura com a realidade é ampla e notável nas religiões seculares, as quais justificam seus atos em vista de uma divindade fora do mundo e temível. A qual cria os humanos a sua imagem e semelhança. Não seria mais correto dizer que os seres humanos criaram um deus a sua imagem e semelhança?
A Bruxaria, a Magia e o Xamanismo aos quais me refiro não pertencem a essa linha. Pois têm a noção de seres, de forças, de entes e poderes que vivem neste mundo e nos mundos além deste, e mesmo os mais poderosos, ainda que possam parecer deusas e deuses, continuam sendo nitidamente entes. Mesmo que estando na proporção similar à de uma estrela para uma vela não precisamos adorá-los, ou crer que os servindo tudo será resolvido.
Os deuses e deusas são entes amplos. Podemos fazer parte deles, podemos ser como células das vastas realidades que eles e elas compõem, mas, em todos os níveis, são seres com começo e fim, entes que também brotaram em um certo momento da existência e, cedo ou tarde, também vão chegar a um fim como nós.
A DIVINDADE em seu sentido mais amplo é algo que extrapola a compreensão, é para ser sentida diretamente. Através da experiência direta com o numinoso, do que vai além do conceitual.
Por isso, ao sentir a força de uma árvore, de uma montanha, de um rio ou do vento e expressar isso como divindades, cada qual com suas particularidades, não pode ser confundido com uma abordagem supersticiosa da realidade.
Rezar atemorizado para deuses e deusas durante uma tempestade é diferente da postura pagã de reconhecer nestas forças facetas da Amplitude se manifestando e buscar encantar tais poderes.
A relação que temos conosco mesmo, a relação que temos com as outras pessoas, a relação que temos com o mundo circundante, tudo isso está envolto em nosso conceito de divindade. É interessante refletir sobre isso e buscar perceber se ainda temos uma relação de pai psicológico ou mãe psicológica com a ETERNIDADE. Se continuamos apenas projetando carências ou se estamos mesmo começando a ir além dos medos que plantaram em nós, ousando sentir a ETERNIDADE em toda sua incompreensível vastidão.
Para mergulhar mais a fundo no âmbito da Bruxaria, Magia e Xamanismo precisamos compreender que estes caminhos abordam a questão da vida, da Divindade e da possibilidade de nos eternizarmos a partir de outra ótica. Senão poderemos cair no equívoco da moda esotérica em voga, que prega os mesmos temas já gastos e nitidamente ineficazes, fantasiados com outras roupagens. Pecado se tornou carma. Reencarnação em outras vidas substitui o céu e o inferno. E os ascensionados são agora os novos santos e ministros de deus.
Se ficarmos presos aos conceitos estereotipados nascidos durante esta era de dominação, sempre nos escapará o sentido profundo dos caminhos que estamos tratando. Temos que ir além da sintaxe imposta pelo mundo atual. Isto não é fácil nem simples, mas pode ser feito.
A pior prisão, das muitas que nos deram neste mundo, é a perceptiva, somos instigados a concordar e participar de um só tipo de realidade, e que, mesmo sujeita a variadas interpretações subjetivas, é normatizada e linearizada em várias instâncias.
Então, questionar profundamente os pretensos dogmas, mesmo dos esoterismos de plantão, é não só um hábito saudável como necessário. Questionar! Questionar tudo e buscar uma nova resposta.
O Xamanismo, a Magia e a Bruxaria não te dão respostas prontas, mas te ensinam a fazer melhores perguntas.
Notas
¹ Faz-se referência do deus tribal Javé, entidade judaica que permeia todo o Antigo Testamento. Há uma excelente história sobre tal entidade, história que se passa num campo de concentração nazista na segunda grande guerra onde judeus condenados à morte colocam seu deus em julgamento. Pode-se vê-la no excelente filme God on trial ou Deus no banco dos réus: https://vimeo.com/284244930 . Há também muita discussão acadêmica sobre a origem de Javé e como um deus menor que fazia parte de um panteão mais rico (politeísta) veio a tornar-se único por razões de natureza política e religiosa.
² Ver o excelente texto "A Psicopatia Bíblica de Israel", que fala sobre a psicopatia do deus tribal de Israel e como isso é relevante para entender a natureza de certas ideologias baseadas na ideia de povo escolhido, raça-mestra, os eleitos e similares: https://www.unz.com/article/israels-biblical-psychopathy/
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