Temos aqui um capítulo do romance escrito pelo homem nawal, conhecido nas redes sociais como Nuvem que Passa (uma de suas espreitas). O tema vem bem a calhar, pois trata daquilo que Don Juan Matus chamou de "o tópico dos tópicos", o tema dos predadores, revelado pelo Dr. Carlos Castaneda no capítulo 15 do Lado Ativo do Infinito. Ao mesmo tempo este capítulo do romance, a ser lançado, bordeja outros assuntos que são importantes dentro do Xamanismo Guerreiro através do recurso literário da ficção, pois algumas verdades são mais digeríveis assadas no forno da lenda do que servidas de forma nua e crua.
Ao tocar no tema dos predadores, dos sombrios (termo usado pelo nawal A Lex Sed Rex) somos levados a refletir sobre a própria sombra que há em nós e sobre os riscos que existem dentro da "senda do fio da navalha, cheia de perigos por dentro e por fora", e que, inevitavelmente, se apresentam diante daquele(a) que busca, de fato, o conhecimento.
Ao tocar no tema dos predadores, dos sombrios (termo usado pelo nawal A Lex Sed Rex) somos levados a refletir sobre a própria sombra que há em nós e sobre os riscos que existem dentro da "senda do fio da navalha, cheia de perigos por dentro e por fora", e que, inevitavelmente, se apresentam diante daquele(a) que busca, de fato, o conhecimento.
"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se
para não tornar-se também um monstro.
Quando se olha muito tempo para um abismo,
o abismo também olha para você"
Friedrich Nietzche.
Friedrich Nietzche.
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Felipe sabia que seu passo era decisivo.
Em algum ponto daquela caverna estava o seu elo de contato.
Desta vez iria além do contato, além do intermediário.
Iria falar com um deles. Ir ao Mundo deles.
Como seria estar lá naquele mundo estranho de sombras mutantes?
Um mundo de seres predadores, conhecedores de segredos de poder.
Ainda se sentia um pouco alterado pelos exercícios que realizara preparando-se para este encontro.
Seus anos de treinamento na Escola de Torhn permitiam-lhe adequar sua percepção a outros níveis de realidade.
Aprendera muito sobre a percepção.
Entendia plenamente que era um ente perceptivo e isto importava.
O que era percebido, o que via a sua volta como realidade, quer física, quer social, era um arranjo perceptivo criado a partir de um consenso.
Visitara muitos mundos e vira como de fato havia sempre um acordo mudo, uma mesma visão da realidade era partilhada por muitos e isso criava um mundo.
Assim pensara até agora.
Há bem pouco descobrira que os mundos e a consciência existem por si.
Toda a existência é composta de energia consciente de si mesma.
Somos entes perceptivos, mas o que percebemos vem lá de fora, são impulsos, irradiações que escolhemos perceber de tal ou qual forma.
O que criamos é nossa interpretação da realidade e esta interpretação está originalmente determindada pelo meio que nos educou.
Felipe aprendeu a rever tudo isso e a criar uma nova visão da realidade.
Felipe sabia de tudo isso e muito mais, mas ainda assim seu coração estava acelerado para um praticante dos exercícios pranayamas.
É para ele estranho praticá-los agora.
Pois tais exercícios lhe foram ensinados pelos mestres e mestras das Escolas de Torhn e neste instante cada passo seu é objetivamente um caminhar na negação de tudo que lhe foi ensinado ali.
Mas Felipe aprendeu a ser suficientemente cínico, para lidar consigo mesmo a princípio.
E assim acalma seus batimenos cardíacos e vai mais longe , amplia ao máximo sua percepção.
Dentro em breve estará no mundo de seres poderosos e predadores.
Seres que desejam a Teia dos Mundos para si.
Felipe descobriu que os Conquistadores eram apenas os capatazes, que os verdadeiros donos do poder eram seres misteriosos alienígenas, usando dos serviços dos Conquistadores rumo a seus próprios fins.
Felipe foi mais longe, teve acesso a esses misteriosos seres.
Sua interação com tais consciências alienígenas o transformaram.
Ele compreendeu aspectos novos do poder e da existência.
