sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Predadores ou Sombras de Lama, por Carlos Castaneda


Sentar-me em silêncio com Don Juan era uma das experiências mais agradáveis que já conheci. Estávamos confortavelmente sentados em cadeiras estofadas na parte de trás de sua casa nas montanhas de México central. Era fim de tarde. Havia uma brisa agradável. O sol estava atrás da casa, às nossas costas. Sua luz desvanecente criava sombras primorosas de verde nas árvores grandes do quintal. Havia grandes árvores ao redor de sua casa, e além, que obliteravam a visão da cidade onde ele vivia. Isto sempre me dava a impressão de que eu estava num ermo, um ermo diferente do estéril deserto de Sonora, mas ainda assim ermo.

"Hoje, vamos discutir um tópico muito sério em feitiçaria," disse don Juan abruptamente, "e vamos começar falando sobre o corpo de energia."

Ele tinha me descrito o corpo de energia inúmeras vezes, dizendo que era um conglomerado de campos de energia, a imagem no espelho do conglomerado de campos de energia que compõem o corpo físico quando este é visto como energia que flui no universo. Tinha dito também que ele era menor, mais compacto, e de aparência mais pesada que a esfera luminosa do corpo físico.

Don Juan tinha explicado que o corpo e o corpo de energia eram dois conglomerados de campos de energia mantidos juntos por alguma estranha força aglutinadora. Ele tinha enfatizado incansavelmente que a força que mantém juntos aqueles grupos de campos de energia era, de acordo com os feiticeiros de México antigo, a força mais misteriosa no universo; em sua avaliação pessoal, era a pura essência do cosmos inteiro, a soma total de tudo que existe.

Ele afirmava que o corpo físico e o corpo de energia eram as únicas configurações de energia contrabalançadas em nosso ‘reino’ de seres humanos. Não aceitava, portanto, nenhum outro dualismo senão aquele entre estes dois. Os dualismos entre corpo e mente, espírito e carne, eram para ele uma mera concatenação da mente, emanando dela sem qualquer base energética.

Don Juan tinha dito que por meio da disciplina é possível para qualquer um aproximar o corpo de energia do corpo físico. Normalmente, a distância entre os dois é enorme. Uma vez o corpo de energia está dentro de uma certa gama, que varia individualmente para cada pessoa, qualquer um pode, através da disciplina, forjá-lo como a réplica exata do corpo físico — ou seja, uma entidade sólida e tridimensional. Daí surgiu a idéia dos feiticeiros do outro ou o duplo. Pelo mesmo princípio, através dos mesmos processos de disciplina, qualquer um pode forjar seu corpo físico sólido e tridimensional para ser uma réplica perfeita do corpo de energia — ou seja, uma carga etérea de energia invisível ao olho humano, como é toda a energia.

Quando don Juan me contou isto, minha reação tinha sido perguntar-lhe se ele estava descrevendo uma proposição mítica. Ele respondeu que não havia nada de mítico sobre feiticeiros. Os feiticeiros eram seres práticos, e o que eles descreviam era sempre algo bastante sóbrio e razoável. De acordo com don Juan, a dificuldade em entender o que os feiticeiros fizeram era que eles agiam a partir de um sistema cognitivo diferente.

Sentando nos fundos de sua casa no México central aquele dia, don Juan disse que o corpo de energia era de importância fundamental em tudo que estava acontecendo em minha vida. Ele viu que era um fato energético que meu corpo de energia, em vez de se afastar de mim, como em geral acontece, estava se aproximando de mim com grande velocidade.

"O que significa, que está se aproximando de mim, don Juan?" eu perguntei.

"Significa que algo vai dar-lhe um tranco," ele disse sorrindo. "Um tremendo grau de controle vai entrar em sua vida, mas não o seu controle, o controle do corpo de energia."

"Você quer dizer, don Juan, que alguma força externa irá me controlar?" eu perguntei.

"Há dúzias de forças externas controlando-o neste momento," don Juan respondeu. "O controle a que me refiro é algo fora do domínio da linguagem. É seu controle e ao mesmo tempo não é. Não pode ser classificado, mas certamente pode ser experimentado. E, acima de tudo, pode certamente ser manipulado. Lembre-se disto: pode ser manipulado, para seu total benefício, claro, o que novamente, não é seu benefício, mas o benefício do corpo de energia. Porém, o corpo de energia é você, e assim poderíamos continuar para sempre, como cachorros que mordem os próprios rabos, tentando descrever isto. A linguagem é inadequada. Todas estas experiências estão além da sintaxe."

A escuridão tinha descido muito depressa, e a folhagem das árvores que tinha sido verde brilhante ainda há pouco era agora muito escura e pesada. Don Juan disse que se eu prestasse bastante atenção à escuridão da folhagem sem focalizar meus olhos, mas sim olhando com o rabo do olho, eu veria uma sombra fugaz cruzar meu campo de visão.

"Esta é a hora apropriada do dia para fazer o que estou lhe pedindo que faça," ele disse. "Leva um momento até você conseguir a atenção necessária para fazer isto. Não pare até que você veja aquela sombra preta."

Eu vi algumas sombra pretas passageiras projetadas na folhagem das árvores. Eram ou uma sombra indo de um lado para outro ou várias sombras passageiras movendo-se da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, ou diretamente para cima no ar. Elas me pareciam um peixe preto gordo e enorme.

Era como se um peixe-espada gigantesco estivesse voando no ar. Eu fui passado a limpo na visão. Então, finalmente, aquilo me assustou. Ficou muito escuro para ver a folhagem, contudo eu ainda podia ver as sombras pretas passageiras.

"O que é isso, don Juan?" eu perguntei. "Vejo sombras pretas em movimento por toda parte".
"Ah, isso é o universo imenso lá fora," ele disse, "incomensurável, não-linear, fora do reino de sintaxe. Os feiticeiros do México antigo foram os primeiros a ver essas sombras, assim eles estudaram seus movimentos. Eles as viram como você as está vendo, e eles as viram como energia que flui no universo. E eles descobriram algo transcendental".

Ele parou de falar e olhou para mim. Suas pausas eram perfeitamente colocadas. Ele sempre parava de falar quando eu estava preso por um fio.

"O que eles descobriram, don Juan?" eu perguntei.

"Eles descobriram que nós temos companhia na vida," ele disse, tão claramente quanto pôde. "Nós temos um predador que veio das profundezas do cosmos e assumiu o controle de nossas vidas. Os seres humanos são seus prisioneiros. O predador é nosso senhor e mestre. Nos faz dóceis e desamparados. Se queremos protestar, suprime nosso protesto. Se queremos agir independentemente, exige que não o façamos."

Estava muito escuro ao nosso redor, e isso parecia restringir qualquer reação de minha parte. Se fosse dia, eu teria rido até cair. Na escuridão, eu me sentia totalmente inibido.

"Está um breu aqui", don Juan disse, "mas se você olhar pelo canto do olho, você ainda verá sombras em movimento, saltando ao seu redor."

Ele estava certo. Eu ainda podia vê-las. Seu movimento me deixou atordoado. Don Juan acendeu a luz, e isso pareceu dissipar tudo.

"Você chegou, por seu próprio esforço, ao que os xamãs do México antigo chamavam ‘o tópico de tópicos’," don Juan disse. "Eu tenho usado de evasivas a esse respeito até agora, insinuando a você que algo está nos mantendo prisioneiros. Realmente nós somos prisioneiros! Este era um fato energético para os feiticeiros de México antigo."

"Por que este predador assumiu o controle do modo que você está descrevendo, don Juan?" eu perguntei. "Deve haver uma explicação lógica."

"Há uma explicação", don Juan respondeu, "que é a explicação mais simples no mundo. Eles nos dominam porque somos comida para eles, e nos apertam impiedosamente porque somos seu sustento. Da mesma maneira que nós criamos galinhas em galinheiros, gallineros, os predadores nos criam em gaiolas humanas, humaneros. Então, sua comida está sempre disponível para eles."

Eu sentia que minha cabeça estava sacudindo violentamente de um lado para o outro. Não podia expressar meu profundo senso de desconforto e descontentamento, mas meu corpo se moveu para trazê-lo à superfície. Eu tremi da cabeça aos pés sem qualquer volição de minha parte.

"Não, não, não, não," eu me ouvi dizendo. "Isto é absurdo, don Juan. O que você está dizendo é algo monstruoso. Simplesmente não pode ser verdade, para feiticeiros ou para homens comuns, ou para qualquer um."

"Por que não?" don Juan calmamente perguntou. "Por que não? Porque o enfurece?"

"Sim, me enfurece," eu repliquei. " Essas afirmações são monstruosas!"

"Bem," ele disse, "você não ouviu todas as afirmações ainda. Espere um pouco mais e veja como você se sente. Eu vou sujeitá-lo a um ataque relâmpago. Aliás, eu vou sujeitar sua mente a tremendos assaltos, e você não pode levantar e partir porque você está preso. Não porque eu o estou prendendo, mas porque algo em você o impedirá de partir, enquanto outra parte de você ficará totalmente desarvorada. Então prepare-se!"

Havia algo em mim que estava, eu sentia, com desejo de ser castigado. Ele tinha razão. Eu não teria ido embora por nada neste mundo. E ainda assim eu não gostava nem um pouco das coisas que ele estava dizendo.

"Eu quero atrair a sua mente analítica," don Juan disse. "Pense por um momento, e me diga como você explica a contradição entre a inteligência do homem engenheiro e a estupidez de seus sistemas de convicções, ou a estupidez de seu comportamento contraditório. Os feiticeiros acreditam que os predadores nos deram nosso sistema de crenças, nossas idéias de bem e mal, nossos costumes sociais. Foram eles que programaram nossas esperanças e expectativas e sonhos de sucesso ou fracasso. Eles nos deram ambição, ganância, e covardia. São os predadores que nos fazem complacentes, rotineiros, e egomaníacos."

"Mas como eles podem fazer isto, don Juan?" eu perguntei, de alguma maneira mais irritado com o que ele estava dizendo. "Eles sussurram tudo isso em nossos ouvidos enquanto estamos adormecidos?"

"Não, eles não fazem assim. Isso é idiota!" don Juan disse, sorrindo. "Eles são infinitamente mais eficientes e organizados que isso. Para nos manter obedientes, submissos e fracos, os predadores empreenderam uma manobra estupenda — estupenda, claro, do ponto de vista de um combatente estrategista. Uma manobra horrenda do ponto de vista dos que a sofrem. Eles nos deram sua mente! Entende? Os predadores nos dão a mente deles que se torna a nossa mente. A mente dos predadores é grotesca, contraditória, taciturna e cheia de medo de ser descoberta a qualquer momento."

"Eu sei que embora nunca tenha passado fome," ele continuou, "você tem ansiedade por comida que não é diferente da ansiedade do predador que teme que a qualquer momento sua manobra vai ser descoberta e sua comida vai ser negada. Pela nossa mente que, afinal de contas, é a mente deles, os predadores injetam nas vidas dos seres humanos tudo que é conveniente para eles. E eles asseguram, desta maneira, um grau de segurança para agir como um pára-choque contra o medo deles."

"Não é que eu não possa aceitar tudo isso desta forma, don Juan," eu disse. "Eu posso, mas há algo tão odioso nisso que na verdade me repele. Me força a assumir um ponto de vista contraditório. Se é verdade que eles se alimentam de nós, como eles fazem isso?"

Don Juan deu um largo sorriso. Ele estava tão contente quanto um saltimbanco. Ele explicou que os feiticeiros vêem as crianças como estranhas e luminosas bolas de energia, cobertas de cima a baixo com uma capa brilhante, algo como uma cobertura de plástico que é ajustada firmemente em cima de seu casulo de energia. Ele disse que aquela capa brilhante de consciência era o que os predadores consumiam, e que quando um ser humano alcançava a idade adulta, tudo que sobrava daquela capa brilhante de consciência era uma franja estreita que ia do chão ao topo dos dedos do pé. Aquela franja permitia ao gênero humano continuar vivendo, mas só de forma precária.

Como em um sonho, eu ouvi don Juan Matus explicando que, ao que ele sabia, o homem era a única espécie que tinha a capa brilhante de consciência fora de seu casulo luminoso. Portanto, ele se tornou presa fácil para uma consciência de uma ordem diferente, como a consciência pesada do predador.

Ele fez então a declaração mais prejudicial que tinha feito até então. Ele disse que esta faixa estreita de consciência era o epicentro da auto-reflexão, onde o homem era irremediavelmente preso. Manipulando nossa auto-reflexão, que é o único ponto de consciência que nos restou, os predadores criam lampejos de consciência que eles em seguida consomem de forma cruel e predatória. Eles nos dão problemas frívolos que forçam esses lampejos de consciência a aumentar, e desta maneira nos mantêm vivos para que eles possam ser alimentados com o brilho energético de nossas pseudo-preocupações.

Deve ter havido algo tão devastador no que don Juan estava dizendo que naquele momento eu comecei a sentir ânsias de vômito.

