A Queda do Céu, pelo xamã yanomami David Kopenawa.
Por isso Omama finalmente criou os xapiri, para podermos nos vingar das doenças e nos proteger da morte a que nos sujeitou seu irmão mau. Então ele criou os espíritos da floresta urihinari, os espíritos das águas mãu unari e os espíritos animais yarori. Depois, escondeu-os, até que seu filho se tornasse xamã, no topo das montanhas e nas profundezas do mato. Antes, eu achava que os xapiri tinham vindo a existir por si sós, mas estava enganado. Mais tarde, quando pude vê-los e ouvir seus cantos, realmente entendi quem eram.
O pai de minha esposa conta também que foi a esposa de Omama, a mulher das águas, quem primeiro pediu que os xapiri fossem trazidos à existência.
Somos seus filhos e nossos antepassados tornaram-se numerosos a partir dela.
Por isso, depois de ter procriado, perguntou ao marido: “O que faremos para curar nossos filhos se ficarem doentes?”. Era essa a sua preocupação. O pensamento do marido, Omama, continuava no esquecimento. Por mais que seu espírito buscasse, ele se perguntava em vão o que poderia ainda criar. A mulher das águas lhe disse então: “Pare de ficar aí pensando, sem saber o que fazer.
Crie os xapiri, para curarem nossos filhos!”. Omama concordou: “Awei! São palavras sensatas. Os espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta para seus corpos!”. Foi assim que ele fez aparecer os xapiri, tão numerosos e poderosos quanto os conhecemos hoje.
Mais tarde, o filho de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma árvore yãkoana hi na floresta e disse ao filho: “Com esta árvore, você irá preparar o pó de yãkoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as cascas das árvores ama hi e amath a hi e depois beba! A força da yãkoana revela a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de virar espírito!”.
Depois, soprou yãkoana nas narinas do filho com um tubo de palmeira horoma. Omama então chamou os xapiri pela primeira vez e disse: “Agora, é sua vez de fazê-los descer. Se você se comportar bem e eles realmente o quiserem, virão a você para fazer sua dança de apresentação e ficarão ao seu lado. Você será o pai deles. Assim, quando seus filhos adoecerem, você seguirá o caminho dos seres maléficos que roubaram suas imagens para combatê-los e trazê-las de volta! Você também fará descer o espírito japim ayokora para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro dos doentes. Assim você poderá realmente curar os humanos!”. Foi desse modo que Omama revelou a seu filho — o primeiro xamã — o uso da yãkoana e lhe ensinou a ver os espíritos que acabara de trazer à existência. Nossos maiores continuaram a seguir o rastro de suas palavras até hoje. Por isso, continuamos a beber yãkoana para fazer os xapiri dançar. Não fazemos isso à toa. Fazemos porque somos habitantes da floresta, filhos e genros de Omama.
O filho de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu pensamento nos xapiri. Entrou em estado de fantasma e tornou-se outro. Então pôde contemplar a beleza da dança de apresentação dos espíritos. Tornou-se xamã depressa, porque soube demonstrar amizade a todos. Os xapiri já tinham o olhar fixado nele desde que era bem pequeno e seu pai tinha falado a respeito deles muitas vezes. Agora, tinha crescido e eles finalmente tinham vindo em grande número. Podia vê-los descer, resplandecentes de luz, e escutar seus cantos melodiosos. Então, exclamou: “Pai! Agora conheço os espíritos e eles se juntaram do meu lado! De agora em diante, os humanos vão poder se multiplicar e combater as doenças!”. Omama era o único a conhecer os xapiri e os deu ao filho porque, se morresse sem ter ensinado suas palavras, jamais teria havido xamãs na floresta. Não queria que os humanos ficassem sem nada e causassem dó. Por isso, fez de seu filho o primeiro xamã. Deixou-lhe o caminho dos xapiri antes de desaparecer. Foi o que ele quis.
Disse a ele estas palavras: “Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças de epidemia xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos. Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe. Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões! Impeça o ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval Yariporari de vir flechá-las e derrubá-las!”. Essas foram as palavras que Omama deu ao filho. Por isso, até hoje os xamãs continuam defendendo os seus e a floresta. Mas também protegem os brancos, apesar de serem outra gente, e todas as terras, até as mais imensas e distantes.
O filho de Omama primeiro tomou yãkoana com o pai. Depois continuou a bebê-la sozinho, mais e mais, para chamar cada vez mais espíritos e poder conhecer todos os seus cantos. Era deslumbrante quando fazia dançar suas imagens. Era um rapaz muito bonito, tinha a pele coberta de urucum bem vermelho e desenhos de um negro brilhante. Suas braçadeiras de crista de mutum prendiam muitas caudais de arara-vermelha, pingentes de rabo de tucano e buquês de penas paixi.
Tinha os olhos escuros, e os cabelos cobertos de penugem hõromae, de um branco resplandecente. Tinha também uma pele de rabo de macaco cuxiú-negro em torno da cabeça. Dançava lentamente, com as costas bem curvadas para trás. Ver a beleza dos xapiri o enchia de felicidade. Chamava-os e os fazia descer sem parar. Trazia-os no pensamento, de verdade. Era assim porque tinha sido gerado pelo esperma de Omama, que é o criador dos xapiri.
Acho que o filho de Omama, hoje, está morto. Sua imagem, porém, ainda existe, muito longe daqui, onde os rios deságuam, do lado do nascer do sol, ou talvez no céu. Eu a vi no tempo do sonho, junto com a de nossa floresta, aos prantos. Esta, doente e transformada em fantasma pelas fumaças de epidemia, pedia aos xapiri para curá-la e acabar com o sofrimento causado pelo furor dos brancos. Implorava-lhes que limpassem as árvores e tornassem suas folhas brilhantes de novo; que fizessem crescer suas flores e lhe devolvessem a fertilidade.
Dizia a eles: “Vocês são meus, devem vingar-me!”. Vejo tudo isso em sonho porque, tornado fantasma com a yãkoana durante o dia, o meu interior se transformou. Senão, eu não poderia falar assim.
O filho de Omama foi o primeiro a virar espírito, antes de qualquer outro. Foi o primeiro a estudar e a ver as coisas com a yãkoana. Depois dele, muitos de nossos ancestrais se tornaram xamãs. Ele lhes mostrou como fazer dançar os espíritos. Disse a eles, como Omama lhe havia ensinado: “Quando os seres maléficos da floresta capturarem a imagem de seus filhos para devorá-la, os xapiri irão recuperá-la e vingá-los!”. Foi seguindo essas palavras que os nossos maiores se puseram a beber pó de yãkoana e a admirar o esplendor dos espíritos. É isso que fazemos até hoje. Por isso é tão comum ver os xamãs trabalhando em nossas casas. Sem eles, seriam vazias e silenciosas. Assim é. Essas palavras são antigas mas nunca vão desaparecer, porque são muito bonitas e o valor delas é muito alto.
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