Foi seduzido a pactuar com tais seres.
Lhe prometeram torná-lo um deles, não um capataz como os outros, mas um deles.
E agora ali estava ele, dando os passos finais para tal transformação.
Era um traidor e por sua responsabilidade o que poderia levar ainda muito tempo para acontecer, a queda da maior parte da teia nas mãos dos Conquistadoras, agora era algo cada vez mais próximo.
A Teia dos Mundos.
Uma teia, como em uma teia de aranha os mundos se dispuseram pelos abismos vazios.
Se imaginares uma teia, cada ponto de junção de um fio com o outro é um mundo e as linhas entre os mundos são os túneis que ligam de fato um mundo a quatro ou mais outros.
Através desses túneis os seres iam e vinham pela teia, os reinos se comunicavam interagiam e cresciam.
Por eons assim foi.
Mas então surgiram os Consquistadores.
Uma coalizão de sacerdotes seguidores de um culto de culpa, medo e submissão, sempre a espera de uma felicidade futura, assim facilmente manipuláveis no presente.
Eles corromperam guerreiros para servi-los e assim criaram um novo poder.
Esses Conquistadores tiveram seu poder ampliado de uma forma que eles mesmos não esperavam.
Foram apoiados por forças poderosas em suas imaturas disputas por poder e supremacia.
Felipe sabe que não são esses vulneráveis senhores e senhoras de reinos e mundos ou seus estratagemas violentos e destrutivos que, de fato, promovem sua ascenção, mas sim o apoio desses misteriosos seres: os Sombrios.
Inteligências Sofisticadas que vieram à Teia dos Mundos e aqui ficaram presos. Agora desejam tudo destruir para poderem se soltar.
Como uma vespa moribunda capturada em seu vôo que vê na destruição da Teia sua única esperança de salvação.
Forças em luta pela sobrevivência, como a vespa e a aranha na mata.
Felipe sabe que os sombrios são fortes, e vencerão. Assim acredita.
Essa é sua certeza, por isso está pronto a dar um novo passo.
Ele esteve com oráculos, consultou fontes fidedignas de videntes e miradores de estrelas.
Uma fase de grande transformação está se aproximando.
Será um ciclo de desintegração de tudo o que está construído para que só o real resista e o que foi fundado em falhas bases pereça.
Os Conquistadores são destruidores, são alimentados por essa força de forma inconsciente.
Os Sombrios através dos Salvatores canalizam mais e mais energia para si. Dentro em pouco seu poder será mais e mais sensível.
O poder.
Era isto que interessava a Felipe.
"Somos o poder que temos".
Esta frase marcara profundamente a mente de Felipe, frase ouvida do mais carinhoso tom a mais assustadora ira.
Seu pai jamais permitira que ele esquecesse que era dele, só dele a responsabilidade de manter o poder na família.
Felipe ria do seu velho e decrépito pai.
Ele tinha razão em parte.
E a terrível disiciplina que lhe impingiu facilitou seu treinamento, impediu que desenvolvesse emocionalismos inúteis como seus companheiros de estudo.
Balder, o filho de Torhn.
Um semi-deus.
Enquanto Felipe viveria por muitos e muitos katuns, como todos os outros de sua raça, Balder viveria por muitos e muitos baktuns.
Foram amigos, mas Balder era um idealista, com sonhos de nobreza, de servir ao seu povo e outras tolices de mentes imaturas que não compreendem a dura solidão e ferocidade do mundo.
Balder tinha a fraqueza da compaixão e Felipe não suportava tal fraqueza.
Tornaram-se competidores em tudo até que a hábil direção da escola colocou-os em campus diferentes visando impedir o surgir de uma rivalidade mais séria.
Felipe estava agora no último trecho da longa caverna.
Aqui ela se abre em duas entradas distintas.
Quem habitaria o eremitério da esquerda?
Já dentro do lado direito continuou a descer e descer, depois subiu muitos degraus encaracolados tendo a um lado inscrições e desenhos de uma beleza inquietante, símbolos grafados antes dos tempos atuais, por seres que há muito partiram.