Depois de uma pausa, longa bastante para eu me recuperar, perguntei a don Juan: "Mas por que é que os feiticeiros de México antigo e todos os feiticeiros de hoje, embora vissem os predadores, não faziam nada a respeito?"

"Não há nada que você ou eu possamos fazer sobre isso," don Juan disse em uma voz triste e grave. "Tudo que nós podemos fazer é disciplinar-nos até o ponto onde eles não poderão nos tocar. Como você pode pedir para os seres humanos que passem por esses rigores de disciplina? Eles rirão e farão chacota de você, e os mais agressivos irão até bater-lhe. E nem tanto porque eles não acreditem nisto. Bem fundo, nos recônditos de todo ser humano, há um conhecimento ancestral, visceral sobre a existência dos predadores."

Minha mente analítica balançava de um lado para outro como um ioiô. Me deixava e voltava e me deixava e voltava novamente. O que quer que don Juan estivesse propondo era irracional e inacreditável. Ao mesmo tempo, era uma coisa bem razoável, tão simples. Explicava todo tipo de contradição humana que eu pudesse imaginar. Mas como se poderia levar tudo isso seriamente? Don Juan estava me empurrando no caminho de uma avalanche que poderia me levar para sempre.

Eu sentia uma outra onda de sensação ameaçadora. A onda não se originou de mim, contudo estava presa a mim. Don Juan estava me fazendo algo misteriosamente positivo e terrivelmente negativo ao mesmo tempo. Eu sentia isto como se fosse uma tentativa para cortar algo como um filme fino que parecia estar colado a mim. Seus olhos estavam cravados em mim em um olhar fixo. Ele passou a olhar para longe e começou a falar sem olhar mais para mim.

"Sempre que as dúvidas empurrarem você para um ponto perigoso," ele disse, "faça algo pragmático a respeito. Apague a luz. Perscrute a escuridão; descubra o que você pode ver."

Ele se levantou para apagar as luzes. Eu o impedi.

"Não, não, don Juan," eu disse, não apague as luzes. "Eu estou bem."

O que eu sentia então era um, para mim incomum, medo da escuridão. O mero pensamento me fez arquejar. Eu definitivamente sabia algo visceralmente, mas não ousaria pensar, ou trazer isto à superfície, nem em um milhão de anos!

"Você viu as sombras passageiras contra as árvores," don Juan disse, recostando-se no espaldar de sua cadeira. "Isso é muito bom. Eu gostaria que você os visse dentro deste quarto. Você não está vendo nada. Você está simplesmente capturando imagens passageiras. Você tem bastante energia para isso."

Eu temia que don Juan se levantasse de qualquer maneira e apagasse as luzes, o que ele fez. Dois segundos depois, eu estava gritando a plenos pulmões. Não só consegui um rápido lampejo dessas imagens passageiras, como eu os ouvi zumbindo em meus ouvidos. Don Juan caiu na gargalhada enquanto acendia as luzes.

"Que sujeito temperamental!" ele disse. "Um cético total, por um lado, e um pragmático total por outro. Você tem que organizar esta briga interna. Caso contrário, você vai inchar como um sapo grande e estourar."

Don Juan continuou a espetar suas farpas mais e mais profundamente em mim. "Os feiticeiros de México antigo," ele disse, "viam o predador. Eles o chamaram o voador porque voa pelo ar. Não é uma bela visão. É uma sombra grande, impenetravelmente escura, uma sombra preta que salta pelo ar. Então, pousa pesadamente no chão. Os feiticeiros de México antigo ficavam facilmente doentes com a idéia de quando teriam feito seu aparecimento na Terra. Eles achavam que o homem deveria ter sido em certo ponto um ser completo, com insights estupendos e feitos de consciência que são hoje em dia lendas mitológicas. E então tudo parece desaparecer, e nós temos um homem sedado agora."

Eu queria ficar com raiva, chamá-lo paranóico, mas de alguma maneira a certeza que em geral eu tinha debaixo da superfície de meu ser não estava lá. Algo em mim estava além do ponto de fazer minha pergunta favorita: E se tudo aquilo que ele disse fosse verdade? No momento em que ele estava falando comigo, naquela noite, no fundo de meu coração, sentia que tudo o que ele estava dizendo era verdade, mas ao mesmo tempo, e com igual força, tudo aquilo que ele estava dizendo era o próprio absurdo.

"O que você está dizendo, don Juan?" eu perguntei debilmente. Minha garganta estava apertada. Eu quase não podia respirar.

"O que eu estou dizendo é que o que temos contra nós não é um simples predador. É muito inteligente, e organizado. Segue um sistema metódico para nos fazer inúteis. O Homem, o ser mágico que ele é destinado a ser, não é mais mágico. Ele é um pedaço comum de carne. Não há nenhum mais sonho no homem a não ser os sonhos de um animal que está sendo criado para se tornar um pedaço de carne: muito vulgar, convencional, imbecil."

As palavras de Don Juan estavam arrancando uma estranha reação corporal em mim, comparável à sensação de náusea. Era como se eu fosse enjoar novamente. Mas a náusea estava vindo do fundo de meu ser, da medula de meus ossos. Eu tive uma convulsão involuntária. Don Juan me sacudiu vigorosamente pelos ombros. Eu sentia meu pescoço balançando para a frente e para trás em conseqüência de seu aperto. A manobra me acalmou imediatamente. Eu me sentia mais controlado.

"Este predador," don Juan disse, "que, claro, é um ser inorgânico, não é completamente invisível a nós, como outros seres inorgânicos são. Eu penso que quando crianças nós podemos vê-lo e decidimos que é tão horroroso que nós não queremos pensar nisto. Crianças, claro, podem teimar em focalizar sua visão, mas todos ao seu redor as dissuadem de fazer isso."

"A única alternativa deixada para o gênero humano," ele continuou, "é a disciplina. Disciplina é o único dissuasor. Mas por disciplina eu não quero dizer rotinas severas. Eu não quero dizer acordar todas as manhãs às cinco e meia e entrar na água fria até que você fique azul. Feiticeiros entendem disciplina como a capacidade para enfrentar com serenidade imprevistos que não estão incluídos em nossas expectativas. Para eles, disciplina é uma arte: a arte de enfrentar o infinito sem vacilar, não porque eles são fortes e duros mas porque eles estão cheios de respeito e temor."

"De que modo poderia a disciplina dos feiticeiros ser um impedimento?" eu perguntei.

"Os feiticeiros dizem que disciplina torna a capa brilhante de consciência sem sabor para o voador," don Juan disse, examinando minha expressão como para descobrir qualquer sinal de descrença. "O resultado é que os predadores ficam desnorteados. Uma capa brilhante de consciência não comestível não é parte da cognição deles, eu suponho. Depois de ficarem confusos, eles não têm nenhum recurso além de se abster de continuar sua tarefa abominável."

"Se os predadores não comerem nossa capa brilhante de consciência por algum tempo," ele continuou, "ela continuará crescendo. Simplificando este assunto ao extremo, eu posso dizer que feiticeiros, por meio de sua disciplina, repelem os predadores tempo suficiente para permitir que sua capa brilhante de consciência cresça além do nível dos dedos do pé. Uma vez que vá além do nível dos dedos do pé, cresce de volta a seu tamanho natural."

"Os feiticeiros de México antigo costumavam dizer que a capa brilhante de consciência é como uma árvore. Se não é podada, cresce até seu volume e tamanho naturais. Quando a consciência atinge níveis mais altos que os dedos do pé, tremendas manobras de percepção se tornam naturais."

"O truque principal desses feiticeiros de tempos antigos," don Juan continuou, "era sobrecarregar a mente dos voadores com disciplina. Eles descobriram que se eles ‘taxassem’ a mente dos voadores com silêncio interno, a instalação estrangeira fugiria, dando a qualquer um dos praticantes envolvidos nesta manobra a certeza total da origem externa da mente. A instalação estrangeira volta, eu lhe asseguro, mas não tão forte, e começa um processo no qual o fugir da mente dos voadores se torna rotineiro, até um dia que foge permanentemente. Um dia triste realmente! Esse é o dia em que você tem que confiar nos seus próprios dispositivos, que são quase zero. Não há ninguém para lhe dizer o que fazer. Não há nenhuma mente de origem alienígena para ditar as imbecilidades às quais você está acostumado."

"Meu professor, o nagual Julian, costumava advertir todos os seus discípulos," don Juan continuou, "que este era o dia mais duro na vida de um feiticeiro, pois a mente real que pertence a nós, a soma total de nossas experiências, depois de toda uma vida de dominação se tornou tímida, insegura, e velhaca. Pessoalmente, eu diria que a batalha real dos feiticeiros começa naquele momento. O resto somente é preparação."

Eu fiquei genuinamente agitado. Queria saber mais, e ainda assim um sentimento estranho em mim clamava para eu parar. Aludia a resultados negros e castigo, algo como a ira de Deus descendo em mim por ter mexido com algo ocultado pelo próprio Deus. Eu fiz um esforço supremo para permitir minha curiosidade vencer.

"Qu—qu—que você quer dizer," eu me ouvi dizer, "taxando a mente dos voadores?"

"Disciplina taxa a mente estrangeira tremendamente," ele respondeu. "Assim, pela disciplina, feiticeiros derrotam a instalação alienígena."

Eu fui subjugado por suas declarações. Eu acreditava que, ou don Juan estava comprovadamente insano ou o que ele estava me contando era algo tão tremendo que gelou tudo em mim. Percebi, contudo, quão rapidamente eu reuni minha energia para negar tudo que ele tinha dito. Depois de um momento de pânico, eu comecei a rir, como se don Juan tivesse me contado uma piada. Eu até me ouvi dizendo, "Don Juan, don Juan, você é incorrigível!"

Don Juan parecia entender tudo que eu estava experimentando. Ele balançou a cabeça de um lado ao outro e elevou os olhos aos céus em um gesto de desespero fingido.

"Eu sou tão incorrigível," ele disse, "que eu vou dar à mente dos voadores, que você leva dentro de si, mais uma pancada. Eu vou lhe revelar um dos segredos mais extraordinários de feitiçaria. Eu vou descrever a você um achado que os feiticeiros levaram milhares de anos para verificar e consolidar."

Ele olhou para mim e sorriu maliciosamente. "A mente dos voadores foge para sempre," ele disse, "quando um feiticeiro tem sucesso em agarrar a força vibratória que nos une num conglomerado de campos de energia. Se um feiticeiro mantiver aquela pressão tempo suficiente, a mente dos voadores foge derrotada. E isso é exatamente o que você vai fazer: agarre-se à energia que o mantém unido."

Eu tive a reação mais inexplicável que poderia imaginar. Algo em mim na verdade tremeu, como se tivesse recebido uma sacudidela. Eu entrei em um estado de medo injustificável, que eu imediatamente associei à minha formação religiosa.

Don Juan olhou para mim da cabeça aos pés.

"Você está temendo a ira de Deus, não é?" ele disse. "Fique certo, isso não é seu medo. É o medo dos voadores, porque sabe que você fará exatamente como eu estou lhe falando."

As palavras dele não me acalmaram em absoluto. Eu me sentia pior. Eu estava tendo ânsias de vômito involuntariamente, e não tinha nenhum meio de parar isto.

"Não se preocupe," disse don Juan calmamente. "Eu sei por experiência que esses ataques se enfraquecem muito depressa. "A mente do voador não tem absolutamente nenhuma concentração."

Depois de um momento, tudo parou, como don Juan tinha predito. Dizer novamente que eu estava confuso é um eufemismo. Esta foi a primeira vez, em minha vida, com don Juan ou só, que eu não soube se eu estava vindo ou indo. Eu quis sair da cadeira e caminhar ao redor, mas estava mortalmente amedrontado. Eu estava cheio de afirmações racionais, mas ao mesmo tempo eu estava cheio de um medo infantil. Eu comecei a respirar profundamente, pois uma transpiração fria cobria meu corpo inteiro. Eu tinha liberado de alguma maneira em mim uma visão miserável: sombras pretas, esvoaçantes, saltando ao redor de mim, para onde quer que eu me virasse.

Eu fechei meus olhos e descansei minha cabeça no braço da cadeira estofada. "Eu não sei para onde me virar, don Juan," eu disse. "Hoje à noite, você realmente teve sucesso em me deixar perdido."

"Você está sendo rasgado por uma luta interna," disse don Juan. "Bem nas profundezas de seu ser, você sabe que é incapaz de recusar o acordo em que uma parte indispensável de você, sua capa brilhante de consciência, vai servir como uma fonte incompreensível de alimento para, naturalmente, entidades incompreensíveis. E outra parte de você ficará contra esta situação com todo seu poder."

"A revolução dos feiticeiros," ele continuou, "é que eles recusam honrar acordos dos quais eles não participaram. Ninguém nunca me perguntou se eu consentia em ser comido por seres de um tipo diferente de consciência. Meus pais apenas me trouxeram neste mundo para ser comida, como eles, e isso é o fim da história."