Após contarem uma história de poder e força, da conquista de poderes e mundos por feiticeiros e feiticeiras de vasto poder as inscrições terminam abruptamente com avisos em tinta brilhante sobre os perigos que cercavam tais caminhos e que o poder exterior era sempre ilusório.
Símbolos alertando ao que sobe sobre os riscos que ele está prestes a desencadear sobre si e sobre seu povo.
- "Talvez mais, talvez muitos povos", pensava consigo.
Poucos já estiveram naquelas cavernas, onde ao redor de grossas estalactites e estalagmites degraus espiralados levam a muitos nichos nelas escavados.
Se, talvez, Felipe tivesse ido mais cedo para as Escolas no Estado de Torhn, se houvesse recebido outra educação, talvez sua consciência, forjada a partir de influências mais despertas, tivesse o poder de alterar seus próximos passos.
Mas Felipe é filho de Irgio, e Irgio foi um pequeno senhor de poucas terras e muitas ambições.
A frustração de seus planos foi atribuída a sua falta de poder e o pequeno Felipe teve seu intelecto brilhante, sua grande força interior doutrinados para buscar o poder, o poder sobre outros.
Felipe esteve nas Escolas de Torhn.
Foi um aluno brilhante, mas fugiu.
Faz poucos kins, há poucos kins atras ele estava em seu retiro, preparando-se para testar suas habilidades nas trilhas místicas da floresta Icamiaba.
As Icamiabas.
Mulheres guerreiras que viviam no mundo-floresta.
Icamiabas, As Escolas de Tohrn estão em seu mundo e nele tem santuário.
A vasta floresta Icamiaba, com suas milenares árvores Uru, cheias de tal poder que em elo com sonhadoras Icamiabas podem impedir que qualquer nave sobre elas voem.
O mundo Icamiaba com seus vastos 2 continentes cobertos de florestas.
Em um ponto dessas florestas está o Estado de Thorn, um lugar ancestral.
Ali estudaram em outros tempos todos os futuros governantes de vários povos.
Homens e mulheres aprimoravam ali seu talento para apoiar seu povo em seus caminhos de vida.
O Estado de Thorn, protegido de leste a norte, de norte a sudoeste pela floresta Uru.
De sudoeste a leste um grande abismo, uma fissura na casca de terra, aberto para bolsões de uma substância instável da qual bolhas de plásmica energia sobem até muitos metros da fissura e que ao explodirem emanam tal radiação que mesmo os mais experientes voadores em tapetes de El Sarer não conseguem passar sobre a fissura.
Assim, naturalmente protegida, por muitos baktuns, está a Escola de Torhn, com suas alas, uma grande cidade, integrada à grande floresta, esculpida na rocha e armada sobre o grande lago.
O Estado de Torhn é uma confederação composta por muitos núcleos, onde habitantes de diversos mundos, ou mesmo de povos diferentes do mesmo mundo se estabeleceram após terem conseguido fugir da invasão de seus lares natais pelas tropas dos Conquistadores.
Arquiteturas de todo o tipo serviam como salas de aula, áreas de treino e laboratórios.
Com o crescente poder dos Conquistadores, uma coalizão de senhores e senhoras ambiciosos e belicosos, sem nenhuma ética e prontos a usar outros seres humanos como objeto para alcançar seus objetivos, os povos que ainda estavam livres enviavam seus futuros líderes para que se desenvolvessem e fossem sábios e sábias em seu governar.
Mas os Conquistadores cresciam e se tornavam mais fortes.
Se autointitulam "Nóbiles" e fazem pactos entre si, contra aqueles que ainda apoiam as velhas câmaras do povo, onde todo cidadão podia discutir sobre os destinos de sua comunidade.
Antes, entre os povos da maioria dos mundos da teia, eram os chefes figuras de grande capacidade de consenso, a semelhança do que ainda ocorre em algumas tribos.
Palavras distantes ecoaram em sua mente:
-“Portanto, o que esta nova elite de poder vem fazer é destruir a capacidade de autonomia, de ver e perceber com senso apurado o mundo.