Don Juan se levantou da cadeira e esticou os braços e pernas. "Estamos sentados aqui há horas. Está na hora de entrar em casa. Eu vou comer. Você quer comer comigo?"

Eu recusei. Meu estômago estava em alvoroço.

"Eu acho que você devia dormir," ele disse. "Esse ataque o devastou."

Eu não precisava mais nenhuma persuasão. Desmoronei sobre minha cama e dormi como um morto.

Em casa, à medida que o tempo passava, a idéia dos voadores se tornou um das principais fixações de minha vida. Eu cheguei ao ponto onde eu sentia que don Juan estava absolutamente certo sobre eles. Não importa quanto eu tentasse, não podia descartar sua lógica. Quanto mais eu pensava nisso, mais eu falava e observava a mim e meus pares da raça humana, mais intensa a convicção de que algo estava nos tornando incapaz de qualquer atividade ou qualquer interação ou qualquer pensamento que não tivesse o ego como ponto focal. Minha preocupação, como também a preocupação de todos que eu conhecia ou com quem conversava, era o ego. Como eu não podia achar nenhuma explicação para tal homogeneidade universal, eu acreditei que a linha de pensamento de don Juan era o modo mais apropriado de elucidar o fenômeno.

Eu mergulhei tão profundamente quanto pude em leituras sobre mitos e lendas. Lendo, experimentei algo que eu nunca tinha sentido antes: cada um dos livros que eu lia era uma interpretação de mitos e lendas. Em cada um desses livros, uma mente homogênea era palpável. Os estilos diferiam, mas a força atrás das palavras era homogeneamente a mesma: embora o tema fosse algo tão abstrato quanto mitos e lendas, os autores sempre conseguiam inserir declarações sobre si próprios. O impulso homogêneo atrás de cada um desses livros não era o tema declarado do livro; era, ao invés, auto-serviço. Eu nunca tinha sentido isto antes.

Eu atribuí minha reação à influência de don Juan. A pergunta inevitável que eu me fiz era: ele está me influenciando a ver isto, ou realmente há uma mente alienígena que dita tudo que nós fazemos? Eu caí, por força das circunstâncias, em negação novamente, e mudava insanamente da negação para a aceitação e novamente para a negação. Algo em mim sabia que o que don Juan estava querendo dizer era um fato energético, mas algo igualmente importante em mim sabia que tudo isso era absurdo. O resultado final de minha luta interna era um senso de presságio, o senso de algo iminentemente perigoso vindo a mim.

Eu fiz investigações antropológicas extensas sobre o assunto dos voadores em outras culturas, mas não pude achar nenhuma referência, em qualquer lugar, a eles. Don Juan parecia ser a única fonte de informação sobre este assunto. Da próxima vez que eu o vi, eu imediatamente comecei a falar sobre os voadores.

"Eu tentei o máximo ser racional sobre este assunto," disse eu, "mas eu não posso. Há momentos em que eu concordo completamente com você sobre os predadores."

"Focalize sua atenção nas sombras fugazes que você vê de fato," don Juan disse com um sorriso.

Eu disse a don Juan que essas sombras iam ser o fim de minha vida racional. Eu as via em todos os lugares. Desde que tinha deixado sua casa, eu era incapaz de dormir na escuridão. Dormir com as luzes acesas não me aborrecia em nada. O momento em que eu apagava as luzes, porém, tudo ao meu redor começava a saltar. Eu nunca via figuras completas ou formas. Tudo que eu via eram sombras pretas fugazes.

"A mente dos voadores não o deixou," disse don Juan, "Ela foi seriamente ferida. Está tentando ao máximo rearranjar sua relação com você. Mas algo em você está rompido para sempre. O voador sabe isso. O perigo real é que a mente dos voadores pode ganhar cansando-o e forçando-o a desistir, mostrando a contradição entre o que ela diz e o que eu digo."

"Você vê, a mente dos voadores não tem nenhum competidor," don Juan continuou. "Quando ela propõe algo, concorda com sua própria proposição, e o faz acreditar que você fez algo de valor. A mente dos voadores dirá a você que tudo que Juan Matus está contando é pura tolice, e então a mesma mente concordará com sua própria proposição, 'Sim, claro que é tolice,' você dirá. Esse é o modo com que eles nos derrotam."

"Os voadores são uma parte essencial do universo," ele continuou, "e devem ser levados como o que eles realmente são — pavorosos, monstruosos. Eles são os meios pelos quais o universo nos testa."

"Nós somos sondas energéticas criadas pelo universo," ele continuou como se estivesse inconsciente da minha presença, "e é porque nós somos os possuidores de energia que tem consciência que nós somos os meios pelos quais o universo se dá conta de si mesmo. Os voadores são os desafiantes implacáveis. Eles não podem ser tomados como qualquer outra coisa. Se nós temos sucesso nisso, o universo nos permite continuar."

Eu quis que don Juan dissesse mais. Mas ele disse apenas, "a blitz terminou a última vez que você esteve aqui; há tanto que você pode dizer sobre os voadores. Está na hora de outro tipo de manobra."

Eu não pude dormir aquela noite. Entrei em um sono leve, nas primeiras horas da madrugada, até que don Juan me tirou de minha cama e me levou para uma caminhada nas montanhas. Onde ele vivia, a configuração da terra era muito diferente daquela do deserto de Sonora, mas ele me disse que não me preocupasse com comparações, porque depois de caminhar durante um quarto de milha, todo lugar do mundo era a mesma coisa.

"Apreciar a vista é para pessoas em carros," ele disse. "Eles vão a grande velocidade sem qualquer esforço de sua parte. Apreciar a vista não é para andarilhos. Por exemplo, quando você está indo em um carro, você pode ver uma montanha gigantesca cuja visão o subjuga com sua beleza. A visão da mesma montanha não o subjugaria da mesma maneira se você olhá-la enquanto você for a pé; o impressionará de modo diferente, especialmente se você tem que escalá-la ou dar a volta em torno dela."

Estava muito quente aquela manhã. Caminhamos em um leito fluvial seco. Uma coisa que aquele vale e o deserto de Sonora tinham em comum era os milhões de insetos. Os mosquitos e moscas ao meu redor estavam como bombardeiros kamikazes que miravam minhas narinas, olhos e orelhas. Don Juan me disse que não prestasse atenção ao seu zumbido.

"Não os tente dispersar com sua mão," ele disse em um tom firme. "Intente-os longe. Monte uma barreira de energia ao seu redor. Fique em silêncio, e de seu silêncio será construída a barreira. Ninguém sabe como isto é feito. É uma dessas coisas que os feiticeiros antigos chamavam fatos energéticos. Desligue seu diálogo interno. Isso é tudo que é necessário."

"Eu quero propor uma idéia estranha a você," dom Juan disse enquanto continuava caminhando à minha frente.

Eu tive que apressar meus passos para me aproximar dele e não perder nada do que ele dizia.
"Eu tenho que deixar claro que esta é uma idéia estranha que achará resistência infinita em você," ele disse. "Já vou lhe avisando que você não aceitará isto facilmente. Mas o fato de que é estranho não deveria ser um impedimento. Você é um cientista social. Então, sua mente está sempre aberta à investigação, não é assim?"

Don Juan estava tirando sarro descaradamente de mim. Eu percebi, mas isto não me aborreceu. Talvez devido ao fato de que ele estava caminhando tão rápido, e eu tinha que fazer um tremendo esforço para manter seu ritmo, o sarcasmo dele não me atingia, e em vez de me deixar irritado, me fez rir. Minha atenção integral estava focalizada no que ele estava dizendo, e os insetos ou deixaram de me aborrecer porque eu tinha intentado uma barreira de energia ao meu redor ou porque eu estava tão ocupado escutando don Juan que não me preocupava mais com seu zumbido.

"A idéia estranha," ele disse lentamente, medindo o efeito de suas palavras, "é que todo ser humano nesta terra parece ter exatamente as mesmas reações, os mesmos pensamentos, os mesmos sentimentos. Eles parecem responder mais ou menos do mesmo modo aos mesmos estímulos. Essas reações parecem algo "enevoadas" pelo idioma que eles falam, mas se nós eliminarmos isso, são exatamente as mesmas reações que sitiam todo ser humano na Terra. Eu gostaria que você ficasse curioso sobre isto, como cientista social, claro, e veja se você poderia explicar formalmente tal homogeneidade."

Don Juan coletou uma série de plantas. Algumas delas quase não poderiam ser vistas. Eles pareciam estar mais no reino das algas e musgo. Eu segurei sua bolsa aberta, e não nos falamos mais. Quando ele teve bastante plantas, tomou o caminho de casa, caminhando tão rápido quanto podia. Ele disse que queria limpar e separar essas plantas e colocá-las em ordem antes que secassem muito.

Eu estava profundamente envolvido pensando na tarefa que ele tinha delineado para mim. Comecei tentando revisar em minha mente se eu conhecia qualquer artigo ou documento escrito sobre este assunto. Eu pensei que eu teria que pesquisar, e decidi começar minha pesquisa lendo todos os trabalhos disponíveis em âmbito nacional. Eu me pus entusiástico sobre o tema, de modo fortuito, e realmente quis ir imediatamente para casa, porque queria levar a tarefa a sério, mas antes que nós chegássemos à sua casa, don Juan se sentou em uma borda alta que descortinava o vale. Não disse nada durante algum tempo. Ele não estava ofegante. Não pude conceber por que ele tinha parado para se sentar.

"A tarefa do dia, para você," ele disse abruptamente, em um tom de presságio, "é uma das coisas mais misteriosas da feitiçaria, algo que vai além da linguagem, além das explicações. Nós caminhamos hoje, nós falamos, porque o mistério de feitiçaria deve ser acomodado dentro do mundano. Deve originar-se do nada, e voltar novamente para o nada. Isso é a arte dos guerreiro-viajantes: passar pelo buraco de uma agulha desapercebidos. Então, firme-se apoiando suas costas nesta parede de pedra, o mais longe possível da extremidade. Eu estarei próximo, no caso de você desfalecer ou cair.

"O que você está planejando fazer, don Juan?" eu perguntei, e meu alarme era tão patente que eu notei e baixei minha voz.

"Eu quero que você cruze suas pernas e entre no silêncio interior," ele disse. "Digamos que você quer descobrir que artigos você poderia procurar para desacreditar ou substanciar o que eu lhe pedi que faça em seu ambiente acadêmico. Entre no silêncio interior, mas não durma. Esta não é uma viagem pelo mar escuro de consciência. Isto é ver a partir do silêncio interior."

Era bastante difícil para mim entrar no silêncio interior sem cair adormecido. Eu lutei contra um desejo quase invencível de dormir. Tive sucesso, e me vi olhando para o fundo do vale a partir de uma escuridão impenetrável ao meu redor. E então, eu vi algo que me gelou até a medula dos ossos. Eu vi uma sombra gigantesca, de talvez cinco metros de comprimento, saltando no ar e pousando com um baque silencioso. Eu sentia o baque em meus ossos, mas não o ouvi.

"Eles são realmente pesados," don Juan disse em meu ouvido. Ele estava me segurando pelo braço esquerdo, com toda a força que podia.

Eu vi algo que se parecia com um meneio de sombra de lama agitar-se no chão, e então dar outro pulo gigantesco, talvez de quinze metros, e pousar novamente, com o mesmo baque silencioso ameaçador. Eu lutei para não perder minha concentração. Estava amedrontado além de qualquer coisa que eu pudesse usar racionalmente como descrição. Mantive meus olhos fixos na sombra saltando no fundo do vale. Então eu ouvi um zumbido mais peculiar, uma mistura do som de asas batendo e o zumbido de um rádio cujo dial não sintonizou totalmente a freqüência de uma estação de rádio, e o baque que seguiu foi algo inesquecível. Sacudiu don Juan e eu a fundo — uma sombra de lama preta gigantesca tinha acabado de pousar aos nossos pés.

"Não fique apavorado," don Juan disse imperiosamente. "Mantenha seu silêncio interior e ela se afastará."

Eu estava tremendo de cabeça aos pés. Tive o conhecimento claro de que se eu não mantivesse meu silêncio interior vivo, a sombra de lama me cobriria como uma manta e me sufocaria. Sem esquecer a escuridão ao meu redor, eu gritei com todas as minhas forças. Nunca tido estado tão irritado, tão totalmente frustrado. A sombra deu outro pulo, claramente para o fundo do vale. Eu continuei gritando, sacudindo minhas pernas. Eu queria livrar-me de tudo que pudesse vir a me comer. Meu estado de nervosismo era tão intenso que eu perdi o controle do tempo. Talvez eu tenha desmaiado.

Quando despertei, eu estava em minha cama na casa de don Juan. Havia uma toalha, encharcada em água gelada, enrolada em minha testa. Eu estava ardendo em febre. Um das discípulas de don Juan esfregava minhas costas, peito e testa com álcool, mas isto não me aliviou. O calor que eu estava experimentando vinha de dentro. Era gerado por minha ira e impotência.

Don Juan riu como se o que estava acontecendo a mim fosse a coisa mais engraçada no mundo. Acessos de riso o invadiam de forma contínua.

"Eu nunca teria pensado que você levaria ver um voador tão a sério," ele disse.

Ele me levou pela mão e me conduziu à parte de trás da casa, onde ele me mergulhou em uma banheira enorme de água, completamente vestido — sapatos, relógio, tudo.

"Meu relógio, meu relógio!" eu gritei.

Don Juan se torcia de rir. "Você não deveria usar um relógio quando vem me ver," ele disse. "Agora você estragou seu relógio!"

Eu tirei meu relógio e o pus ao lado da banheira. Me lembrei que era à prova d’água e que nada poderia lhe acontecer.

Ser molhado na banheira me ajudou enormemente. Quando don Juan me tirou da água gelada, eu tinha ganho um certo grau de controle.

"Essa coisa é absurda!" eu continuei repetindo, incapaz de dizer qualquer outra coisa.

O predador que don Juan tinha descrito não era algo benevolente. Era enormemente pesado, bruto, indiferente. Eu sentia seu descaso por nós. Indubitavelmente, tinha nos esmagado eras atrás, tornando-nos, como don Juan tinha dito, fracos, vulneráveis e dóceis. Eu tirei minhas roupas molhadas, cobri-me com um poncho, sentei em minha cama, e verdadeiramente me acabei de tanto chorar, mas não por mim. Minha ira e meu intento inflexível não os deixariam me comer. Eu chorei por meus companheiros da raça humana, especialmente por meu pai. Eu nunca soube até aquele momento que eu o amava tanto.

"Ele nunca teve uma chance," eu me ouvi repetindo, sem parar, como se as palavras realmente não fossem minhas. Meu pobre pai, o ser mais atencioso que eu conheci, tão meigo, tão doce, tão desamparado.

Carlos Castaneda - O Lado Ativo do Infinito

obs.: Filmes de referência - Cidade das Sombras (Dark City), Matrix e Eles vivem (They Live)



quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Agir conscientemente, por Nuvem que Passa




Creio por prática que incidir nos mundos virtuais é um ato profundamente mágico, do qual nossa consciência ordinária só capta uma pequena fração.

Conexões desconhecidas são estabelecidas entre os organismos da Terra quando as pessoas passam a trocar informações virtualmente.

Estamos vivendo num momento mítico, num transpor de Eras que cria oscilações fantásticas no tecido da Realidade.

É por isto que nunca tivemos um mundo tão em crise, tão deprimente, desestimulador e amedrontador se ficarmos presos a visão que o Sistema Dominante impõe, basta assistir o "Jornal" que tem a pretensão de ser o "retrato da verdade".

A visão que temos da realidade é uma resultante de nosso estado de consciência.

Este fator determina toda uma outra abordagem da realidade por parte de certas linhas de praticantes do que se convencionou chamar Xamanismo, que eu pessoalmente chamo de ARTE.

A ARTE veio sendo desenvolvida e reinterpretada pelos(as) seus(as) praticantes através dos Tempos.

Mas cada tempo sem seu modo próprio de fluir.

Cada momentun do tempo-espaço surge como resultante da maneira pela qual interagimos com as emanações a nossa volta, com as "supercordas" como as chama uma das teorias físicas hoje elocubradas.

Obviamente com seu pragmatismo característico os(as) adeptos(as) da ARTE se puseram a interagir de forma criativa com estas constatações.

Constatação: Existem várias realidades interpenetradas, se vivemos em uma cebola, mas nesta quadridimensional cebola as camadas são dinâmicas, em arranjos combinatórios inconcebíveis a nossa tacanha habilidade geométrica em conceber arranjos da realidade.

Bem se existem outras realidades como podemos nelas atuar?

Este primeiro caminho de observação leva bem longe quando os Xamãs descobrem que o Sonho é uma condição alterada de consciência que algumas vezes leva a consciência a incidir nestas outras realidades, chegando mesmo a estabelecer contato com entes conscientes destes mundos outros que não esse.

Obviamente a questão passou a ser:

Como ir de forma controlada e sistemática à estas outras realidades?

O Sonhar era muitas vezes errático e possuía compensações naturais que dificultavam ainda mais o "estar consciente em sonho". Técnicas bizarras foram desenvolvidas para promover estes "sonhos conscientes".

Foi bem mais tarde que os (as) xamãs perceberam que havia uma força por detrás disso, que as formas ritualísticas e complicadas que usavam para evocar e provocar estes estados "xamanísticos" de consciência serviam apenas como alavanca.

O que estava em jogo era outra abordagem da realidade.

Percebendo que a realidade era composta de duas retas paralelas.

Numa está esse mundo, tal e qual o conhecemos.

Indo nele, lidando com ele se vai por uma "trilha" de energia.

Tudo que vamos perceber como realidade está condicionado aos "acordos" feitos entre as (os) percebedores.

Nós entramos nesse acordo perceptivo, mas não percebemos que o fizemos e, ainda pior, não sabemos que podemos romper com estes acordos perceptivos e entrar em outros acordos perceptivos mais amplos e efetivamente ligados a autonomia e plenitude existencial.

O primeiro acordo perceptivo que os (as) xamãs rompem é a superstição que os sonhos são apenas cenas produzidas por neuroquímica mental, evocações de associações realizadas pelas funções psíquicas humanas durante o descanso do cérebro.

Isso existe também, mas não é apenas isso o sonho.

No estado de soltura do sonhar a essência perceptiva ao invés de ficar regurgitando suas próprias prisões existenciais, pode se lançar a um nível mais amplo de percepção e se tornar ciente de si.

Assim como o estar no aqui e agora é um trabalhar sobre o despertar de nós mesmos, nesta condição usual da realidade, o despertar no nível do sonho encontra barreiras diversas.

Quem tem a experiência de procurar se observar e se sentir presente no aqui e agora percebe bem como nos perdemos, como “esquecemos" dessa proposta, como vivemos hipnotizados no dia a dia.

O mitote do mundo nos prendeu.

Nos faz sonâmbulos e nos desvia da plena consciência de nós mesmos.

O mesmo ocorre no plano dos sonhos.

Mas ali, como aqui, podemos "acordar".

Quando nos tornamos conscientes de nós mesmos na frequência do sonhar algo mais acontece.

Uma condição excepcional de energia chamado: "corpo de sonho", o "sósia", o "outro", "corpo astral", "corpo de energia", "corpo radiante" e outros tantos nomes, aparece.

Quando acordamos a cada manhã temos uma noção de continuidade. Essa noção foi construída pelas vivências e para os (as) xamãs estas memórias estão acumuladas pelas células do corpo inteiro.

Assim é o corpo físico que garante nossa continuidade, aquilo que chamamos de “memórias acumuladas", os vetores que juntos geram o vetor resultante que chamamos de "eu", aglomerado, não singular como pretende ser, mas multiplicidade disfarçada de "um".

Pois bem, sem o corpo de energia não há como ter continuidade nos sonhos, assim quando nos "lembramos de nós" dentro de um sonho geramos uma curvatura nas fibras da Eternidade e tal curvatura começa a gerar algo novo, algo que se convencionou chamar de "Corpo de Energia".

As confusões que tal caminho gerou são enormes e o que vou relatar a seguir é a forma da linhagem com a qual aprendi avaliar os fatos citados, respeitando as outras versões sobre os mesmos temas.

Para o Xamanismo que estudo raros seres já possuem "ligado e maturado" o corpo de energia.

Nas viagens que fazem pelos outros mundos os seres se projetam enquanto entidade perceptiva, mas pouco ou nenhum controle tem sobre o que está a sua volta, são folhas ao sabor do vento.

Mas existe uma possibilidade de mudar essa condição de ausentes de nós mesmos.

Neste mundo cotidiano no qual estamos o trabalho com a ARTE do agir no mundo é um caminho xamanístico de transformar nossos atos nesse mundo em magia e realização.

O equivalente a esta ARTE de estar focado no aqui e agora, transformando cada momento da vida numa manifestação da ARTE, se manifesta nesse nível que precariamente chamamos de ", Sonhar Consciente".

Sonhando consciente as (os) xamãs estão desenvolvendo o corpo de energia, o "sósia", a contraparte de energia do corpo físico.

Por necessidades da Eternidade o "mundo" gera e cria o corpo físico.

O corpo físico em seu processo de gestação e desenvolvimento passa por fases que podem ser repetidas na criação de um outro corpo, agora de energia, agora com habilidade de incidir em muitos outros mundos que não apenas esta condição que chamamos de realidade.

Estar aqui e agora implica em estar focado no momento presente.

Isso curva o espaço tempo a nossa volta, pois teremos mais energia presente, mais energia concentrada numa porção da Eternidade causa oscilações significativas.

Assim ao criarmos um corpo de energia, pela atitude de lembrarmos-nos de nós mesmos nos sonhos, causamos perturbações no tecido da Realidade mais ampla que são percebidas por seres mais maduros nesse processo de explorar conscientemente outros mundos.

Entrar pois nestas outras realidades exige preparo de quem o faz, pois ao encontrar com outros entes conscientes da Eternidade poderá estabelecer relações questionáveis onde perderá sua autonomia existencial e sua liberdade.

Para os que trilham caminhos servis creio que isto é sem problema, mas para quem tem a LIBERDADE como meta fica questionável tal proceder.

Houve um tempo que os antigos lidavam com os poderes diretos, com as expressões singulares dos poderes da Natureza e da Eternidade.

Mas então veio outro tempo no qual entes de grande poder se apresentaram para ensinar e auxiliar muitos(as) xamãs e outro estilo de ação começou em alguns lugares.

Servir a entes, tidos por deuses e deusas.

Como se uma vela frente à imensidão de uma estrela escolhesse negar sua condição de vela, para ser uma serva da estrela.

Existe uma infinidade de ritos destinados a evocar e criar "pactos" entre seres humanos e estes entes, que se apresentam das mais diversas formas de acordo com a maturidade psíquica de quem os evoca.

Uma das confusões que alguns estudiosos apontam para o corpo energético está no contato com estes entes.

Alguns iniciados em lugares diferentes do mundo sabiam como "mudar" para o outro, entrar em consciência de corpo energético.

Nesse estado tinham seu poder incrivelmente transformado.

O "outro" trabalhava para os de sua tribo.

Para os que vinham o mistério do "outro" não era compreensível.

Passou a ser algo fora. Algo diferente.

Mais tarde o outro e esses ritos foram repetidos, mas ao invés de ser o "'sósia" do (a) xamã que "trabalhava", já eram (quando eram) entes que haviam estabelecido estranhas relações de energia com alguns seres humanos, grande parte das vezes parasitária.

O conceito de "anjo da guarda" passa por leituras equivocadas do papel do "outro".

Energia é um guardião da totalidade.

Ele "intui".

O corpo de Tudo que chamamos de "poderes” como clarividência, "intuições”, vem da ação do corpo de energia.

Corpo de energia quando está desperto abre os canais da percepção interior.

A meta dos (as) xamãs que conheço e de várias outras linhagens é fundir ambos os corpos, criar uma unidade estrutural composta do corpo de energia e do corpo que chamamos físico.

Mas tal fundir deve acontecer no momento adequado, por isso antes, se trabalha os dois corpos separadamente.

A ARTE do Comportamento (ou a arte da espreita), junto com o preparo do corpo físico através de trabalhos físicos específicos, no Taoísmo e em outras escolas, como os Toltecas (passes mágicos), tem movimentos muito específicos para trabalhar aspectos específicos da energia.

Tai Chi Chuan e Kung Fu são nomes genéricos, com variados estilos de execução de movimentos que visam desobstruir o fluxo de Tsing pelo organismo e também entre o organismo e seu meio circundante.

Esta relação com a energia circundante que temos é deixada de lado por muitos e isto é bem equivocado.

A energia precisa fluir não só em nós, como de nós para o meio, do meio para nós, entre nós e as pessoas que convivemos.

Isso ocorre, sempre, o que os(as) xamãs buscam é tomar consciência disso e estar de tal forma no mundo que nunca deixem sua energia nos lugares e pessoas nem levem as das pessoas e lugares consigo.

Há exercícios específicos no Taoísmo, no Budhismo e no Xamanismo que visam declaradamente trazer de volta as energias nossas deixadas nos lugares e pessoas e desgrudar de nós as energias deixadas pelos lugares e pessoas.
Tais práticas permitem uma maior força no estar aqui e agora, primeiro porque estaremos com nossa "integralidade" assegurada, segundo porque não teremos energias não nossas nos pretendo a situações e pessoas.
Este aspecto tem que ser muito bem trabalhado para evitar leituras tendenciosas, separatistas e egóticas do tema.

Quando entramos em outros mundos alinhamos condições de energia das mais diversas.

Cada mundo tem sua própria característica e estaremos recebendo estas energias com sua própria frequência e decodificando de acordo com nosso sistema base de interpretação.