Sistematicamente os conquistadores destroem nos mundos que dominam a capacidade dos seres de tomarem decisões. Assim, em poucas gerações, doutrinados e limitados entregam os seres o controle de suas vidas e a capacidade de decidir a gigantescos organismos, as instituições que os Salvatores mantém para dominar ideologicamente os mundos, nos quais as armas já mataram aqueles que poderiam reagir.
Porque assim isolados, inseguros, cairemos nas malhas da rede desses pescadores de consciência.
Assistiremos mundos e mundos renunciarem à liberdade do mar, para nadar em tanques seguros, tediosamente seguros. Até serem servidos no jantar.
Um súbito ranger de ferrolhos arrancou Felipe de seus devaneios.
Por que a aula de Tessálio lhe viera à mente agora?
Sim, Tessálio tinha razão.
Mas ele mesmo estava preso.
Felipe ousara mais, iria mais longe.
"Busque o inesperado, faça o novo."
Será que seus mestres apoiariam o "novo”que estava pronto a fazer, o inesperado?
Talvez não fosse novo seu ato, pois a traição bem antiga é, mas inesperado sem dúvida seu ato seria.
Tinha certeza que Tessálio e o Xamã já sabiam de suas reais intenções.
Eles não negariam seu acesso ao coração da teia se já não soubessem o que de fato levava em sua mente.
Com certeza já sabiam há muito de suas reais intenções e estavam tentando atraí-lo de volta.
Sim, desde alguns tuns, muitos tuns estavam agindo de forma diferente com ele.
Sentiu uma ponta de raiva dentro de si por não ter percebido antes o que agora lhe era óbvio.
Todos a sua volta já sabiam que ele era um traidor.
Até mesmo Aliaanará, a forma sutil como ela tomou de volta a esmeralda que ele recebera dela tuns atrás e que era um elo entre ele e as Icamiabas.
Bancara o tolo e sua importância pessoal reagia a isso.
Tolos.
Espertos, mas tolos.
Eles mesmo não alertavam para o perigo do Poder?
Teriam uma noção exata do que era o Poder de fato?
Com suas disciplinas éticas viviam a conter-se, não exercendo plenamente suas possibilidades.
Não, este caminho poderia levar alguns a algum lugar mas não era definitivamente o caminho de Felipe.
Ele sabia que estava ali para testar o poder pleno, um caminho solitário.
Solidão.
Saudade.
Aliaanará.
Ela negou-se a estar com ele.
Como era possível negar o amor e a imortalidade por um conjunto de ideais falsos de liberdade e ética.
Alianará. Ela o amava também, mas o que era o amor?
Não seria apenas uma forma do corpo manifestar uma extrema atração sexual, um reconhecer de cheiros e texturas que gritam aos gens que carregamos que encontraram no outro um vetor de bons elementos para cruzamento?
Compreendia a absoluta falta de sentido em tudo, a efemeridade de tudo e todos, e a vã ilusão de seus planos.
"O poder que temos é o que somos".
Disso ele tinha certeza.
Todos diziam isso.
Mas nas Escolas de Torhn eles insisitam em usar o poder interior e não interferir com o exterior.
Essa era a fraqueza deles.
Mais tarde saberia usá-la.
Teria coragem de estar no ataque?
Ele sabia qual era o ponto fraco de toda a proteção ao Estado de Torhn.
A mata era a guardiã daquele mundo e era protegida por magia.
Mas em Midgard havia um elemento artificial.
Plutônio.
Ele era instável demais e ao mesmo tempo inacessível a magia dos teúrgicos.
Aliaanará.
Teria coragem de enfrentá-la, como oponente?
Ele a conhecera na Escola de Torhn.
Apaixonou-se por ela como as sombras de um pântano se apaixonam pela luz límpida da aurora.
Com intensidade e tristeza por saber que tal luz seguiria seu caminho e ele, pântano, já estava condenado a mergulhar mais e mais em suas sombras, em busca de algo que poucos ousavam vislumbrar:
O poder.
Viveram juntos segundo os costumes da escola, em alojamentos para os que desejavam viver com alguém.
Aliaanará era a provável sucessora da líder das Icamiabas do seu continente (o mundo Icamiaba possui apenas dois vastos continentes, gelados nos polos e todo o resto coberto de floresta, no mais é um grande mar).