Assim os mundos vistos, quando avaliados com os referenciais deste contexto de realidade parecerão incrivelmente parecidos com estes, mas bastará despertar a percepção do corpo de energia, que percebe as coisas como energia, que tal "moldura" se desfará e a percepção enquanto energia se sobreporá a visão anterior.

É óbvio que é mais seguro ver os outros mundos em forma de energia que decodificá-los com nossos limitados referenciais.

Assim sonhar é todo um campo complexo dentro dessa trilha de despertar no sonho, lembrar de si mesmo no sonho, perceber que está no sonho, isto é num nível diferente não só de realidade mas de poder de realização.

Tão importante quanto perceber a condição diferente de "mundo" onde se está é perceber sua habilidade de realização nestes mundos.

Estaremos nos expondo como um habitante de uma toca que se aventurasse a explorar a floresta a sua volta.

A realidade predadora da Eternidade é um fato para o Xamanismo, ao menos para alguns de seus ramos.

Portanto, antes de se aventurar em outros mundos os (as) xamãs aprenderam a usar esse como seu campo de aprendizado.

Partindo da premissa que aqui a Eternidade já nos deu um corpo, uma condição de existir singular, a primeira coisa que nos ocupamos é em "sentir" esse corpo e aprender a "agir". Elaborar o sentir, perceber, elaborar o resultado dos atos é o pensar, que é bem mais que o mero raciocinar, que lida com combinar informações prontas e preconcebidas.

Realmente pensando, sentindo e agindo os (as) xamãs se consideram então prontos para se aventurar em outras realidades, desafiantes como essa.

Assim como o corpo físico pode ficar aqui nesta realidade, iludido com tolices e se crer em estados que não está, como livre por exemplo, o corpo de energia pode igualmente se prender.

Frente a tacanha vida desta realidade, para alguns é demais quando descobrem as possibilidades do corpo de energia.

Se para alguns os outros mundos acessíveis pelo corpo de energia, se tornam um campo de trabalho e testes, um campo de treinamento onde aprendemos a usar, onde maturamos nosso corpo energético, tanto quando maturamos nosso corpo físico neste mundo, para outros os mundos viram uma nova fonte de entrega, de inconsciência, de diluição e identificação.

A leitura das outras realidades como planos "espirituais" mais "evoluídos" e menos "evoluídos" e todo o neodarwinismo social que vem por aí é apenas uma pálida amostra de como este conhecimento foi deturpado.

Pior ainda quando colocam este mundo no qual vivemos como o "fundo do poço" , o "vale de lágrimas" de onde devemos "sair" para a "pureza" dos planos "superiores".

Reconhecendo este mundo como apenas mais um entre tantos e os tantos como apenas outros distintos desse, os (as) xamãs usam ambos, cada qual de forma específica e pragmática, no trabalho de expandir ao máximo sua consciência perceptiva.

E a realidade e amplitude de seu trabalho no aqui e agora é o mesmo que a realidade e amplitude de seu trabalho no corpo de energia.

Nuvem que passa
Data: Sex Set 15, 2000 12:01 am

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Visão de um espreitador, por Gurdjieff


A ioga é precisamente a sujeição da vida ao jugo das ideias. A palavra "yoga", que vem do sânscrito, quer dizer unir...

Aquele que compreende fala de outras coisas, da vida interior e não da exterior.

O caminho certo é acabar com o conflito entre a vida das ideias e a vida cotidiana. Para isso é necessário conhecer a si mesmo. Saber a cada momento o que se está fazendo e por quê. Só então seremos senhores das coisas e não seus escravos. Em geral satisfazemos nossos desejos antes de pensar se são necessários a nossos objetivos superiores.

Procure viver de maneira a manter-se vigilante quanto às suas ações e não fazer nada que não sirva aos propósitos mais elevados. Ou, em outras palavras, aprenda a fazer tudo de modo a servir a um propósito superior.

Isto é possível. Se alguma coisa for particularmente difícil, considere-a como um exercício. Lembre-se que tudo que é difícil de ser feito tem o objetivo de sujeitar-nos ao espírito. Assim, tudo se tornará mais fácil e terá um significado. Mas, não importa o que estejamos fazendo, é de importância vital perguntar, antes de cada pensamento, de cada palavra, de cada ato:

Por que faço isso? É necessário?

E então, imperceptivelmente, muitas de nossas ações e atos deixarão de ser desnecessários, e passarão a servir a fins superiores.

O conflito interno em nossa vida, então começará a desaparecer e será substituído pela harmonia.

Aprenda então a repousar: isto talvez é o mais importante. Aprenda a não pensar, a controlar seus pensamentos.

Pergunte-se com frequência, se é necessário pensar no que está pensando, ou se seria melhor pensar sobre outra coisa, ou melhor ainda não pensar em nada?

Isto é o mais difícil, mas é essencial. Aprenda a pensar e não pensar. Saiba coma parar os pensamentos. Seja capaz de criar um silêncio interior. Chegará o momento em que ouvirá a voz do silêncio. Esta é a primeira e mais importante ioga.

Quando ocorrer, quando começar a ouvir a voz do silêncio (no Nagualismo é chamado como voz de ver), então novas forças e capacidades começarão a aparecer.

A princípio serão vagas e imprecisas; mais tarde, porém, tornar-se-ão tão obedientes à sua vontade quanto o olhar, a audição e o tato.

Mas tudo deve ser aceito calmamente, sem pressa, sem forçar a atenção sobre o progresso interior, pois a atenção forçada pode impedir o desenvolvimento de novas capacidades.

Então será necessário aprender a ver cada objeto como um todo. Compreende o que isto significa?

Normalmente vemos apenas as partes de uma coisa; seja apenas o começo sem qualquer continuação e o fim; ou o meio, ou o fim. Procure ver sempre tudo como um todo. Para chegar a este ponto, comece a pensar em tudo ao inverso; não tome o princípio sem o fim.

E começará então a ver muito mais das coisas que vê hoje.

Clarividência é ver cada vez de uma perspectiva mais alta, mais abrangente, aos poucos nos apercebemos de muito mais.

Para alcançar estas capacidades, em primeiro lugar é preciso que nos tornemos senhores daquilo que já possuímos: nós mesmos. Para isso podemos nos indagar, a cada hora, o que fizemos durante esta hora? Os iogues fazem isto a todo instante. A prática constante é necessária e imprescindível para adquirir autocontrole.

E quando sua alma começar se habituar com esta nova ordem de ideias, a este novo plano de vida, então quando realizares alguma coisa, juntamente com o florescimento dos novos poderes na sua alma, começará a observar que não está sozinho em seu caminho.

Na noite escura, por toda parte, na estrada, começará a ver luzes, e compreenderá que são os viajantes que caminham na mesma direção, para o mesmo templo, para a mesma festa...

O que devo fazer para seguir este caminho ? Perguntou.

Comece observando a si mesmo. Tente limitar-se, mesmo que seja apenas uma questão de eliminar coisas de que não precisa, mas que consomem a maior parte do seu tempo e da sua energia. Procure compreender que está muito distante do objetivo, mas que este é possível de ser alcançado, acredite nisto, e em pouco tempo, à distância, começará a vislumbrar o caminho!

Conversas com o Diabo - Gurdjieff

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Sobre o silêncio interior: coletânea de diferentes textos.

O Ponto Crítico

(Lado Ativo do Infinito - Carlos Castaneda)

Don Juan definiu o silêncio interior como um estado particular de ser onde os pensamentos são eliminados e a pessoa então age a partir de um nível diferente daquele da percepção do dia-a-dia. Ele enfatizou que o silêncio interior significa o cancelamento do diálogo interno – o companheiro perene dos pensamentos – e que desse modo era um estado de profunda quietude.

"Os feiticeiros antigos," disse don Juan, "chamavam de silêncio interior a esse estado porque é um estado onde a percepção não depende dos sentidos. O que funciona durante o silêncio interior é uma outra faculdade que o homem possui, a faculdade que faz dele um ser mágico, a mesma faculdade que foi suprimida, não pelo próprio homem, mas por uma espécie de influência externa."

"Que influência externa é essa que suprimiu a faculdade mágica do homem?" perguntei.

"Esse é um tópico para futura explanação," replicou don Juan, "não está sendo objeto de nossa presente discussão, embora ele seja na verdade o aspecto mais sério da feitiçaria dos xamãs do México antigo.

"O silêncio interior," continuou ele, "é a plataforma da qual tudo o mais é projetado pela feitiçaria. Em outras palavras, tudo o que fazemos nos conduz a essa plataforma, que, como tudo o mais no mundo dos feiticeiros, não revela a si mesmo a menos que algo gigantesco nos sacuda."

Don Juan disse que os feiticeiros do México antigo arquitetaram um sem número de caminhos para sacudi-los, a si mesmos ou a outros praticantes de feitiçaria, dos pés à cabeça com a finalidade de conduzi-los ao cobiçado estado de silêncio interior. Consideravam que os atos mais disparatados, que pareciam não ter nada a ver com a busca do silêncio interior, tais como, por exemplo, pular de cachoeiras ou passar a noite dependurado de cabeça para baixo do ramo mais alto de uma árvore, eram pontos chave que despertavam-no.

Seguindo as bases racionais dos feiticeiros do México antigo, don Juan afirmava categoricamente que o silêncio interior era algo acumulável, algo que pode ser desenvolvido aos poucos. No meu caso, ele esforçou-se para guiar-me no sentido de construir um núcleo de silêncio interior em mim mesmo, e depois adicionar a ele, minuto a minuto, novas porções pela prática em cada momento oportuno. Ele explicou que os feiticeiros do México antigo descobriram que cada indivíduo tem um limiar diferente de silêncio interior em termos de tempo, isso significando que o silêncio interior deve ser mantido por cada um de nós por um período de tempo correspondente ao seu limiar particular antes que possa funcionar.

"Qual é o sinal que indica que o silêncio interior esteja funcionando, don Juan?" perguntei.

"O silêncio interior começa a funcionar a partir do momento em que começa a ser acumulado," replicou ele. "O que os antigos feiticeiros buscavam era o resultado final, dramático, definitivo de se atingir o limiar individual do silêncio. Alguns praticantes muito talentosos necessitam apenas de alguns minutos de silêncio para atingir o cobiçado gol. Outros, menos talentosos, necessitam de longos períodos de silêncio, talvez mais de uma hora de quietude completa, antes de atingir o fim desejado. O resultado desejado é o que os feiticeiros chamam de parar o mundo, momento em que tudo ao nosso redor deixa de ser o que sempre foi.

"Esse é o momento em que os feiticeiros retornam à verdadeira natureza do homem," continuou don Juan. "Os feiticeiros também chamavam-no de liberdade total. Ele é o momento em que o homem escravo transforma-se no homem livre, capaz de feitos de percepção que desafiam nossa imaginação linear."

Don Juan assegurou-me que o silêncio interior é a avenida que conduz à verdadeira suspensão do julgamento – a um momento em que os dados sensoriais emanados do universo ao largo cessam de ser interpretados pelos nossos sentidos; um momento em que a cognição cessa de ser a força com a qual, através do uso e repetição, é tecida a natureza do mundo.

"Os feiticeiros necessitam de um ponto crítico para ajustar o funcionamento do silêncio interior," disse don Juan. "O ponto crítico é como a massa que o pedreiro coloca entre os tijolos. Só quando a massa seca é que os tijolos soltos transformam-se numa estrutura."

Desde o início de nossa associação, don Juan inculcou em mim o valor, a necessidade do silêncio interior. Eu fiz o melhor possível para seguir suas sugestões para acumular o silêncio interior, segundo por segundo. Eu não tinha nem modo de medir o efeito dessa acumulação e nem tive nenhum meio de julgar se atingi ou não qualquer limiar. Eu apenas aspirava evasivamente (o termo mais adequado aqui seria intensamente, e não evasivamente) acumular o silêncio interior, não apenas para satisfazer don Juan mas porque o ato de o acumular tornou-se um desafio em si mesmo.

Um dia, eu e don Juan passeávamos despreocupadamente pela praça principal de Hermossilo. Era no início de uma tarde de um dia nublado. O ar estava quente e seco e realmente muito agradável. Havia grande número de pessoas passeando pelo local. A praça possuía lojas ao seu redor. Eu havia estado em Hermossilo muitas vezes, e mesmo assim nunca notara a existências das lojas. Sabia que elas ali estavam, mas a sua presença não era algo que eu conscientemente percebia. Eu não teria condições de desenhar um mapa da praça mesmo se minha vida dependesse disso. Naquele dia, enquanto andava com don Juan, tentava localizar e identificar as lojas. Procurava alguma coisa para usar como artifício mnemônico que iria ativar minha lembrança no caso de necessidade futura.

"Como já disse para você muitas vezes anteriormente," disse don Juan, sacudindo-me para fora de minha concentração, "cada feiticeiro que conheço, homem ou mulher, cedo ou tarde atinge um ponto crítico em sua vida."

"Você quer dizer que eles sofrem um colapso mental, ou algo parecido?" perguntei.

"Não, não," disse ele, rindo. "Colapsos mentais ocorrem nas pessoas auto indulgentes. Os feiticeiros não são pessoas. O que eu quero dizer é que em dado momento a continuidade de suas vidas tem que ser quebrada para que o silêncio interior possa ser instalado, tornando-se uma parte ativa de suas estruturas.

"É importante, muito importante," continuou don Juan, "que você mesmo atinja deliberadamente o ponto crítico, ou que você o crie artificial e inteligentemente."

"O que você quer dizer com isso, don Juan?" perguntei, fisgado pelo seu raciocínio intrigante.

"Seu ponto crítico," disse ele, "é interromper sua vida como você a conhece. Você fez tudo o que eu disse para você fazer, zelosa e acuradamente. Se você é talentoso, nunca o demonstrou. Esse parece ser o seu estilo. Você não é vagaroso, mas age como se fosse. Você é muito seguro de si mesmo, mas age como se fosse inseguro. Você não é tímido e mesmo assim age com se temesse as pessoas. Tudo o que você faz aponta para uma mesma direção: você necessita acabar com tudo isso, impiedosamente."

"Mas de que modo, don Juan? O que você tem em mente?" perguntei, genuinamente agitado.

"Penso que tudo se resume numa coisa," disse ele. "Você deve deixar seus amigos. Deve despedir-se deles, para sempre. Não é possível você continuar no caminho do guerreiro carregando sua história pessoal com você, e a menos que você interrompa seu modo de vida, não terei condições de continuar com a minha instrução."

"E agora, don Juan?" disse eu. "Tenho que colocar os pés no chão. Você está pedindo um preço muito alto. Para ser franco, acho que não posso pagá-lo. Meus amigos são minha família, meu ponto de referência."

"Exatamente, exatamente," afirmou ele. "Eles são o seu ponto de referência. Por isso, eles têm que sair de sua vida. Os feiticeiros têm apenas um ponto de referência: o infinito."

"Mas como você quer que eu proceda, don Juan?" perguntei com uma voz queixosa. Seu pedido estava fazendo-me subir pelas paredes.

"Você deve simplesmente sair," disse ele tranquilamente. "Saia de qualquer modo que conseguir."

"Mas para aonde irei?" perguntei.

"Minha recomendação é que você alugue um quarto num desses hotéis de terceira categoria que você conhece," disse ele. "Quanto pior a aparência do mesmo, melhor. Se o quarto tiver tapetes verdes estragados, cortinas verdes estragadas, e paredes verdes estragadas, será então muitíssimo melhor – um lugar comparável àquele hotel que uma vez mostrei para você em LA."

Ri nervosamente ao lembrar-me da ocasião em que estive dando uma volta de carro com don Juan no setor industrial de LA, onde havia apenas depósitos e hotéis dilapidados para as pessoas em trânsito. Um hotel em particular chamou a atenção de don Juan por causa de seu nome bombástico: Eduardo Sétimo. Paramos por um momento na rua para apreciá-lo.

"Aquele hotel lá," disse don Juan, apontando para ele, "é para mim a representação verdadeira da vida na Terra para o homem comum. Se você tivesse sorte ou se fosse implacável, você alugaria um quarto com vista para a rua, onde você veria este desfile interminável da miséria humana. Se não tivesse tal sorte ou se não for tão implacável, você alugaria um quarto dos fundos, com vista para o prédio ao lado. Pense em passar a vida dividido entre essas duas vistas, tendo inveja da vista da rua se seu quarto for nos fundos, e com inveja da vista do prédio ao lado, se seu quarto for de frente, cansado de tanto olhar para fora."

A metáfora de don Juan aborreceu-me imensuravelmente, pois calou fundo em mim.

Agora, com a perspectiva de ter que alugar um quarto num hotel comparável ao Eduardo Sétimo, eu não sabia o que dizer ou para aonde ir.

"O que você quer que faça lá, don Juan?" perguntei.

"Um feiticeiro usa um lugar como esse para morrer," disse ele, olhando para mim sem piscar uma só vez. "Você nunca esteve sozinho em sua vida. Agora está na hora. Você ficará naquele quarto até morrer."

Sua exigência assustou-me, mas ao mesmo tempo, fez-me rir.

"Não é que eu vá fazer isso, don Juan," disse eu, "mas qual seria o critério para saber que morri? – a menos que você queira que eu morra de fato, fisicamente."

"Não," disse ele, "não quero que seu corpo morra fisicamente. Quero que sua pessoa morra. Essas duas coisas são muito diferentes. Em essência, sua pessoa tem muito pouco a ver com seu corpo. Sua pessoa é sua mente, e acredite-me, a sua mente não é sua."

"Que disparate é esse, don Juan, que minha mente não é minha?" ouvi a mim mesmo dizer com um acento nervoso em minha voz.

"Algum dia irei falar com você sobre isso," disse ele, "mas não enquanto você tiver seus amigos como amortecedores.

"O critério que indica que um feiticeiro está morto," continuou ele, "é o fato de não fazer nenhuma diferença para ele estar sozinho ou ter companhia. O dia em que você não cobiçar a companhia de seus amigos, que você usa com anteparos, esse será o dia em que sua pessoa morreu. O que você me diz? Você topa?"

"Eu não posso fazer isso, don Juan," disse eu. "É inútil tentar mentir para você. Eu não posso deixar meus amigos."

"Está tudo bem," disse ele imperturbável. O que eu disse pareceu não ter lhe afetado nenhum pouco. "Eu não terei mais condições de conversar com você, mas podemos dizer que durante o tempo em que passamos juntos, você aprendeu bastante. Você aprendeu coisas que farão de você uma pessoa muito forte, independentemente de você voltar ou extraviar-se."

Ele bateu em minhas costas e disse-me adeus. Deu meia volta e simplesmente desapareceu no meio das pessoas que estavam na praça, como se tivesse diluído-se entre elas. Por um instante eu tive a estranha sensação de que as pessoas na praça eram como uma cortina que ele tinha aberto e desaparecido depois atrás dela. O final chegou, como tudo no mundo de don Juan: rápida e imprevisivelmente. De repente, aquilo estava comigo, eu estava à sua mercê, sem que eu nem mesmo soubesse como aconteceu.

Eu deveria sentir-me esmagado. Isso, entretanto não ocorreu. Não sabia por que estava feliz da vida. Fiquei maravilhado com a facilidade como tudo terminou. Don Juan era certamente uma pessoa elegante. Não houve nenhuma recriminação, nem raiva, nem nada parecido, nada. Entrei no carro e comecei a dirigir, feliz como uma cotovia. Eu estava excitado. Como era extraordinário o modo como tudo terminara tão depressa, pensava eu, sem nenhum trauma, sem nenhuma dor.

Minha viagem de volta para casa foi tranqüila. Em LA, estando em meu ambiente familiar, percebi que absorvera uma enorme quantidade de energia em meu último encontro com don Juan. Estava realmente muito feliz, relaxado, e retomei o que considerava ser minha vida normal com sabor renovado. Toda a minha atribulação com meus amigos, e tudo o que percebera sobre eles, tudo o que dissera a don Juan a esse respeito, tudo, tudo estava definitivamente esquecido. Era como se alguma coisa tivesse apagado tudo de minha mente. Fiquei maravilhado por duas vezes com a facilidade com que esquecera algo que fora tão significativo, e de como esse esquecimento fora tão completo.

Tudo estava como esperava. Havia apenas uma única inconsistência que perturbava o claro paradigma de minha volta à boa vida anterior: lembrava-me distintamente de ouvir don Juan dizer-me que minha partida do mundo dos feiticeiros era puramente acadêmica, e que eu voltaria. Eu lembrei-me de ter anotado cada uma das palavras de nossa conversa. De acordo com o meu modo linear de raciocinar e lembrar-me das coisas, don Juan nunca dissera tal coisa. Como seria possível que eu me lembrasse de coisas que nunca aconteceram? Eu ponderei sobre aquilo sem conseguir esclarecer nada. Minha pseudo lembrança era bastante estranha para que eu pudesse levá-la a sério, mas então decidi que não mais iria pensar no assunto. No que me dizia respeito, estava fora do ambiente de don Juan.

Seguindo as sugestões de don Juan com relação ao meu comportamento para com as pessoas que de algum modo me favoreceram, eu cheguei a uma conclusão que para mim era tremenda: honrar e agradecer meus amigos antes que fosse tarde demais. Um caso específico era o meu amigo Rodrigo Cummings. Um incidente envolvendo meu amigo Rodrigo, entretanto, desmoronou meu novo paradigma do que resultou outros desmoronamentos até a destruição total.

Minha atitude para com ele mudou radicalmente quando eu consegui vencer minha competitividade para com ele. Descobri que era a coisa mais fácil do mundo para mim projetar-me cem por cento em qualquer coisa que Rodrigo fizesse. Eu era, de fato, exatamente igual a ele, mas só descobri isso depois que parei de competir com ele. A verdade então emergiu para mim com uma clareza enlouquecedora. Um dos desejos mais ardentes de Rodrigo era terminar o colégio. Cada semestre, ele matriculava-se no maior número permitido de matérias. Depois, quando o semestre avançava, ele desistia de cada uma das matérias, uma atrás da outra. Em algumas vezes ele até mesmo saía da escola. Em outras vezes, ele fazia um curso de três matérias durante todo o semestre até o final amargo.

Durante seu último semestre, ele fazia um curso de sociologia porque gostava da matéria. O exame final aproximava-se. Ele me disse que tinha três semanas para estudar, para ler o livro texto do curso. Ele pensava que tal quantidade de tempo era um desperdício para ler apenas seiscentas páginas do livro. Considerava-se uma espécie de leitor-relâmpago, e que retinha o que lia em um nível muito alto; em sua opinião, sua memória era cem por cento fotográfica.

Ele pensava que tinha muito tempo para o exame e por isso pediu-me para ajudá-lo no recondicionamento do seu carro no sentido de facilitar jogar papel fora. Queria remover a porta direita para poder jogar o papel pela abertura com a mão direita, em lugar de jogar o papel sobre a capota do carro, com a esquerda. Chamei sua atenção para o fato de que era canhoto e ele então argumentou que, entre suas múltiplas habilidades, uma delas era ser ambidestro, fato que nenhum de seus amigos notara. Tinha razão nessa parte; eu mesmo nunca notara isso. Depois que lhe ajudei a remover a porta, ele decidiu remover também o forro do teto, que estava muito estragado. Ele disse que seu carro estava em ótimas condições na parte mecânica e que iria levá-lo a Tijuana, no México, cidade que ele, como bom angelino que era, chamava de TJ, e onde trocaria o forro por alguns poucos dólares.

"Poderíamos aproveitar a viagem," disse ele alegremente. Chegou até mesmo a escolher os amigos que iriam com ele. "Em TJ, estou certo de que você irá procurar livros usados, porque é um bobo. O restante da turma irá para algum bordel. Eu conheço uma porção deles."

Gastamos uma semana para tirar o forro velho e lixar o teto para receber o novo. Rodrigo então ficou com apenas duas semanas para estudar e ainda considerava esse tempo muito longo. Ele então engajou-me em ajudá-lo a pintar seu apartamento e consertar o assoalho. Levamos uma semana para pintar o apartamento e lixar o assoalho de madeira. Em um dos quartos, ele não quis pintar sobre o papel de parede que já existia. Teria que alugar uma máquina que removia o papel pela aplicação de vapor d’água. Nem eu e nem Rodrigo, naturalmente, sabia como usar devidamente a máquina, e por isso fizemos o serviço mais porco do mundo. No final, tivemos que usar um produto chamado "Topping", uma mistura muito fina de gesso e outros produtos, que deixava a parede bastante lisa.

Depois de todo esse esforço, acabou que Rodrigo só ficou com dois dias para enfiar na cabeça as 600 páginas do livro. Ele entrou freneticamente numa maratona de leitura durante o dia e a noite, com a ajuda de anfetaminas. Rodrigo foi para a escola no dia do exame, sentou-se em sua carteira, e pegou a folha de múltipla escolha.

O que ele não conseguiu fazer foi ficar acordado para preencher a folha do exame. Seu corpo pendeu para a frente e sua cabeça bateu na carteira com um terrível baque. O exame teve que ser suspenso por um momento. O professor de sociologia ficou histérico, e o mesmo aconteceu com os alunos que estavam nas proximidades de Rodrigo. Seu corpo estava rígido e frio como gelo. A classe inteira suspeitou do pior; pensaram que ele morrera de um ataque do coração. Foram chamados paramédicos para removê-lo. Depois de um rápido exame, eles declararam que Rodrigo dormia profundamente e levaram-no para um hospital para que dormisse até passar o efeito da anfetamina.

Minha projeção em Rodrigo Cummings era tão completa que me assustou. Eu era exatamente como ele. A similitude tornou-se insustentável para mim. Num ato que considerei um aniquilamento total e suicida, aluguei um quarto num hotel dilapidado de Hollywood,

O carpete era verde e tinha manchas horríveis de cigarros queimados, que foram naturalmente esmagados com os pés antes que o carpete pegasse fogo. O quarto tinha cortinas verdes e paredes verdes em mal estado de conservação. O sinal luminoso do nome do hotel, que podia ser visto pela janela, piscava durante toda a noite.