Embora partilhassem um incrível afeto, já àquela época, Felipe sabia qual era seu destino.
Ele buscava o poder, o poder puro.
E sabia que o poder sobre si mesmo tão alardeado pelos adeptos do Chi interior não lhe seria suficiente.
"O ser humano é muito diminuto perante o vasto todo. Se desejo conhecer o poder exercê-lo-ei além das fronteiras de mim mesmo."
Tudo isso passou pela mente de Felipe, mas quando a grande e pesada porta de ferro frio se abriu sua mente estava limpa e aberta.
Felipe mais uma vez usou o saber de seu treinamento.
Limpou sua mente de tudo, inclusive dos conceitos que eles lhes deram.
Assim nada estava a perturbar-lhe a percepção quando sentiu a energia dos Sombrios ativando o portal.
Pela primeira vez iria além do espelho.
O espelho não mais seria o canal de contato entre ele e o misterioso ser das Sombras que há muito era seu real mestre.
Agora Felipe estava pronto.
Sem intermediários.
Seu lance já estava dado.
A mensagem que enviara ao conselho dos Senhores e Senhoras reunidos no Reino de Bispou já devia estar sendo lida.
Com que assombro não estaria sendo ouvida.
Se os Senhores e Senhoras da guerra, maioria no conselho, entendessem a vantagem que lhes estava sendo oferecida não excitariam em dar total apoio a Felipe.
Bispou tentaria impedir, mas Felipe tinha o trunfo final.
Bispou era um crente.
A religião dos Salvatores era apenas um instrumento de manobra ideológica para converter e dominar os povos.
A maioria dos Senhores e Senhoras tinha um comprometimento apenas formal e aparente com tais credos.
Mas Bispou secretamente acreditava em certos credos dos Salvatores, acredita em seus deuses. Participara dos rituais secretos onde o Prior dos Salvatores e seus aliados contatavam os Deuses.
Deuses!
Eram seres de incrível poder, consciências muito mais amplas e profundas.
Mas seres, não deuses.
Bispou apesar de todo o poder de suas legiões, criadas em condições extremas, era frágil por ser um seguidor.
Ele havia transformado seu mundo num lugar terrível para gerar ‘soldados perfeitos’.
Apenas um elite vivia em condições mínimas, o resto do planeta condenado a uma vida em condições sub humanas, em situações de extrema penúria e expostos a climas desregulados devido a agressões constantes ao meio ambiente.
Além das tantas outras agressões, Bispou e seus engenheiros comportamentais levavam todos a experimentarem, aquele profundo senso de derrota, inutilidade e frustração que depois bem trabalhados geravam máquinas humanas prontas a matar, odiando o que quer que lhes mandassem odiar, inconscientes da magia e do valor das próprias vidas, assim sem nenhum respeito para com qualquer vida.
Nesse meio adverso Bispou treinava seus soldados desde crianças.
Eram verdadeiras máquinas de matar, resistentes, bitolados, incapazes de pensar por si mesmos exceto em assuntos onde a destruição do inimigo fosse a meta.
E inimigo era sempre aquele que Bispou habilmente sabia apontar, mostrando que se fossem eliminados haveria uma vida melhor para todos.
Seu exército genocida e as armas que desenvolvera, testando-as inclusive em seu próprio mundo, lhe dava grande poder no Conselho.
Ele era um dos líderes dos Conquistadores.
Mas com sua crença era manipulável.
Como muitos outros cria nas manobras dos Salvatores e em seus Deuses.
Tinha a carência de um pai psicológico, o medo de assumir a solidão da existência e o profundo desamparo ao qual todos estão de fato expostos.
Felipe recebera outra educação e aprendera que existem seres em muitas escalas de poder, mas eram seres, não deuses.
E ele entraria em contato com tais seres agora.
Estaria em sua morada.
Sorriu ante a ironia do que estava por fazer.
Pensou nos personagens das sagas sagradas dos vários povos que diziam ter conversado com seus deuses ou intermediários destes.
Ao menos Felipe sabia que ele não seria logrado.
Não era um crente devoto amedrontado em busca de um pai psicológico que atravessava o portal.
Era um ser consciente que havia aprendido a desenvolver um profundo senso de análise e observação.
Então atravessou a moldura do grande espelho ígneo.
De fato o fogo não o queimou.
Mas o brilho o levou para muito, muito longe, fora da teia, um mundo parasita, no nosso preso.
Felipe estava num vasto túnel.
Sentia tudo a sua volta em tons de enxofre e ocre.
Alguns seres em forma de chamas bruxuleantes mas semi-opacos se aproximaram.
Subitamente todo o local tomou a forma de uma vasta sala de piso quadriculado e horizontes a perder de vista.
-Não! - disse Felipe e sua voz era um som disforme e pesado, como uma gosma sólida a escorregar pela língua e sair no ar a sua frente.
A imagem desapareceu e voltaram ao túnel que pulsava com estranha vitalidade.
-"Não fale, sentiu ele em sua mente. Faça como nós".
-"Não quero ilusões que acalmem meus sentidos".
Felipe notou certa perplexidade.
Não estavam preparados para tais atitudes.
Ele tinha o treinamento das Escolas de Torhn a seu favor.
Não antropomorfizaria as imagens ficando em lugares paradisíacos que com certeza essas criaturas eram capazes de gerar drenando informações a partir de suas carência profundas.
Aprendera o suficiente para não ser assombrado por seus fantasmas interiores.
Se ia negociar com esses seres desejava estar num ambiente nitidamente alienígena para que seus sentidos estivessem aguçados.
Observou tudo a sua volta.
Era aquele o lugar que o recebiam.
As formas parecendo chamas de vela, que seriam?
Uma delas se destacou do grupo e se aproximou.
Pulsou sua luz até tomar uma forma humanóide.
Felipe sorriu sarcástico.
Aquela forma insinuava sinais de um ser que conhecia bem.
Tudo muito discreto, nada que percebesse se não fosse seu treinamento.
Emitiu seus sentimentos e o ser voltou a sua forma bruxeleante, porém muito, muito mais opaco que uma vela.
Sensações, texturas, sons e cheiros inundaram-lhe a percepção.
Uma torrente de informações sensoriais.
Felipe percebeu o que isso significava.
Eles estavam se comunicando com ele em via direta, sem usar de subterfúgios, de mitos de sua própria cultura.
Sua percepção absorveu as informações contidas naquela comunicação.
Levaria alguns meses em seu próprio mundo para linearizar tudo aquilo, mas a essência lhe era clara.
Fora aceito como aliado, não como servo.
Ele conseguira.
O pacto era um sucesso.
Deixou que uma aparente empolgação o envolvesse e notou que os seres se tornaram menos em guarda ao senti-la.
Felipe se perguntava quantos como ele conseguiram tal aliança?
Só quando estava em seu quarto na segurança de sua câmara que Felipe permitiu-se demonstrar um pouco de suas verdadeiras percepções.
Havia sido um sucesso.
Ele sabia que havia conseguido.
Estava exausto.
Não operava naquele nível de energia há tuns.
Sim, há tuns seus mestres e mestras na Escola de Torhn não o expunham mais a tais campos de energia.
Então já sabiam de sua traição há tanto tempo?
Não importava isso agora.
Ele estava aliado a poderes muito maiores que o "ético caminho" de Torhn e sua escola.
O cosmos é caótico demais.
Há momento que temos de forçá-lo para algum lado.
Domar o dragão.
Uma imagem vem a memória de Felipe.
Tessálio, em uma aula treino.
Ele fala sobre domar o dragão.
Mas ensina a trabalhar o dragão interior.
Felipe sabe que está ousando.
Tais racionalismos o incomodam.
Precisa de energia.
Toca um gongo que ecoa um som ondulante até os corredores, saem para as varandas do pátio interno e despertam a jovem que dorme ao lado da fonte das 7 pedras.
A jovem se ergue, caminha como em transe, só, para estar na porta do quarto de Felipe.
As portas que dão para o corredor do pátio, guardadas por 4 mulheres da guarda pessoal de Felipe.