Acabei por fazer o que don Juan recomendara, mas de maneira indireta. Eu não fiz o que fiz para atender qualquer exigência de don Juan ou com a intenção de aplainar as nossas arestas. Permaneci no hotel por meses sem fim, até que minha pessoa, como propusera don Juan, morresse, até que verdadeiramente não fizesse nenhuma diferença para mim estar só ou com amigos.

Depois de deixar o hotel, fui morar sozinho, mais perto da escola. Continuei meus estudos de antropologia, que nunca interrompera, e iniciei um negócio muito lucrativo tendo uma mulher como sócia. Tudo parecia estar perfeitamente em ordem até o dia em que fui atingido por uma percepção que pareceu como um tijolo jogado em minha cabeça: percebi que iria passar o resto de minha vida preocupando-me com meu negócio, ou preocupado com o fantasma da escolha entre ser acadêmico ou um negociante, ou preocupando-me com as fobias e embromações de minha sócia. Um verdadeiro desespero perfurava-me nas profundezas de meu ser. Pela primeira vez em minha vida, a despeito de todas as coisas que tinha feito e visto, sentia-me num beco sem saída. Estava completamente perdido. Comecei seriamente a brincar com a ideia do modo mais pragmático e indolor de dar cabo de minha vida.

Certa manhã uma batida alta e insistente acordou-me. Pensei que fosse a senhoria, e estava certo de que se não respondesse, ela teria entrado com sua chave mestra. Abri a porta, e ali estava don Juan! A minha surpresa foi tanta que fiquei tonto. Eu balbuciei e gaguejei, incapaz de dizer uma só palavra. Queria beijar sua mão, ajoelhar-me aos seus pés. Don Juan entrou e sentou-se na beira da cama tranquilamente.

"Fiz a viagem a LA," disse ele, "só para te ver."

Queria que ele tomasse café comigo, mas ele disse que tinha outras coisas para fazer, e que dispunha apenas de alguns momentos para conversar comigo. Eu contei para ele, apressadamente, a minha experiência no hotel. Sua presença causou-me tanta confusão que eu nem lembrei-me de perguntar-lhe como descobriu o meu endereço. Disse para ele que sentia um remorso intenso por ter dito as palavras que disse em Hermosillo.

"Você não tem que se desculpar," garantiu-me ele. "Cada um de nós faria a mesma coisa. Certa vez, eu mesmo deixei o mundo dos feiticeiros numa carreira desabalada, e quase que tive que morrer para perceber a estupidez do meu ato. O que importa é atingir o ponto crítico, do modo que for, e isso foi exatamente o que você fez. O silêncio interior está tornando-se real para você. Essa é a razão pela qual estou aqui na sua frente, falando com você. Entende o que quero dizer?"

Pensei ter entendido o que ele disse. Pensei que ele tivesse intuído ou lido, pelo modo com que ele lia as coisas no ar, que eu estava no fundo do poço e que ele tinha vindo para me resgatar.

"Você não tem nenhum tempo a perder," disse-me ele. "Deve dissolver a sua firma comercial dentro de uma hora, porque esse é o tempo de que disponho para esperar por você – não porque eu não possa esperar mais, mas porque o infinito está pressionando-me impiedosamente. Digamos que o infinito está dando uma hora para você anular a si mesmo. Para o infinito a única empreitada de um guerreiro que vale a pena é a liberdade. Qualquer outra é fraudulenta. Você pode dissolver tudo em uma hora?"

Não tive que assegurar-lhe que conseguiria. Sabia que tinha que conseguir. Don Juan disse-me então que uma vez realizada a tarefa, deveria encontrar-me com ele no mercado de uma certa cidade do México. Em meu esforço de pensar como terminar meu negócio, não entendi direito o que ele falou. Ele repetiu o que dissera e, é claro, pensei que estivesse brincando.

"Como irei até essa cidade, don Juan? Você quer que eu vá de carro, que tome um avião?" perguntei.

"Dissolva o seu negócio primeiro," ordenou ele, "e então a solução virá. Mas lembre-se, estarei esperando por você por apenas uma hora."

Ele saiu do apartamento, e eu esforcei-me febrilmente para dissolver tudo o que tinha. Naturalmente, gastei mais de uma hora, mas não parei para pensar nisso porque uma vez iniciada a dissolução dos meus negócios, o seu momentum levou-me de roldão. Foi somente depois de tudo terminado que o dilema real surgiu na minha frente. Senti então que falhara e que não havia nenhuma esperança para mim. Encontrava-me sem meus negócios e sem nenhuma possibilidade de ir ao encontro de don Juan.

Fui para a cama e busquei o único consolo que me veio à mente: quietude, silêncio. Para facilitar o aparecimento do silêncio interior, don Juan ensinara-me um modo de sentar-me na cama, com os joelhos dobrados e as solas dos pés juntas, as mãos empurrando os pés juntos, segurando-os pelos calcanhares. Ele dera-me uma grossa cavilha que eu sempre levava comigo para aonde fosse. Tinha cerca de 35 cm e destinava-se a suportar o peso de minha cabeça quando tombada para a frente; uma ponta ficava entre meus pés e a outra, que era almofadada, ficava no meio de minha testa. Todas as vezes que eu ficava em tal posição, caía no sono em questão de segundos.

Devo ter caído no sono com minha facilidade usual, pois sonhei que estava na cidade mexicana onde don Juan disse que me encontraria. Eu sempre ficava intrigado com essa cidade. O mercado só abria uma vez por semana, quando os fazendeiros da redondeza traziam seus produtos para serem vendidos. O que mais me fascinava nessa cidade era a estrada pavimentada que conduzia a ela. No ponto em a estrada chegava na cidade, a topografia possuía uma lombada forte. Eu sempre ficava sentado próximo de uma banca que vendia queijos e olhava para tal lombada. Via as pessoas que chegavam à cidade com seus jumentos carregados com as mercadorias, mas primeiro via apenas suas cabeças; quanto mais se aproximavam, maiores partes de seus corpos podiam ser vistas, até o momento em que atingiam a parte mais alta da lombada, quando então via todo o corpo delas. Eu tinha a impressão de que tais pessoas emergiam-se de dentro da terra, seja vagarosamente seja rapidamente, dependendo de sua velocidade. Em meu sonho, don Juan esperava por mim próximo da banca de queijo. Aproximei-me dele.

"Você conseguiu, a partir do seu silêncio interior," disse-me ele, batendo em minhas costas. "Você atingiu seu ponto crítico. Por um momento comecei a perder a esperança. Mas dei umas voltinhas por aí, pois sabia que você iria conseguir."

Nesse sonho, nós fomos dar umas voltas. Eu estava mais feliz que nunca. O sonho era tão vívido, tão terrivelmente real, que me deixou convencido, sem nenhuma dúvida de que resolvera meu problema, ainda que a solução fosse apenas uma fantasia, um sonho.

Don Juan riu, balançando a cabeça. Ele, claramente, lera meus pensamentos. "Você não está meramente sonhando," disse ele, "mas quem sou eu para dizer isso para você? Você, algum dia, irá saber disso por você mesmo – que não existe sonho a partir do silêncio interior – porque você irá escolher conhecer isso."


EL SILENCIO INTERNO, por Carlos Castaneda.


El conocimiento silencioso fue una faceta entera en la vida y actividades de los chamanes o brujos que vivieron en México en tiempos antiguos. De acuerdo con don Juan Matus, el maestro chamán que me introdujo al mundo cognoscitivo de los chamanes, el conocimiento silencioso era el resultado más codiciado por ellos, y lo buscaban a través de cada una de sus acciones y pensamientos.

Don Juan definió el conocimiento silencioso como un estado de la conciencia humana en el que todo lo que es pertinente al hombre es instantáneamente revelado, no a la mente o al intelecto, sino al ser total. Explicó que existe una banda de energía en el universo que los chamanes llaman la banda del hombre, y que dicha banda está presente en los seres humanos. Me aseguró que para los chamanes videntes, quienes ven directamente cómo fluye la energía en el universo, y que pueden ver al ser humano como un conglomerado de campos energéticos en forma de una esfera luminosa, la banda del hombre es un borde de luminosidad compacta que corta transversalmente la esfera luminosa en un ángulo de izquierda a derecha. La totalidad de la esfera luminosa es del tamaño de los brazos extendidos hacia los lados y hacia arriba y, en esa esfera luminosa, la banda del hombre mide quizá alrededor de treinta centímetros de ancho (largura). El conocimiento silencioso, explicó don Juan, es la interacción de energía dentro de esa banda, una interacción que es instantáneamente obvia para el chamán que ha logrado alcanzar el silencio interno. Don Juan dijo que el hombre común y corriente tiene una noción vaga de esta interacción energética. El hombre la intuye y trata de deducir su funcionamiento, de descubrir sus permutaciones. Por otro lado, un chamán recibe una descarga de la totalidad de esta interacción en cualquier momento en que la ejecución de esta interacción sea solicitada.

Don Juan me aseguró que el preludio al conocimiento silencioso es un estado de la percepción humana que los chamanes llaman el silencio interno, un estado libre de pensamientos y verbalizaciones silenciosas, al que los chamanes llaman el diálogo interno.

No importa cuánto se esforzó don Juan por hacerme comprender sus definiciones y explicaciones sobre el conocimiento silencioso, éstas permanecieron siempre oscuras, misteriosas, inescrutables. En su esfuerzo por aclarar aún más este punto, don Juan me dio una serie de ejemplos concretos del conocimiento silencio. El que más me gusto, debido a su alcance y a su pertinencia, es algo que el llamaba los lectores del infinito.

Los lectores del infinito es algo que suena como a una metáfora, pero es, más bien, una descripción fenomenológica que don Juan usaba para describir una condición perceptiva chamánica. Me dijo que esta condición chamánica concordaba con las metas y las expectativas del hombre de hoy en día, y que el hombre del siglo veinte es un lector que lee textos con una predilección especial. Tales textos pueden tener el formato de un libro, un escrito de computadora, un manual, literatura, descripciones técnicas, etcétera.

En su búsqueda continua por encontrar soluciones y respuestas a sus indagaciones, los chamanes del México antiguo descubrieron que cuando se alcanza el silencio interno, la conciencia del hombre puede dar fácilmente un salto a la percepción directa de la energía reflejada en cualquier horizonte dado. Ellos usaban el cielo como horizonte, así como las montañas o, en un espacio más reducido, las paredes de sus moradas. Eran capaces de ver energía reflejada en esos horizontes con si estuvieran viendo una película. Describieron concisamente este fenómeno, como la visualización de la energía con apariencia de un matiz - para ser precisos, un punto rojizo en el horizonte, color rojo granada. Lo llamaron el manchón de color granada.

Esos chamanes aseguraban que, en un momento dado, ese manchón de color granada explotaba y se convertía en imágenes que ellos veían como si estuvieran realmente viendo una película. Este logro perceptivo los convirtió en lo que ellos llamaron espectadores del infinito.

Don Juan creía que en mi caso era más apropiado considerar leer el infinito en lugar de verlo, ya que yo era dado a leer con misma pasión, sino es que con más, que lo que los chamanes del México antiguo eran dados a ver. Don Juan dejó perfectamente claro que ser un lector del infinito no quiere decir leer energía como si uno leyera un periódico, sino que las palabras se formulan con toda claridad a medida que uno las lee, como si una palabra llevara a otra, forrnando conceptos totales que se manifiestan y luego se desvanecen. El arte los charnanes es tener la habilidad de reunir y preservar estos conceptos antes de que se olviden al ser reemplazados con nuevas palabras, con los conceptos nuevos de un flujo de conciencia gráfica interminable.

Don Juan continuó explicando que los chamanes que vivieron en México en tiempos remotos, y que establecieron su linaje, fueron capaces de alcanzar el conocimiento silencioso después de haber entrado en su matriz: el silencio interno. Dijo que el silencio interno era un logro de tan tremenda importancia, que lo consideraban la condición esencial del chamanismo.

Don Juan puso tal énfasis en este silencio, que mi ambición era alcanzarlo. Quería llegar al silencio interno de inmediato. Sentía que no tenía un solo instante que perder. Cuando le pedí a don Juan que me diera una explicación concisa de los procedimientos a seguir, se rió de mi.

-Aventurarse en el mundo de los chamanes -dijo-, no es como aprender a manejar un automóvil. Uno necesita manuales e instrucciones para manejar un auto. Para alcanzar el silencio interno uno necesita intentarlo.

-Pero, ¿cómo puedo intentarlo? -insistí.

-La única manera en que puedes intentarlo es intentándolo - declaró.