As guardas pessoais de Felipe estão atentas e, como ouviram o gongo, deixam a jovem passar.
As pesadas portas de bronze com o desenho do dragão incrustado em pedras vermelhas e metal amarelo e verde se abrem.
A mulher entra e observa ausente a cena. As portas são fechadas.
Felipe acaba de acender a grande lareira que fica num canto do quarto.
O quarto redondo tem a um lado uma grande cama com dossel.
Felipe sabe que mesmo no auge de seu poder não poderá abandonar por muito tempo esta região.
É aqui que está o epicentro de seu poder, é seu ponto de máximo poder e sua obra exigirá sempre tal foco.
Aquela cama precisa ser preparada magicamente.
Os sonhadores entre os povos ligados as Escolas de Torhn são muitos e habilidosos.
Não pode arriscar ser abordado por algum agora.
Havia também o pacto com Aliaanará.
Tal pacto o tornava accessível a mulher líder de um poderoso povo, um povo que Felipe sabia que não poderia nunca destruir totalmente.
Ataques limitados como o que faria em breve ainda eram possíveis, mas as Icamiabas possuíam uma magia que estava além de seu poder.
Elas encontrariam seu fim se toda a teia fosse destruída, mas antes deveriam ser mantidas acuadas, mas não destruídas.
Isso lhe tranquilizava em parte.
A menos que Aliaanará se arriscasse desnecessariamente não precisaria matá-la.
Aliaanará viva mantinha uma parte dele mesmo ainda viva.
Ficou de pé observando o fogo crescer na lareira.
A jovem se aproximou.
Era uma escrava enviada por um dos povos que já se submetera a nova ordem que sua mensagem ao conselho criara.
A jovem estava em transe e trazia a bandeira da casa reinante em sua cintura.
Felipe sabia o que devia fazer.
Criar um escudo psíquico a sua volta para que nunca fosse rastreado em sonho.
Sangue seria o veículo.
Sangue virginal.
Suavemente deitou a jovem na cama.
Entre as almofadas acetinadas e o tecido aveludado da colcha a jovem começou a sentir as ondas de energia que Felipe irradiava.
Pulsando o feixe de fibras que todo ser orgânico possui, os humanóides na altura do umbigo, ele já tocava a jovem levando-a a vibrar em desejo.
O corpo maduro, ainda virgem, fora prisioneira de um dos Templos dos Povos das Montanhas de Yarcvr , onde as sacerdotisas virgens guardam seus mistérios e seus himens da curiosidade masculina.
Aos poucos a jovem ardia em prazer.
Felipe entoou os mantras tântricos e a jovem arfou, sequiosa de um membro viril que matasse a fome de seu corpo, até então quase toda saciada nos ritos de sua irmandade.
O som tocava as terminações nervosas, biológicas e o velho instinto, ancestral e dominante possuiu a jovem.
O transe era pleno.
Pulsando seu corpo no mesmo tom Felipe conduziu a jovem pelos caminhos do êxtase tântrico.
Seus corpos se contemplaram, se tocaram com a leveza da brisa e a intensidade das tempestades.
Suor e saliva aos poucos se misturaram.
Sons em tons, específicos tons.
Felipe sabia como conduzir a jovem agora.
Ela estava totalmente entregue em suas mãos.
E ele estava excitado totalmente excitado.
Nunca fora além desse ponto, pois em toda a Escola de Torhn se considera necromancia usar outro ser sem este estar consciente.
Mas o ato que a pouco realizara ao ir ao mundo dos parasitas Sombrios lhe tornava imune a toda consciência moral que ainda pudesse possuir.
A jovem em suas mãos não tem consciência treinada para operar em tais níveis de energia.
Está em transe, vivendo fantasias não realizadas.
Prisioneira de fantasias.
Felipe pulsa seu chacra raiz.
O som, a forma geométrica, a cor, o tom.
A jovem responde.
Ela está tomada, seus centros superiores foram ligados, mas os básicos não sabem como conectá-los.
Felipe liga-se neles.
Chacra a chacra, até que a mulher entra em tal êxtase que ele mesmo quase perde o controle tal o prazer que o possui. Mas sabe manter-se no limiar, sabe envolver-se sem se entregar.
Pleno de um poder estranho ele controla sua ejaculação e conduz a energia pelo caduceu.
Pulsa um campo a sua volta, a volta de onde está e só então deixa que seu membro penetre totalmente a mulher.
Um gemido a leva ao explodir do transe.
Um pequeno fluxo de sangue escorre até a bandeira do povo que a capturou e enviou como tributo.
Já há sangue no pendão.
Sangue dos mortos na luta para salvar a bandeira milenar dos que pretendiam vender seu povo.
Monges ferozes e hábeis, mas poucos.
Desarmados e perplexos demais.
Alguém já disse em algum lugar que a invenção de armas permitiu aos covardes e desonrados dominar o mundo.
Dois sangues, o poder do medo e o poder do prazer inconsciente.
Felipe estava com sua consciência ampliadíssima.
Era um tantrista, adepto do mais terrível e abominável tantra.
Capaz de manter sua consciência operando mesmo em tais níveis de amplitude.
Forjou a bolha de proteção ao redor de si e criou outra ao redor da grande cama.
Sua consciência estava ampla, bordejando outros mundos de pura energia.
Voltou para o mundo cotidiano com os gritos da jovem.
O olhar ensandecido, saltados.
Felipe sabia o que havia acontecido.
Ela fora exposta a mais poder que poderia elaborar conscientemente.
Subitamente inundado por tanto poder seu racional se queimara, se desfizera.
Como um cristal arquivo que se apaga se for exposto a um pulso de certo tom.
Felipe equilibrou sua pulsação e permitiu que uma aparência humana retornasse ao seu olhar.
Era disciplinado o bastante para nunca olhar no espelho, mas sabia que nunca mais teria um olhar humano, a não ser esta paródia vulgar que só o ocultava o fato dos não treinados.
Como enfrentaria o olhar de seus antigos mestres e amigos quando os visse?
Tolice, se os visse novamente seria para assinar suas sentenças de morte, pois ele agora consumara o ato que iniciara há muito, muito tempo, naquele ensolarado dia que descera para os túneis secretos sob o castelo, ainda adolescente, para ser apresentado ao elo sombrio, o ser intermediário que o levara até seu mestre.
Naquele dia trocara o dia ensolarado pelas sombrias cavernas e acreditava dentro de si mesmo nunca ter saído realmente das sombras.
Há tempos se tornara um desgarrado.
Hoje apenas confirmara tal ato.
Chamou suas guardas e elas levaram a jovem.
Quando os gritos da jovem foram ficando distantes, perdidos nos corredores de pedra que levam as alas internas da fortaleza, deixou de pensar no que os soldados fariam com ela.
Sentou-se num nicho de pedra que tinha num dos cantos.
Sobre o nicho cristais das sete cores num arranjo exótico.
Um campo de nulificação.
Ali, dentro daquele campo nenhum psíquico poderia rastreá-lo.
Abriu uma pequena gaveta e dela tirou uma flauta de tom acobreado.
Era uma flauta Parola.
Flautas que eram vendidas com grandes blocos de uma pedra usados como cofre.
O cofre era um cubo da pedra dentro de uma camada de um material radioativo de alta intensidade que ficava dentro de outra pedra.
Assim, nesse arranjo sanduíche ficava o cofre interior.
A flauta, ao ser tocada, criava um cone até o cofre interno, uma abertura.
Se por algum outro meio tentassem abrir o cubo-cofre o material radioativo vazaria, destruindo o material no seu interior e contaminando todo o ambiente e todos que estivessem próximos.
O bico da flauta, onde a língua devia tocar, era mantido liso com um veneno específico, algo que era geneticamente desenvolvido para só não afetar uma específica pessoa.
Era um artificio engenhoso.
Mas o que guardaria Felipe ali?
Um grosso volume de folhas finíssimas.
Capa dura, de madeira talhada e incrustações.
Felipe abre o grande livro e com uma pena e tinteiro põe-se a escrever.
O que não escreveria em seu diário o homem que estava a trair toda a teia e condenar bilhões de seres a morte ou a escravidão?
Nuvem que passa
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