Una de las cosas más difíciles de aceptar, para el hombre dc hoy en día, es la ausencia de procedimientos. En la actualidad, el ser humano parece estar bajo el poder de manuales, prácticas, métodos, pasos a seguir. EI hombre de hoy en día toma notas incesantemente, hace diagramas, está profundamente involucrado en "saber como". Pero en el mundo de los chamanes, dijo don Juan, los procedimientos y los rituales son meros instrumentos para atraer y enfocar la atención. Son artificios que se usan para forzar el enfoque de nuestro interés y determinación. No tienen ningún otro valor.

Don Juan creía que al hombre moderno le encantan las palabras, como si retuviese un sentimiento que ha sobrevivido hasta hoy de lo significativo que fue para él hablar por primera vez. Esto parece explicar su intenso énfasis en la palabra. Las encantaciones verbales parecen ser un retroceso a ese estado de enamoramiento con las palabras. Los chamanes creen que una larga serie de palabras, dichas en voz alta, debe haber ejercido un poder mesmérico.

Debido a la fuerza de sus prácticas y sus metas, los chamanes refutan el poder de la palabra. Se definen a sí mismos como navegantes en el mar de lo desconocido, Para ellos, la navegación es un hecho práctico, y navegar quiere decir moverse de un mundo a otro sin perder sobriedad, sin perder fuerza; y, para lograr realizar esta hazaña de navegación, no puede haber procedimientos o pasos a seguir, sino un solo acto abstracto que define todo: el acto de reforzar nuestro lazo con la fuerza que se extiende a través del universo, una fuerza que los chamanes llaman el intento. Debido a que estamos vivos y conscientes estamos de por sí, ya, íntimamente relacionados con el intento. Lo que necesitamos, de acuerdo con los chamanes, es hacer que ese lazo forme parte de nuestros actos conscientes, y ese acto de volvernos conscientes de nuestro lazo con el intento es otra forma de definir el conocimiento silencioso.

En el curso del tiempo que pasé con don Juan Matus aprendí, sin embargo, una cosa con relación a los procedimientos y los métodos. Si existe algo que los seres humanos necesitan para poder alcanzar El conocimiento silencioso, es reforzar su bienestar, su claridad, su determinación. Para poder intentar, uno debe poseer destreza física y mental y un espíritu claro.

De acuerdo con don Juan, los chamanes del México antiguo pusieron un enorme énfasis en la destreza física y el bienestar mental, y este mismo énfasis prevalece en los chamanes de hoy en día. Fui capaz de corroborar la verdad de sus aseveraciones al observar a don Juan y a sus quince compañeros chamanes. Su soberbio estado de balance físico y mental era uno de los rasgos más obvios en ellos.

La respuesta que don Juan me dio cuando le pregunte directamente por qué los chamanes ponen tanto énfasis en el lado físico del hombre, me sorprendió sobremanera. En aquellos años yo creía en el lado espiritual del hombre, un lado acerca de cuya existencia podía no estar completamente convencido, pero por lo menos, estaba inclinado a considerarlo como una posibilidad. Para mí, don Juan, era un ser espiritual.

-Los chamanes no son en absoluto espirituales -dijo -. Son seres sumamente prácticos. Sin embargo, es un hecho bien conocido que los chamanes, o los brujos, como les llaman, son generalmente considerados excéntricos o aun locos. quizá eso sea lo que te hace pensar que son espirituales. Parecen locos porque siempre están tratando de explicar cosas que son inexplicables. Al tratar de hacer esto pierden toda coherencia y dicen insensateces que, si se examinan desde el punto de vista de los chamanes, no son en absoluto insensateces, sino tentativas fútiles de dar explicaciones completas que no pueden completarse bajo ninguna circunstancia.

Don Juan me dijo que esos chamanes del México antiguo descubrieron y desarrollaron un gran número de procedimientos para alcanzar bienestar físico y mental, procedimientos que llamaron pases mágicos. También comentó que el efecto de los pases mágicos fue tan abrumador para ellos, que los pases se convirtieron, a través del tiempo, en uno de los componentes más importantes en sus vidas. Don Juan explicó que, dado como eran a comportamientos rituales, esos chamanes ocultaron rápidamente los pases mágicos en medio de ritos, y velaron el acto de enseñarlos o practicarlos en gran sigilo. Me aseguró que estos rituales eran totalmente absurdos, pero que cuanto más idiotas, más grande era su capacidad de ocultar algo de tan tremendo valor.

Cuando yo entré en el mundo de don Juan, la enseñanza y la práctica de los pases mágicos eran tan secretas como lo habían sido siempre, pero ya no eran en exceso rituales. Lo que don Juan comentó al respecto fue que los rituales habían perdido su ímpetu a medida que las nuevas generaciones de practicantes se interesaron más en la eficiencia y funcionalidad. Me recomendó, sin embargo, que no debía hablar sobre los pases mágicos con ninguno de sus discípulos, o con la gente en general, bajo ninguna circunstancia. La razón que me dio fue que los pases pertenecían exclusivamente a cada persona y que su efecto era tan avasallador, que sólo aquellos que habían tomado el camino del guerrero con verdadera seriedad podían practicarlos.

Don Juan me enseñó a mi y a sus tres discípulas, Taisha Abelar, Florinda Donner-Grau y Carol Tiggs, un gran número de pases mágicos pero, junto con esta riqueza de conocimiento, también nos dio la certeza de que éramos los últimos miembros de su linaje. la aceptación de este legado implicaba automáticamente encontrar nuevas formas de diseminar el conocimiento de su linaje, debido a que su continuación ya no era el objetivo.

Necesito aclarar un punto de suma importancia al respecto: don Juan Matus no se interesó jamás en enseñar su conocimiento. Él estaba interesado en perpetuar su linaje. Nosotros, sus cuatro discípulos, éramos los elementos, los medios -escogidos, dijo, por el espíritu mismo ya que él no había participado de manera activa en ello - que iban a asegurar su perpetuación. Por esta razón hizo esfuerzos titánicos para enseñarnos todo lo que sabía acerca del chamanismo, o la brujería, y acerca del desarrollo de su linaje.

En el curso de su enseñanza se dio cuenta de que mi configuración energética era, de acuerdo con él, tan diferente de la suya que eso no podía tener ningún otro significado excepto el fin de su línea. Le dije que me molestaba sobremanera su interpretación de cualquier diferencia invisible que pudiese existir entre nosotros. No me gustaba cargar con el peso de ser el último de su línea, ni tampoco comprendía su razonamiento.

-Aunque parece que los chamanes no hacen nada, más que tomar decisiones, en realidad no toman ninguna decisión -explicó-. Lo único que tienen son sus descubrimientos. Yo no decidí escogerte, y tampoco decidí que fueras de la manera que eres. Ya que yo no podía escoger a quién impartir mi conocimiento, tuve que aceptar a quien el espíritu me ofrecía; y esa persona fuiste tú, y tú eres energéticamente capaz sólo de terminar, no de continuar.

Dijo que la terminación de su linaje no tenía nada que ver con él o sus esfuerzos, o con su éxito o fracaso como un chaman en búsqueda de la libertad total. Lo comprendía como algo que tenía que ver con una elección que provenía de un nivel más allá del nivel humano, una elección que no fue tomada por seres o entidades, sino por las fuerzas impersonales del universo.

En un acuerdo unánime, las tres discípulas de don Juan y yo aceptamos lo que él llamó nuestro destino. El aceptarlo nos puso cara a cara con otro asunto al cual él se refería como cerrar la puerta detrás de nosotros; es decir, asumimos la responsabilidad de decidir exactamente qué hacer con todo lo que don Juan nos enseñó y de hacerlo impecablemente.

Antes que nada nos planteamos la pregunta crucial de qué hacer con los pases mágicos: la faceta más pragmática y funcional del conocimiento de don Juan. Decidimos usar los pases mágicos y enseñárselos a quien quisiera aprenderlos. Nuestra decisión de acabar con el sigilo que los rodeaba por un periodo de tiempo indeterminado fue, naturalmente, el corolario de nuestra convicción total de que, en realidad, somos el final del linaje de don Juan. Se volvió inconcebible para nosotros cargar con secretos que ni siquiera son nuestros. Encubrir los pases mágicos con secretos no fue nuestra decisión. Sin embargo, es nuestra decisión terminar con esa condición.

Nosotros cuatro nos dedicamos, entonces, a amalgamar las cuatro líneas diferentes de pases; pases que nos fueron enseñados a cada uno de nosotros separada e individualmente, de acuerdo con nuestra constitución física y mental particular. Tratamos de crear una forma genérica de cada movimiento, una forma adecuada para todos.

Esta amalgama dio como resultado una configuración de formas ligeramente modificadas de cada uno de los pases que nos enseñaron. Hemos llamado a esta nueva configuración Tensegridad, un término que pertenece a la arquitectura y significa "la propiedad de armazones que emplean miembros de tensión continua y miembros de compresión discontinua, de tal manera que cada miembro opera con máxima eficiencia y economía".

Para explicar qué son tos pases mágicos descubiertos por los chamanes de la antigüedad, como don Juan los llamaba, quisiera aclarar algo: los tiempos antiguos. Para don Juan esto significaba un tiempo de 7,000 a 10,000 años atrás; una cifra que parece en cierta forma incongruente si se examina desde el punto de vista de los esquemas clasificatorios de los eruditos de hoy en día. Cuando confronté a don Juan con la discrepancia entre sus cálculos y lo que yo consideraba ser un cálculo más realista, se mantuvo firme en su conviccion. Él creía que era un hecho, que la gente que vivió en el Nuevo Mundo de 7,000 a 10,000 años atrás, estaba profundamente interesada en asuntos del universo y de la percepción, asuntos que el hombre moderno no ha empezado ni siquiera a sondear.

Independientemente de nuestras diferentes opiniones, el sigilo que rodeó los pases mágicos durante eras y el efecto directo que éstos ejercieron sobre mí, han tenido una profunda influencia en la manera como los trato. Lo que estoy presentando en este trabajo es una reflexión intima de esta influencia. Me siento obligado a elucidar este tema siguiendo estrictamente la forma en que me fue presentado; para poder hacer esto, necesito regresar a los inicios de mi aprendizaje con don Juan Matus.

Comenzó haciendo comentarios sobre la habilidad física de lo chamanes de la antigüedad. Recalcó incesantemente la necesidad de poseer un cuerpo flexible, ágil; promovía su elasticidad y fuerza como el medio más seguro para alcanzar el mayor logro en la vida de un chamán: el conocimiento silencioso.

-La sensatez y la habilidad física eran las dos cosas más importantes en la vida de esos hombres y mujeres -reiteró en una ocasión-. La sobriedad y el pragmatismo son los dos únicos requisitos indispensables para alcanzar el conocimiento silencioso -para entrar en otros reinos de percepción. Para navegar de manera genuina en lo desconocido se necesita una actitud de osadía, pero no de descuido. Para establecer un balance entre la audacia y el descuido, un chaman tiene que ser extremadamente sobrio, cauteloso, hábil y estar en una soberbia condición física.

Don Juan decía que había cinco asuntos en la vida dc esos chamanes alrededor de los cuales giraba su búsqueda del conocimiento silencioso.

Estos cinco temas eran: 1. Los pases mágicos; 2. EI centro energético en el cuerpo humano llamado el centro de decisiones; 3. La recapitulación: el medio para acrecentar el alcance de la conciencia humana; 4. El ensueño: el verdadero arte de rornper los parámetros de la perecpción normal; 5. El silencio interno: el estado de la percepción humana desde el cual esos chamanes realizaban cada uno de sus logros perceptivos.

***

H.H.: Tu fuiste un monje budista por unos años... acechaste la posición de un monje budista... el silencio interno, puede resultar de esa disciplina también?

Taisha: Por supuesto que hay muchas técnicas de meditación y la meta de los monjes de cualquiera de estas técnicas es esa. Yo ya había hecho la recapitulación antes de ser un monje y así fui capaz de acechar estas posiciones... con eso no quiero decir que si practicas la meditación zen no llegarás a parar tu dialogó interno... hay muchas técnicas de meditación que apagan el diálogo interno. Pero eso no es suficiente... que eso lo quiero dejar claro... no es suficiente tenerlo quieto y tranquilo internamente... ¿qué pasa cuando vuelves a tu trabajo rodeado de gente y tu jefe enfurecido? o en tu casa con tus hijos que te están gritando... hace falta mantener ese silencio en medio de todo eso... de tener, silencio, ecuanimidad y resolución en cualquier situación... así que siempre nos lo mandaron de vuelta al mundo para comprobar y practicar el entrar en silencio... no sentado en posición en una cueva o algún lugar de meditación. He conversado con monjes tibetanos que han venido a L.A. y me han dicho que les es muy difícil el mantener su silencio y su ecuanimidad... y lo mismo pasó con los templos taoístas que se han convertido prácticamente en zonas turísticas que los monjes comentan que ahora, cuando el mundo ha entrado en sus dominios, han destruido algo de la paz y silencio que habían construido allí... pero los brujos dicen... no construyas tu silencio encima de una montaña sino adentro de tí mismo.


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